sábado, 31 de março de 2007

Registro 26: Êxtase

Êxtase de Santa Tereza
Bernini

Oh, meu Bem Amado, por teu amor aceito não ver nesta terra a doçura do teu olhar, não sentir o inexprimível beijo de tua boca, mas suplico-te que me abraces com teu amor. Um dia, tenho a esperança, cairás impetuosamente sobre mim, transportando-me para o lume do amor; tu me mergulharás nesse ardente abismo a fim de fazer de mim – e para sempre – a feliz vítima dele.
Tereza D´Ávila

Êxtase: estado de quem se encontra como que transportado para fora de si e do mundo sensível, por efeito de exaltação mística ou de sentimentos muito intensos de alegria, prazer, admiração, temor reverente...

sexta-feira, 30 de março de 2007

Registro 25: Sassaricando!!!!

Vírginia Lane
Vedetes em Revista
Exposição em homenagem
à atriz Virgínia Lane.
Aconteceu em São Paulo na
Caixa Cultural
09.02.2007

quinta-feira, 29 de março de 2007

Registro 24: Mito-poema

Narciso, Caravaggio
NARCISO

Raimundo Matos de Leão

Narciso,
de tanto olhar
espelho se tornou.
Congelado em si,
a ninguém mais olhou.

Narciso,
de tanto namorar
namorado se tornou
do espelho.

Narciso, cego,
ensurdecido e mudo
para o mundo
ficou.

Narciso ensimesmado
tornou-se um chato.
Trancou-se em casa,
murchado

São Paulo/1988

Eco e Narciso, John William

quarta-feira, 28 de março de 2007

Registro 23: Henri Matisse escreve

É PRECISO OLHAR A VIDA INTEIRA COM OLHOS DE CRIANÇA

Henri Matisse

Criar é próprio do artista; onde não há criação, não existe arte. Enganar-se-ia quem atribuísse este poder criador a um dom inato. Em matéria de arte, o criador autêntico não é somente um ser dotado, é um homem que soube ordenar, visando um determinado fim, todo um conjunto de atividades do qual resulta a obra de arte. Assim, para o artista, a criação começa com a visão. Ver, já é um ato criador e que exige certo esforço. Tudo o que vemos na vida cotidiana, sofre, mais ou menos, a deformação engendrada pelos hábitos adquiridos, e o fato é talvez mais sensível numa época como a nossa, onde cinema, publicidade, periódicos, impõem diariamente um fluxo de imagens preconcebidas, que são um pouco na ordem da visão, o que é preconceito na ordem da inteligência.

O esforço necessário para libertar-nos exige uma espécie de coragem; e essa coragem é indispensável ao artista que deve ver todas as coisas como se as visse pela primeira vez; é preciso ver a vida inteira como no tempo em que se era criança, pois a perda desta condição nos priva da possibilidade de uma maneira de expressão original, isto é, pessoal.

Tomando um exemplo, creio que nada é mais difícil para um verdadeiro pintor do que pintar uma rosa, porque para o fazer é preciso antes de mais nada esquecer todas as rosas que já foram pintadas. Aos que vinham me ver, em Vence, eu costumava fazer esta pergunta: “Vocês viram os acantos sobre a orla que margeia a estrada?“. Ninguém os havia visto; todos teriam reconhecido a folha de acanto sobre um capitel coríntio, porém a lembrança do capitel não permitia que se visse o acanto no estado natural.

É um primeiro passo para a criação ver-se cada coisa em sua verdade e isto pressupõe um esforço contínuo.

Criar é expressar o que se tem dentro de si. Todo esforço autêntico de criação é interior. Ainda assim é preciso cultivar essa sensação, com o auxílio dos elementos extraídos do mundo exterior. Aqui intervém o trabalho pelo qual o artista incorpora e assimila gradativamente o mundo exterior, até que e objeto desejado se torne parte dele mesmo, até que o tenha dentro de si e possa projetá-lo na tela como sua própria criação.

Quando pinto um retrato, tomo e retomo o meu assunto a cada vez é novo o retrato que faço; não o mesmo corrigido, mas outro retrato que recomeço; e cada vez é um ser diferente que eu extraio da mesma personalidade. Aconteceu-me muitas vezes, afim de esgotar de maneira mais completa meu estudo, inspirar-me em fotografias da mesma pessoa em idades diferentes; o retrato definitivo poderá representá-lo mais jovem, ou com aspecto diferente do que tinha quando pousava, porque este assunto me pareceu mais verdadeiro, mais revelador da sua personalidade real. A obra de arte é assim o coroamento de um longo trabalho de elaboração. O artista absorve tudo o que à sua volta for capaz de alimentar-lhe a visão interior, diretamente, quando o objeto que desenha deve figurar na sua composição, ou então, por analogia. Coloca-se assim em estado de criar. Enriquece-se interiormente de todas as formas de que possa tornar-se senhor e que ordenará algum dia conforme um ritmo novo. No expressar esse ritmo, a atividade do artista será realmente criadora. Para conseguí-lo, preferirá a seleção ao acúmulo de detalhes. Deverá escolher, por exemplo, no desenho, dentre todas as combinações possíveis, o traço que se revelar plenamente expressivo, como que portador de vida, procurar as equivalências pelas quais a natureza se transpõe para o âmbito próprio da arte. Na “Nature morte au magnólia”, representei em vermelho uma mesa de mármore verde; em outra ocasião precisei de uma mancha escura para evocar a cintilação do sol sobre o mar; essas transposições não foram absolutamente o efeito do acaso ou da fantasia, mas sim o coroamento de uma série de pesquisas, em conseqüência das quais esses matizes me pareceram necessários, tendo em vista suas relações com o resto da composição, a fim de comunicar a impressão desejada.

As cores, os traços, são forças, e no jogo destas forças, no seu equilíbrio, reside o segredo da criação. Na capela de Vence , que é o coroamento das minhas pesquisas anteriores, tentei realizar esse equilíbrio de forças; o azul, o verde, o amarelo dos vitrais, compõem no interior uma luz que não é propriamente nenhuma das cores empregadas, mas sim o produto vivo de sua harmonia, de suas relações recíprocas; essa cor-luminosidade deveria projetar-se sobre o campo branco, cercado de preto, do muro que fica fronteiro aos vitrais e no qual há linhas propositadamente muito espaçadas. O contraste permite-me dar à luminosidade todo o seu valor vitral, fazendo dela o elemento essencial, aquele que dê o colorido, aqueça, anime, no sentido próprio, este conjunto qual importa conferir uma impressão de espaço ilimitado a despeito de suas dimensões reduzidas.

Em toda a capela não há uma só linha, um pormenor, que não concorra para essa impressão. Parece-me que, nesse sentido é que se pode dizer que a arte imita a natureza: pelo caráter de vida que um trabalho criador confere à obra de arte. Então, a obra aparecerá igualmente fecunda e dotada desse mesmo frêmito interior, dessa mesma beleza resplandecente que as obras da natureza possuem. É preciso um amor muito grande, capaz de inspirar e de sustentar esse esforço contínuo em direção à verdade, essa generosidade conjunta e esse despojamento profundo que envolve a gênese de toda obra de arte.

Mas o amor não está na origem de toda criação?
___________________________________________________
Texto coligido por Régine Pernoud. Art et Education. Unesco,1954.
Tradução de Regina Helena Tavares. Escolinha de Arte do Brasil,setembro, 1973.

terça-feira, 27 de março de 2007

Registro 22: Projeto Quartas Cênicas


Registro 21: Hoje é o Dia do Teatro e do Circo.

Teatro grego


Dionísio

MAGRA: (...). Enquanto se está vivo não se consegue escapar ao teatro. Teatro é a engrenagem viva que interliga as pessoas. Não é mentira, não é fingimento, é vida!!! Por fatalidade dependemos todos, uns dos outros. Mesmo errando e mesmo sem saber direito como fazer. Ele ensina a paciência necessária pra que o milagre se processe. Se você se cala, você recusa e interrompe o milagre. Por precipitação, por avidez.. Por querer chegar depressa demais, porque o milagre só pode ser coletivo, ele é por direito de todos e quem tenta chegar sozinho, fracassa. Eu não estou falando mais por você, Pedro. Eu estou falando por mim mesma. (Magra começa a se afastar lentamente de Pedro) A porta é estreita, Pedro, é isso. Mas eu quero acertar com ela. Eu não quero permanecer no mesmo erro por mais tempo. Existe alguma coisa que nos inclui a todos... Eu não sei que nome dar a ela, mas nós estamos irremediavelmente comprometidos, todos, uns com os outros, e é impossível escapar sozinho. A porta é muito estreita, mas só passamos carregando os outros conosco. (Pausa) Eu quero que você me perdoe, mesmo se não entender. Se eu não disser não agora, Pedro, eu não sei onde iremos parar. (Pedro se levanta) Até... até... um dia. (Fim. Some o pano ou sobe, ou baixa ou não existe.)
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ARAP, Fauzi. Pano de Boca: um conserto de theatro. Reprografado, s.d.

segunda-feira, 26 de março de 2007

Registro 20: Ele foi,é, um grande artista: Flávio Império

Ponta de Bananeira
Flávio Império

Depoimento

O Oficina tinha que pegar fogo. É necessário, acho, que todos os teatros se incendeiem de tempos em tempos. Um espaço arquitetônico que se anima em espaço teatral com a violência que o Oficina se animou, só queimando para apagar todas as impressões dramáticas e trágicas que se acumulam, reverberam e se registram em seu corpo magnético. Aí, destruído, se reconstrói outro espaço como um corpo novo e vigoroso para novas transformações. Uma coisa assim: depois de muito tempo de tensão dramática levada à exasperação, ao desespero, um corpo registra tantas impressões e fica tão impregnado de significados que ele, em si, começa a ter vida própria sobre seus usuários e a determinar ou a influir sobre a conduta, seu inconsciente, sua fantasia, sua capacidade de imaginar.
(...)

Considerado muito “psicanalisado” pelas galhofas do Oficina e indisciplinado e contraditório pelos remanescentes do Arena, brinquei com todos os jogos e me encontrei realmente quando fazia, outra vez sozinho, os meus espetáculos: Os Fuzis da Senhora Carrar – que chamamos de Os Fuzis de Dona Tereza – no Teatro dos Universitários de São Paulo (TUSP) e Labirinto: Balanço da Vida, com Walmor Chagas dizendo textos e poemas.
(...)

Tenho consciência de não ter inovado nada no plano internacional. Fui cenógrafo atento ao que ocorria aqui e fora. Nem melhor, nem pior do que muitos. Atualizei vários conceitos aqui na província. Consegui, com produções paupérrimas, um nível de realização extremamente sofisticado.

Não me considero “autor” de nenhum método ou sistema estruturado da linguagem nova. Para falar a verdade, eu servi o meu tempo com o meu mais empenhado entusiasmo. Acho que por isso não me ponho a ditar regras. Fiz tudo o que já tinha e existia com a inocência de quem inventava o novo. Fui um alegre Robinson Crusoé que, em terra fértil e com um canivete reconstruiu um arremedo de civilização. Ando hoje à procura do Sexta-feira, não para ensinar nada a ele, mas para aprender.
(...)

Os Fuzis de Dona Tereza foi também um espetáculo feito em cima de um outro que eu já havia feito. Fiz Os Fuzis ainda no Teatro de Arena, em 1962, sob a direção de José Renato. A coisa de que mais gostava é que a peça tinha poucas páginas. Detesto peça comprida. Peça curta você lê e entende tudo, e é aquilo mesmo que você leu, sem muitas divagações de segundos, terceiros, quartos atos. Ser curtinha permite a você ficar mais entretido com o tema básico. Dava pra fazer como uma composição orquestral curta, concentrada, condensada, principalmente porque essa segunda montagem que eu diria era feita por estudantes que conseguiam, no máximo, uma voraz e rápida passeata.

Não agüentariam nunca o percurso que o Prestes fez com a “coluna” pelo Brasil inteiro e muito menos a longa jornada da China e, no caso da “muralha”, que fosse uma bem pequenininha. O resto já se sabe que é daquele jeito... Qualquer estudante ou pequeno-burguês se cansa logo de qualquer assunto e quer mudar. Então a peça curta é o melhor remédio para males curtos mais curtos. Focalizamos um determinado assunto, tratamos dele o melhor possível, mexendo no tema das mais variadas maneiras, desde o “bater da massa do pão” até a alegoria do grande bispo que traduz o discurso do generalíssimo Franco. As matracas substituíram as falas das mães e das mulheres porque em meio à guerra todo mundo matraqueia e a fala da mãe é sempre um terror, um lamento de mater dolorosa. E foi em cima desse lamento que fiz o material ficar passeando.

O Cristo na cruz estava garantido porque tinha sido escrito assim. E o lamento dela estava já escrito também como um grande oratório intercalado com o discurso de um padre compreensivo, do irmão exasperado, da namorada desesperada. Discurso doloroso de uma mãe que não quer ter nos braços o filho morto e mesmo assim isso vai acontecer. Na verdade, é um tema que mais ou menos trabalha em cima do inexorável do destino humano e onde o social engole a vontade particular. Por melhores que sejam as suas intenções, a vida ou a morte não dependem de você. A discussão do fato é mais além.

KATZ, Renina e HAMBURGUER, Amélia (org.). Flávio Império. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 39-140.


domingo, 25 de março de 2007

Registro 19: Sobre crianças


CRIANÇA LAMBISCANDO. Pela fresta do guarda-comida entreaberto sua mão avança como um amante pela noite. Uma vez familiarizada com a escuridão, tateia em busca de açúcar ou amêndoas, uvas passas ou compotas. E assim como o amante abraça a sua amada antes de beijá-la, da mesma forma o tato tem um encontro preliminar com as guloseimas antes que a boca as saboreie. Como o mel, punhados de passas e mesmo o arroz, como todos entregam-se lisonjeiramente à mão! Quão apaixonante esse encontro de dois que finalmente se subtraíram à colher. Agradecida e selvagem, como uma moça que se rouba da casa dos pais, assim a geléia de morangos se oferece aqui à degustação, sem o pãozinho e como que sob o livre céu de Deus, e mesmo a manteiga retribui com ternura a ousadia de um pretendente que tomou de assalto o seu quarto de menina. A mão, o jovem Don Juan, penetrou logo em todas as celas e aposentos, deixando atrás de si camadas que escorrem e quantidades que fluem: virgindade que se renova sem queixas.

BENJAMIN, Walter. Rua de mão única: extratos. In: Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002, p. 105-106.

sábado, 24 de março de 2007

Registro 18: Sobre a história do teatro na Bahia


Muitas são as razões para a escolha de um tema de pesquisa e estudo. Uma delas é a paixão pelo conhecimento. E essa paixão norteou todo o trabalho desenvolvido em torno do objeto escolhido. Junte-se a ela o querer saber um pouco mais sobre a história do teatro na Bahia, seus caminhos e descaminhos – tema vasto que requer vários estudos e estudiosos que queiram se debruçar sobre o fazer teatral na Cidade do Salvador. Algumas obras foram escritas abordando diversos ângulos dessa história. Outras deverão ser feitas. Espera-se que este trabalho, ao se somar ao existente, contribua para aqueles que venham a se debruçar sobre a temática, observando-a sob novos ângulos e, sobretudo, preenchendo os aspectos lacunares aqui existentes. Esse livro é derivado da dissertação de mestrado apresentada publicamente em 2003, no Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas – UFBA. Por sugestão da banca examinadora, fizemos alterações no texto original.

Uma outra razão norteia a escolha temática e remete-nos ao deslumbrante, incrível e pesado 1968, “ano que não acabou”, no dizer de Zuenir Ventura. Nesse ano ingressamos na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia como aluno do Curso de Formação do Ator, concluído em 1971. Desse processo de aprendizagem muita coisa positiva encontra-se sedimentada na nossa formação e crescimento como ser humano, como profissional. Quanto a esses aspectos, não cabe aqui discorrer sobre eles. Mas, em virtude da escolha do tema aqui desenvolvido, é importante que se registre o fascínio exercido pela Escola de Teatro do tempo em que Martim Gonçalves era seu diretor.

Na época em que ingressamos na Escola, havia um sentimento de nostalgia, uma saudade pelo tempo vivido. Cultuava-se aquele tempo como sendo um momento ímpar e grandioso do teatro na Bahia, algo que se perdera, não havendo possibilidade de ser retomado. A nostalgia parecia-nos um sentimento paralisante, que não acrescentava muito às demandas da própria Escola e principalmente do momento histórico que se vivia. Ao lado dos nostálgicos, viviam aqueles que destilavam suas críticas ao que se fizera, aos resquícios daquela momentosa criação de Edgard Santos e Martim Gonçalves. Ponderemos, no entanto, que havia mais ressentimento destrutivo do que uma crítica objetiva ao trabalho feito na Escola de Teatro.

Da mesma forma que a atitude nostálgica, a ressentida era também paralisadora. Assim, aquele espaço de ensino e encenação mostrava-se aquém da efervescência criativa e modernizadora que o caracterizara nos seus primórdios. E tudo isso num momento em que o país parecia explodir em radicalizações estéticas, políticas, sociais que teriam como resposta o Ato Institucional n° 5, na malfadada noite de 13 de dezembro de 1968.

Vivendo entre as duas atitudes, terminamos por seguir os contestadores sem nos preocuparmos em avaliar o que realmente significara aquela época, marco renovador da encenação na Bahia, embora no íntimo existisse o fascínio por aquela ação desencadeada nos anos de 1950. Passados mais de trinta anos, diante do imperativo de darmos continuidade aos estudos universitários, eis que “somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes”, como nos indica Walter Benjamin em sua Tese número 3, Sobre o conceito da história. O passado da Escola de Teatro se nos apresenta “como uma imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecida”, metáfora benjaminiana aqui agregada para esclarecer uma escolha que se tornou necessária e vital para compreendê-lo.

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LEÃO, Raimundo Matos de. Abertura para outra cena: o moderno teatro na Bahia. Salvador: Fundação Gregório de Matos; Edufba, 2006, p. 13-14.

Registro 17: Edna, Ester e Joselita


Musas

Raimundo Matos de Leão


Três irmãs e suas esperanças tchecovianas.
A primeira ensina anjos curumins;
professora cumpre assim sua sina.
A segunda esperou as filhas,
e com elas tece na eternidade colchas de crochê.
Nas horas de folgas, que são muitas, açucaram papos-de-anjo.
A terceira vive a sorrir entre as plantas do quintal;
carregada de lembranças, reza e espera...

A primeira me fez só letrar.
A segunda me gerou.
A terceira com seus afagos,
sem ser madrinha, virou dindinha.

A mais velha, seriedade.
A do meio, melancolia.
A caçula, faceirice
Musas!

2007

sexta-feira, 23 de março de 2007

Registro 16: Um trabalho de Pedro Carmo

Homem Elefante
Pedro Carmo.
Para ver mais trabalhos acesse:

Registro 15: Pra quem gosta de ler poesia

NOTURNO NO PARQUE ANTÁRCTICA


Ilka Brunhilde Laurito


Os cavalos do carrossel do Parque Antárctica
galopavam garbosos ao cair da tarde.
As amazona-meninas de vestidos de organdi
corriam prados, planuras e campinas,
cavalgando valsas, esporeando a pianola.
E o palhaço colorido ia e vinha,
escolhendo montarias, empinando cabriolas,
esbanjando balas, beijos, guizos.
Risos. Como ele ria. Como nós ríamos. Ríamos até sem razão.


Os cavalos do carrossel do parque Antárctica
pastavam no faroeste giratório
sem bandidos, mas com um trêfego mocinho.
E as meninas ousadas, ante amor tão movediço,
disputavam o arlequinal amado,
entre colombinas fugazes repartido.
E riam, como elas riam com as risadas do inconstante,
enquanto ia ficando cada vez mais triste
o meu cavalo branco.


Até que afinal o palhaço galopou a meu lado,
e em três compassos eu lhe declarei baixinho: - Não vai embora, não.
Fica comigo.
Mas ele gargalhou festivo, enquanto a tarde se afogava
numa cascata de luminárias que acendiam meus olhos fidelíssimos.
Então, ele partiu. Eu pude ouvir os cascos do cavalo afoito
cascalhando ao lado da menina loura de blusinha de cetim.
Mas não vi o rosto dela, a traidora.
Fiquei escutando o coração pinotear em noturnal abismo.
E os risos. Ah, como eles riam, riam de mim com razão,
enquanto as luzes do Parque Antárctica boiavam líquidas
nos olhos apagados que enteviam
sucessivos palhaços em futuros circos.



Guardo o poema de Ilka Brunhilde Laurito copiado sem nenhuma referência. Ele foi me dado por uma amiga. Tanto ela quanto eu esquecemos de registrar a referência. Isso faz tanto tempo!

Gosto muito das imagens que a autora cria e o ritmo que imprime ao poema.

Quando dirigi o XVI Curso Livre de Teatro – Escola de Teatro da UFBA – 2000, utilizei o texto para uma cena de Exercícios Cênicos, mostra dos primeiros seis meses de aulas ministradas por mim (Interpretação), Marilda Santana (Técnicas vocais para a cena) e Marta Saback (Técnicas coporais para a cena).

Recentemente, Marta Gama, a aluna-atriz que dizia o poema me escreveu. Queria uma cópia. Mas o poema andava perdido em meio a bagunça dos livros que esperam serem abertos. Na ocasião não pude atender ao pedido, mas agora, ao encontrá-lo, deixo registrado para que ela consiga copiá-lo.

quinta-feira, 22 de março de 2007

Registro 14: Kaváfis, um grego de Alexandria

Hermafrodita

Dionísio

Vênus

Apolo


LEMBRA, CORPO....
Konstantinos Kaváfis

Lembra, corpo não só o quanto foste amado,
não só os leitos onde repousaste,
mas também os desejos que brilharam
por ti em outros olhos, claramente,
e que tornaram a voz trêmula – e que algum
obstáculo casual fez malograr.
Agora que isso tudo perdeu-se no passado,
é quase como se a tais desejos
te entregaras – e como brilhavam,
lembra, nos olhos que te olhavam,
e como por ti na voz tremiam, lembra, corpo.
_______________________________________________________
KAVÁFIS, Konstantinos. Lembra, corpo... Tradução de João Paulo Paes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982

quarta-feira, 21 de março de 2007

Registro 13: Conforme Eclesiastes,

Todas as coisa têm seu tempo.
Todas as coisas têm seu tempo, e todas elas passam debaixo do céu segundo o termo que a cada uma foi prescrito. Há tempo de nascer, e tempo de morrer. Há tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou. Há tempo de matar, e tempo de sarar. Há tempo de destruir, e tempo de edificar. Há tempo de chorar, e tempo de rir. Há tempo de afligir, e tempo de saltar de gosto. Há tempo de espalhar pedras, e tempo de as ajuntar. Há tempo de dar abraços, e tempo de se pôr longe deles. Há tempo de adquirir, e tempo de perder. Há tempo de guardar, e tempo de lançar fora. Há tempo de rasgar, e tempo de coser. Há tempo de calar, e tempo de falar. Há tempo de amor, e tempo de ódio. Há tempo de guerra, e tempo de paz.

Registro 12 A: Um pouco de Walter Benjamin

A vida dos estudantes

Há uma concepção de História que, confiando na infinitude do tempo, distingue apenas o ritmo dos homens e das épocas que rápida ou lentamente avançam pela via do progresso. A isso corresponde a ausência de nexo, a falta de precisão e de rigor na exigência que ela faz ao presente. A consideração que se segue visa, porém, um estado determinado, no qual a História repousa concentrada em um foco, tal como desde sempre nas imagens utópicas dos pensadores. Os elementos do estado final não afloram à superfície enquanto tendência amorfa do progresso, mas se encontram profundamente engastados em todo presente como as criações e os pensamentos mais ameaçados, difamados e desprezados. Converter, de forma pura, o estado imanente de perfeição em estado absoluto, torná-lo visível e soberano no presente, esta é a tarefa histórica. Esse estado, contudo, não pode ser parafraseado com a descrição pragmática de pormenores (instituições, costumes etc.), descrição da qual eles antes se furta, mas só pode ser aprendido em sua estrutura metafísica, como o reino messiânico ou a idéia da Revolução Francesa. O atual significado histórico dos estudantes e da universidade, a forma de sua existência no presente, merecem portanto ser descritos apenas como símile, como reflexo de um momento mais elevado e metafísico da História. Somente assim ele se torna compreensível e possível. Tal descrição não é apelo ou manifesto, que tanto um como outro permaneceram ineficazes, mas indica a crise que, situando-se na essência das coisas, conduz a uma decisão à qual os covardes sucumbem e os corajosos se subordinam. O único caminho para tratar do lugar histórico do estudantado e da universidade é o sistema. Enquanto várias das condições para isso continuarem vedadas, restará apenas libertar o vindouro de sua forma desfigurada, reconhecendo-o no presente. Somente para isso serve a crítica.
(...)
A falsificação do espírito criador em espírito profissional que vemos em ação por toda parte, apossou-se por inteiro da universidade e a isolou da vida intelectual criativa e não enquadrada no funcionalismo público. O desprezo, típico, de casta, por grupo de artistas e eruditos livres, estranhos ou frequentemente até hostis ao Estado, é um sintoma claro e doloroso dessa situação.
(...)
(1915)
___________________________________________________________________________

BENJAMIN, Walter. A vida dos estudantes. In: Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Tradução de Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2002, p. 31-47.

terça-feira, 20 de março de 2007

Registro 12: La Vida Es Sueño

SEGISMUNDO: É certo; então reprimamos
esta fera condição,
esta fúria, esta ambição,
pois pode ser que sonhemos;
e o faremos, pois estamos
em mundo tão singular
que o viver só é sonhar
e a vida ao fim nos imponha
que o homem que vive, sonha
o que é, até despertar.
Sonha o rei que é rei, e segue
com esse engano mandando,
resolvendo e governando.
E os aplausos que recebe,
vazios, no vento escreve;
e em cinzas a sua sorte
a morte talha de um corte.
E há quem queira reinar
vendo que há de despertar
no negro sonho da morte?
Sonha o rico sua riqueza
que trabalhos lhe oferece;
sonha o pobre que padece
sua miséria e pobreza;
sonha o que o triunfo preza,
sonha o que luta e pretende,
sonha o que agrava e ofende
e no mundo, em conclusão,
todos sonham o que são,
no entanto, ninguém entende.
Eu sonho que estou aqui
de correntes carregado
e sonhei que noutro estado
mais lisonjeiro me vi.
Que é a vida? Um frenesí.
Que é a vida? Uma ilusão,
uma sombra, uma ficção;
o maior bem é tristonho,
porque toda a vida é sonho
e os sonhos, sonho são.

***

BARCA,Pedro Calderón de la. A vida é sonho. Tradução Renata Pallottini. São Paulo: Página Aberta, 1992, p. 46-47.

segunda-feira, 19 de março de 2007

Registro 11: Foi em Baixa Grande que eu vim ao mundo



Baixa Grande - Bahia
Procissão de São Roque
No fundo - a direita - casa dos meus avós maternos,
Isalino e Rosabela
s.d.

Mapa

Murilo Mendes

Me colocaram no tempo, me puseram
Uma alma viva e um corpo desconjuntado.
Estou limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
A leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluído,
Depois chego à consciência da terra, ando como os outros,
Me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
Gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
Alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
Nem o mal.
Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
Tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,
Não acredito em nenhuma técnica.
Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
É por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,
Depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
Na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.
Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações...
Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.
Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noites, mulheres andando,
Presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção,
O mundo vai mudar a cara,
A morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.

Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
Me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
Na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.
Tudo transparecerá:
Vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
O vento que vem da eternidade suspenderá os passos
Dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
Vibrarei nos canjerês do mar, abraçarei as almas no ar,
Me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
Os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”...
Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
Aos soldados que perderam a batalha, às mães bem mães,
As fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito...
Viva eu que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.
Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
Dos amores raros que tive,
Vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
Tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
Estou no ar,
Na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
No meu quarto modesto da praia de Botafogo,
No pensamento dos homens que movem o mundo,
Nem triste, nem alegre, chama com dois olhos andando,
Sempre em transformação.


Murilo Mendes, um dos mais importantes poetas brasileiros, nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 13 de maio de 1901 e morreu em Lisboa, no dia 13 de agosto de 1975.

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domingo, 18 de março de 2007

Registro 10: Expressionismo malfattiano

A Ventania, Anita Malfatti, 1915
óleo sobre tela, 48 x 60cm
Palácio Boa Vista
Campos do Jordão - SP

Registro 9: Uma dica! Baudelaire

EMBRIAGAI-VOS


É NECESSÁRIO estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e vos faz perder para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar.

Mas – de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis.

E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder:

- É a hora de embriagar-se! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor.

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BAUDELAIRE, Charles. Embriagai-vos. In: Charles Baudelaire: poesia completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 2002, p. 322.

Registro 8: Alguma coisa está fora de ordem...

(...) A morte de João Hélio acendeu um movimento reacionário no País e o que não tem faltado na TV são telespectadores excitados pedindo, em programas policialescos, a pena de morte, a tortura e atitudes na linha lei de talião. Na mesma semana em que isso ocorre, o mundo da política e o da Igreja Católica iniciaram um outro debate que também caiu no fosso reacionário: a defesa do uso da camisinha pelo presidente Lula e a reação imediata da Igreja Católica.

Não bastasse a reação da Igreja por aqui, em escala mundial, outra pérola reacionária surpreendeu muitos: o papa Bento XVI, num retrocesso, atacou sem meios-termos os divorciados. Classificou os segundos casamentos com a singela adjetivação de “praga social”. E aos católicos mais carolas que se debrucem sobre o latim, língua defendida pelo papa para a celebração da missa. E depois há quem não consiga entender porque as catedrais da fé e seus teleevangélicos madrugadores são sucesso de público.

Mas como vivemos numa miscelânea de discursos non sense, o melhor de tudo é assistir a essas normas papais contra os divorciados nos telejornais e no intervalo comercial vermos um show de capacidade do catolicismo de se adaptar à lógica moderninha e nada reacionária: o anúncio do espetáculo Paixão de Cristo, em Nova Jerusalém (PE), é impagável.

Ao mesmo tempo em que anuncia Francisco Cuoco como Herodes improvável e Graziela Massafera como uma Maria Madalena louraça-gostosona, exibe um boneco de uma marca de palha de aço (a mesma que patrocina o BBB&) dançando desengonçado no papel de patrocinador, nos convidando a rir do mercadinho da fé que, com uma variação aqui e outra ali, é tudo muito parecido: tudo é business e performance em nome do divino.

Para coroar o anúncio, uma marca de peixe congelado, com nome de deus grego e ilustrado por desenho medonho, brada: o pescado da paixão. Mais risível impossível.

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FONTES, Malu. O mundo é um inferno. In: Revista da TV. A Tarde, Salvador, 18.03.2007, p. 9.
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Folha de S. Paulo, terça-feira, 20 de março de 2007
RUBEM ALVES A praga

É BOM atentar para o que o papa diz. Porta-voz de Deus na Terra, ele só pensa pensamentos divinos. Nós, homens tolos, gastamos o tempo pensando sobre coisas sem importância tais como o efeito estufa e a possibilidade do fim do mundo. O papa vai direto ao que é essencial: "O segundo casamento é uma praga!"Está certo. O casamento não pertence à ordem abençoada do paraíso. No paraíso não havia casamento. Na Bíblia não há indicação de que as relações amorosas entre Adão e Eva tenham sido precedidas pelo cerimonial a que hoje se dá o nome de casamento: o Criador, celebrante, Adão e Eva nus, de pé, diante de uma assembléia de animais, tudo terminando com as palavras sacramentais: "E eu, Jeová, vos declaro marido e mulher. Aquilo que eu ajuntei os homens não podem separar..."

Os casamentos, o primeiro, o segundo, o terceiro, pertencem à ordem maldita, caída, praguejada, pós-paraíso. Nessa ordem não se pode confiar no amor. Por isso se inventou o casamento, esse contrato de prestação de serviços entre marido e mulher, testemunhado por padrinhos, cuja função é, no caso de algum dos cônjuges não cumprir o contrato, obrigá-lo a cumpri-lo.

Foi um padre que me ensinou isso. Ele celebrava o casamento. E foi isso que ele disse aos noivos: "O que vos une não é o amor. O que vos une é o contrato". Aprendi então que o casamento não é uma celebração do amor. É o estabelecimento de direitos e deveres. Até as relações sexuais são obrigações a ser cumpridas.

Agora imaginem um homem e uma mulher que muito se amam: são ternos, amigos, fazem amor, geram filhos. Mas, segundo a igreja, estão em estado de pecado: falta ao relacionamento o selo eclesiástico legitimador. Ele, divorciado da antiga esposa, não pode se casar de novo porque a igreja proíbe a praga
do segundo casamento. Aí os dois, já no fim da vida, são obrigados a se separar para participar da eucaristia: cada um para um lado, adeus aos gestos de ternura... Agora está tudo nos conformes. Porque Deus não enxerga o amor. Ele só vê o selo eclesial.

O papa está certo. O segundo casamento é uma praga. Eu, como já disse, acho que todos são uma praga, por não ser da ordem paradisíaca, mas da maldição. O símbolo dessa maldição está na palavra "conjugal": do latim, "com"= junto e "jugus"= canga. Canga, aquela peça pesada de madeira que une dois bois. Eles não querem estar juntos. Mas a canga os obriga, sob pena do ferrão...Por que o segundo casamento é uma praga? Porque, para havê-lo, é preciso que o primeiro seja anulado pelo divórcio. Mas, se a igreja admitir a anulação do primeiro casamento, terá de admitir também que o sacramento que o realizou não é aquilo que ela afirma ser: um ato realizado pelo próprio Deus. Permitir o divórcio equivale a dizer: o sacramento é uma balela. Donde, a igreja é uma balela... Com o divórcio ela seria rebaixada do seu lugar infalível e passaria a ser apenas uma instituição falível entre outras. A igreja não admite o divórcio não é por amor à família. É para manter-se divina...

A igreja, sábia, tratou de livrar seus funcionários da maldição do amor. Proibiu-os de se casarem. Livres da maldição do casamento, os sacerdotes têm a suprema felicidade de noites de solidão, sem conversas, sem abraços e nem beijos. Estão livres da praga...

sábado, 17 de março de 2007

Registro 7: Imagem


Imagem de Senhora Santana
Igreja da Conceição da Praia
Salvador - Bahia

Registro 6: Uma poesia

ORIGEM

Raimundo Matos de Leão

Sou fruto dos
que me tiraram a verdade
e me obrigaram a sentir saudade.

A verdade era nua e crua.
Espantava
nas evidências paradisíacas que espelhava.
Um dia aprisionada
tornou-se documento da minha identidade
perdida.

Deixaram-me fora, por fora.
E eu, perdido, me reencontro
nas pegadas apagadas
dos que não sentiam saudade.

2006

Registro 5: Os da Mesa Dez

OS DA MESA DEZ

Oswaldo Dragún


PRÓLOGO

Público desta praça, boa-noite!
Somos os novos comediantes.
Somos atores que vão
de praça em praça, de cidade em cidade,
porém sempre adiante.
Se é certo que a vida do homem é uma estrela, que dura apenas um minuto
nesta infinita trajetória que é um dia do mundo, convenhamos que também é uma história.
Uma pequena história irrealizada, que termina às vezes antes de começar.
Uma pequena história para ser contada.
A comédia italiana era outra coisa.
Talvez fosse aquela época de rosas.
Hoje, espinhos se fincam em nossas mãos,
às vezes calosas, e então o arrancamos.
Às vezes de nuvem e naufragamos.
O bandolim quebrado do arlequim,
E hoje um trem furioso.
E o sorriso azul da colombina,
à esperança rosada de uma nova heroína.
Mãe, mulher, irmã.
Que como um ponto de interrogação,
Riscam o dia de amanhã do nosso calendário.
Mas nós sabemos, já que sendo atores, sábios somos,
que o sol chega até o berço de uma simples semente.
O homem não é mais que uma semente.
E a sua história, uma história simplesmente.
Nós existimos porque vocês existem.
Suas histórias nos pesam na alma.
e nossas mãos a choram.
Lágrimas de muito longe trazemos.
E também um riso.
Se algum de vocês, pais nossos,
tem um riso para ser rido ou uma lágrima para ser chorada,
que se aproxime ao fim da jornada de anos.
Atores, cantores, trovadores, caçadores de estrela.
Sua história contaremos lá,
Em longínquas praças, sob a lua, ou sob o sol, para muitos ou nenhum.
O importante é contá-la.
E sua pequena história irrealizada,
será outra história para ser contada.
Público desta praça. Muito obrigado.

O CENÁRIO ESTÁ VAZIO. DE DIFERENTES DIREÇÕES ENTRAM A ATRIZ I e II E OS ATORES I, II E III. SAUDAM-SE ENTRE SI E VOLTAM-SE PARA O PÚBLICO.

ATOR I – Certamente vocês não conhecem os da mesa dez.
ATOR II – Nós os conhecemos.
ATRIZ II – Ela se chamava...
ATRIZ I – Maria.
ATOR I – Ele se chamava...
ATRIZ I – José.
ATOR II – Eu fui amigo de José.
ATRIZ I – Eu fui amiga de Maria.
ATOR III – Ele e eu fomos amigos dos dois.
ATRIZ II – Nós faremos todos os personagens necessários, porém isto não é o mais importante.
ATOR I – O mais importante é a história em si, e se a contamos é porque talvez Maria e José estejam entre vocês, escutando-nos. E queremos que saibam que não os esquecemos. Foi uma história triste...
ATRIZ II – Não é verdade. Foi uma história alegre!
ATOR III – Foi muito divertida.
ATOR II – Foi muito amarga.
ATRIZ II – Ah, não! Lembro-me muito bem como começou... Com música! Concluíamos o colegial, dávamos uma festa!
JOSÉ – (ENTRANDO) Mas o caso é que eu não era estudante. Um amigo me havia trazido.
ATOR II – (A JOSÉ) Venha, José, vamos aproveitar! A Tereza vai te apresentar alguma amiga.
JOSÉ – Não, meu amigo, amanhã tenho que acordar às sete.
ATOR I – Vamos bater uma bola!
ATOR II – Porém o convenci, e veio.
ATRIZ I – E eu lhe apresentei uma amiga. Maria... Ele é amigo do meu namorado.
MARIA – Muito prazer...
JOSÉ – Igualmente, José.
ATOR III – E dançaram...


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DRAGÚN, Oswaldo. Os da mesa dez. Texto reprografado, s.d.

A Companhia Experimental de Teatro do curso de Artes Cênicas da Faculdade Social da Bahia estreou Os da Mesa Dez, de Oswaldo Dragún em agosto de 2006. O texto do dramaturgo argentino, com direção de Raimundo Matos de Leão, é a segunda montagem da Cia. Experimental

Em Os da Mesa Dez, Dragún mostra através dos personagens centrais, os jovens José e Maria, o amor e as esperanças dos que desejam se encontrar e viver uma relação afetiva superando os obstáculos impostos pelas convenções sociais. No enfrentamento das barreiras entre as classes, os personagens, ele mecânico e ela estudante de arquitetura, filha de uma família de classe média abastada, terão que dar conta da dura realidade imposta pelas circunstâncias, fato que os deixa inseguros na consecução dos seus objetivos. No entanto, há sempre uma esperança para esses jovens que querem tomar para si o norte das suas vidas.

Em torno do par central gravitam outros personagens: amigos, pai, mãe, irmã, envolvidos diretamente com José e Maria, compondo o painel dos conflitos matizados por cores que delineiam a ação, ora intensamente dramática, ora resvalando para situações cômicas sem que se perca a densidade das relações e da “mensagem” contida no discurso teatral de Dragún. Nos personagens que compõem as duas famílias aparecem as frustrações, as visões de mundo deformadas, determinantes das relações humanas e dos problemas decorrentes das atitudes que tomam em relação a si e aos outros. Além dos familiares, aparecem os amigos de João e Maria, compondo um rico painel de situações em que a camaradagem é marcada por imagens de uma juventude vivenciando conflitos e desejando acertar as suas vidas, da mesma forma que o casal central da peça.

Oswaldo Dragún estrutura seu texto utilizando-se de recursos narrativos permeando a ação dramática um efeito que distancia o espectador do foco emotivo para fazê-lo refletir sobre o que acontece em cena. Para o autor, seu teatro é fruto das imagens fragmentadas em núcleos que formam o painel vivo e sintético, mas não redutor. Dragún afirma: “Tenho uma mente que apanha o que está organizado e o desorganiza. Por isso, para mim é um horror escrever um ensaio, que exige o contrário (...). Meu teatro parte de uma realidade que está aparentemente organizada e a desorganiza”. Dessa forma concebe-se também a montagem de Os da Mesa Dez, realçando a poesia do texto sem que se despreze o elemento principal de sua estrutura que é a fragmentação em pequenas cenas rápidas, mas plenas de significados. Esses aspectos são enfatizados na concepção do espetáculo.

Tomam parte do elenco de Os da Mesa Dez, os alunos-atores: Antônio Abreu, Ava Catarina Palma, Barbarah Sossa, Mariana Martinez, Nilson de Oliveira, Ricardo Faria, Viviane Veiga.

Anualmente, a Cia. Experimental de Teatro da FSBA coloca em cartaz uma montagem sob a responsabilidade de um dos docentes, envolvendo os alunos de todos os semestres e diversos setores da Faculdade, firmando-se como espaço de experimentação cênica e aprendizado, conforme sua proposta, acompanhada e avaliada pela coordenação do Curso de Artes Cênicas.

sexta-feira, 16 de março de 2007

Registro 4: Ainda sobre Tchecov

ANTON CHEKHOV
AUTOR PROFETIZA O FIM DE UMA ÉPOCA
[1]


Mariangela Alves de Lima


No primeiro ato de O Jardim das Cerejeiras o espaço indicado é um quarto cuja função se alterou pelo uso, mas ao qual as pessoas da casa se referem como “o quarto das crianças”. Ainda está escuro, as janelas estão fechadas e a rubrica determina a estação do ano. Este ato se passa em maio, no luminoso verão do Hemisfério Norte onde as noites são curtas e os dias longos. As cerejeiras estão em flor, mas só poderemos vê-las depois, quando estivermos informados sobre o significado dessas árvores para a família que habita a casa e sobre a ameaça que paira sobre o cerejal. Ao abrir-se a cena para o último ato da peça, a ação está outra vez localizada no “quarto das crianças”, agora despojado do mobiliário e tendo a um canto as malas empilhadas dos antigos proprietários da casa. As crianças que outrora viveram nesse aposento cercado de flores do verão e pelos frutos do outono permaneceram no universo descuidado da infância. Lhuba e Leonid, os irmãos arruinados pela ociosidade e pela imprevidência com que administraram a propriedade rural que deveria prover sua subsistência, estão de partida para uma nova vida. Ela voltará a Paris deixando para trás as filhas e ele, um cinquentão, trabalhará pela primeira vez.

No entanto, entre o verão e o outono, sem que nenhuma ação sensata se desencadeie para reverter a catástrofe econômica, enquanto o desagradável tema de como salvar a propriedade endividada, os personagens de Anton Chekhov modificam-se em suaves gradações, como se respondessem ao inevitável ciclo da natureza. Ao fim, para a aristocracia e para os serviçais rompeu-se o laço econômico e sentimental com o mundo rural. O novo proprietário é o homem moderno que antecipa com prazer o ruído dos machados abatendo as velhas árvores que darão lugar a construções modernas. De qualquer forma, o que desaparecerá não tem mais utilidade prática, é um jardim. Deixou há duas gerações de ser um pomar com a função de nutrir e prover os que dele cuidavam. Para a nova ordem que se instala, o sentimentalismo é um luxo.

Enquanto escrevia a peça, Chekhov comentava, na correspondência a amigos, sobre a sua comicidade. Quando a enviou para ser encenada pelo Teatro de Arte de Moscou, onde estreou em janeiro de 1904, advertiu que deveria ser interpretada como comédia. Se considerarmos a concepção canônica do gênero é ainda mais difícil aceitar essa recomendação do autor. As primeiras imagens estivais da peça são demasiadamente sedutoras e nos fazem participar do sentimento de que esse velho mundo, que se esfacela pela força do determinismo histórico e cuja injustiça “é preciso expiar através do sofrimento”, apelo patético da agonia. Seus habitantes não são cruéis ou desprovidos de encantos, são apenas insensatos e anacrônicos e nos compadecemos deles porque não compreendem. Ignorantes, comportam-se às vezes como personagens trágicos, ou seja, homens bons a quem o destino golpeou injustamente.

Ao enfatizar a graça da peça, é possível que o autor se referisse a um ritmo ou a uma forma de interpretação que contrariasse o fatalismo. O que os personagens centrais sentem e percebem como destino é desmentido pelo modo como agem. A bela Lhuba, tão gentil com os hóspedes e com os que a servem, despende uma moeda de ouro enquanto, na cozinha, os criados passam fome. seu irmão, dado a rompantes sentimentais e elegíacos desvia-se para o assunto do jogo de bilhar cada vez que é confrontado com uma discussão mais séria, que exigiria empenho e definição.

Em cada um dos personagens há enfim, um cacoete ou uma obsessão rompendo o fio da narrativa, que se introduz como um sinal de que é impossível, entre essas pessoas, manter o crescendo da ação dramática essencial para a tonalidade trágica. O que lhes acontece pertenceria por direito à categoria do drama: perderam suas raízes, estão lançados sem nenhuma rede de proteção em um mundo para o qual estão inteiramente despreparados. No entanto, o modo como se constitui o ser dessas criaturas, a alternância com que sofrem e contornam o sofrimento, sugere a adaptação de todo o organismo vivo às condições alteradas do meio ambiente. Nós os seguimos de dentro do quarto à pradaria do segundo ato, depois os vemos dançando uma quadrilha, afrancesada, enquanto ocorre o leilão da propriedade e, por fim, os reencontramos no território da infância e estão todos diferentes. Os mais velhos aquietados, sem as folhas verdes das ilusões, mas também sem a angústia da esperança, os jovens com o vigor dos que se preparam para instalar a nova ordem que substituirá a Rússia imperial.

Fundam-se sobre a sólida evidência do texto as interpretações que consideram essa obra de Chekhov como uma crônica da sua época e uma percepção quase profética da agonia do regime imperial. O novo proprietário é um filho de servos e, embora afeiçoado aos seus amigos aristocratas, exala ao fim um ressentimento de classe. O pomposo estudante Tromiov deixa a cena em direção a Moscou para assumir seu lugar na “vanguarda da humanidade que marcha em direção à verdade suprema”. Tampouco se enganam os que vêem nesse círculo de personagens à deriva entre as convulsões da História um emblema das mortes e renascimentos que, ao longo da existência, deixam marcas de crescimento na psique de cada indivíduo. O que talvez valha a pena considerar, nessa delicada construção em que o destino individual se entrelaça ao de toda uma sociedade, é que as velhas máscaras dramáticas do herói e do vilão, da tragédia e da comédia, não servem bem à representação desse movimento intencionalmente fluido. Quem se aproximar dela como se tratasse de um “drama psicológico” ou de uma competente “crônica histórica” terá eludido a articulação entre aparentes fragmentos de conservação.

Chekhov precaveu-se contra o luto sublime que poderia envelopar, como um manto de mau gosto, as suas cerejeiras evanescentes. Não contava, talvez, com a possibilidade de que a sua classificação da peça dentro do gênero cômico estimulasse saltitantes vaudevilles. Já aconteceu.

[1] LIMA, Mariangela Alves de. Anton Chekaov: autor profetiza o fim de uma época. In: Caderno 2, O Estado de São Paulo – D3, 1 de novembro de 2000.

Registro 3: Fragmentos tchecovianos

Tchecov e atores do Teatro de Arte de Moscou
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TREPLIOV Precisamos de novas formas. Novas formas, e se elas não existirem, é preferível que não haja nada... (Consulta o relógio.) Eu amo minha mãe, amo muito; mas ela leva uma vida tola, anda com esse escritor, é mimada pela imprensa - isso me cansa muito. Às vezes, é o egoísmo dos simples mortais que fala em mim; lamento que minha mãe seja uma atriz famosa, e me parece que eu seria muito mais feliz se ela fosse uma mulher comum! Pois, titio, pode haver situação mais estúpida e desesperadora que esta: muitas vezes ela recebe a visita de toda classe de celebridades, artistas, escritores, e entre eles o único que não é nada sou eu, e só me toleram por ser filho dela. E então, quem sou eu? O que sou? Larguei a faculdade no terceiro ano - como se diz, "por problemas alheios à minha vontade" -, não tenho talento e tampouco tostão furado, e a cédula de identidade descreve-me apenas como um burguesinho de Kiev. Meu pai também era só um burguês de Kiev, embora tenha sido um ator famoso. De modo que, toda vez que esses artistas e escritores, lá no salão, se dignavam me dar atenção, a mim me parecia que os seus olhares mediam minha insignificância. E eu advinhava seus pensamentos, e a humilhação me fazia sofre...

A Gaivota
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ASTROV Não. Na terceira semana da quaresma viajei a Malitskoiê, por causa da epidemia... Tifo exantemático... As casas entulhadas de gente... Sujeira, fendentina, fumaça, os bezerros nos quartos, junto com os doentes... Os leitões também... Passei lá o dia todo, não deu tempo nem de sentar, não pus nada na boca, nem mesmo em casa me deram descanso: trouxeram um manobrista da estrada de ferro; deitei-o sobre a mesa para operar, e não é que ele resolve morrer lá mesmo por causa do clorofórmio? E agora, quando menos estava precisando, às vezes me desperta um remorso, a consciência me pesa, como se eu o tivesse matado de propósito... Vou, sento, fecho os olhos - assim - e fico pensando se os que virão depois de nós, daqui a cem anos ou duzentos anos, e para quem nós estamos agora abrindo o caminho, irão se lembrar de nós com uma única palavra de gratidão. Não babá, não vão lembrar!
MARINA - Os homens não, mas Deus vai lembrar.
ASTROV - Obrigado. Agora você falou bem.
Tio Vânia
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IRINA - (inclina a cabeça sobre o peito de Olga) Chegará o dia em que todos saberemos o porquê de tudo isso, por que todo esse sofrimento, e então não haverá mais mistério... Porém, até então temos de viver e trabalhar. Trabalhar sempre! Amanhã viajarei sozinha... irei à escola, ensinarei e dedicarei a vida àqueles que talvez precisem de dela. Estamos no outono; logo chegará o inverno, a neve cobrirá tudo, e eu seguirei trabalhando, trabalhando sempre.
As Três Irmãs
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TCHEKHOV, Anton. Teatro: A gaivota, O tio Vânia, As três irmãs, O jardim das cerejeiras. Mairiporã - SP: Veredas, 1994.

Registro 2: Literatura para crianças



SOBRE LIVROS PARA CRIANÇAS


Quando Hobrecker iniciou sua coleção, há 25 anos, os velhos livros infantis eram usados como papel de embrulho. Ele foi o primeiro a oferecer-lhes um asilo, por algum tempo, contra as fábricas de papel. Entre as milhares de obras que abarrotam suas estantes, há talvez centenas que têm nesse local seu último exemplar. Não é com pompa e dignidade profissional que esse arquivista dos livros infantis aparece em público. Ele não visa o reconhecimento pelo seu trabalho, mas a participação do leitor na beleza que ele revelou. O aparelho erudito – principalmente um apêndice bibliográfico de cerca de duzentos dos títulos mais importantes – é bem vindo para o colecionador, sem importunar o leigo. Segundo o autor, o livro infantil alemão nasceu com o Iluminismo. Era na pedagogia que os filantropos punham à prova o seu grande programa de remodelação da humanidade. Se o homem é por natureza piedoso, bom e sociável, deve ser possível fazer da criança, ente natural por excelência, um ser supremamente piedoso, bom e sociável. E como em todas as pedagogias teoricamente fundamentadas a técnicas da influência pelos fatos só é descoberta mais tarde e a educação começa com as admoestações problemáticas, assim também o livro infantil em suas primeiras décadas é edificante e moralista, e constitui uma simples variante deísta do catecismo e da exegese. Hobrecker critica esses textos com severidade. Não podemos, com efeito, negar sua aridez e mesmo sua irrelevância para o leitor infantil. Mas essas falhas, já superadas, são insignificantes se comparadas com os equívocos que hoje estão em moda graças a uma suposta “empatia” no espírito da criança: a jovialidade desconsolada das histórias em versos e as caretas hilares desenhadas por pretensos “amigos das crianças” para ilustrar essas histórias. A criança exige dos adultos explicações claras e inteligíveis, mas não explicações infantis, e muito menos as que os adultos concebem como tais. A criança aceita perfeitamente coisas sérias, mesmo as mais abstratas e pesadas, desde que sejam honestas e espontâneas e, por isso, algo pode ser dito a favor daqueles velhos textos.
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BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 236-237.
Walter Benjamin escreve a resenha Livros infantis antigos e esquecidos em 1924. Perspicaz e amoroso, o crítico, filósofo, homem de muitas sabedorias, ilumina o texto com imagens de pensamento, abrindo janelas sobre o tema. Vale a pena passear sobre suas idéias e pensar nos livros produzidos, hoje, para as crianças desse imenso livro que é o Brasil. Em 1989, Fanny Abramovich, escreve:

Querer saber de todo o processo que acontece, do nascimento até a morte, faz parte da curiosidade natural da criança, pois se trata da vida em geral e da sua própria em particular... Saber sobre seu corpo, sua sexualidade, seus problemas de crescimento, sua relação (fácil ou dificultosa) com os outros faz parte do se perguntar sobre si mesma e do precisar encontrar respostas... (...). A questão é saber como o tema é abordado: se sem medo, sem reservas, sem fugir das questões principais ou fazer-de-conta que não existem... (...). Estamos falando de literatura... Portanto, não se trata de livros didáticos, de não-ficção, onde se disserta, se dá explicação objetiva, seca, dura... Não é a demonstração dum teorema (a vida não é bem assim...) nem a explanação dum fenômeno científico distante (...) Estamos falando de literatura, de ficção, de histórias onde se aborda um – ou vários problemas – que a criança pode estar atravessando ou pelo qual pode estar se interessando...
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ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scpione, 1989, p. 98-99.

RECORTE DE TRÊS LIVROS PARA CRIANÇAS
Naquela manhã, ninguém precisou acordar o Juca. Ele pulou da cama e num berro gostoso e estridente disse:

- EU QUEEEEEEEEEEEEERO UM MURO NO MEEEEIO DO CAMINHO!!

O berro foi ouvido por todos em seu apartamento e no do vizinho também, mas a vida continuou no ritmo do relógio. Tic-tac, tic-tac, tic-tac! Só o ritmo de Juca parecia mais acelerado naquela manhã.

A mesa estava posta. Durante o café, depois de um grande silêncio, interrompido de vez em quando pelo creck-crck das torradas, Dona Amélia, mãe de Juca, tentou saber que história era aquela de muro no meio do caminho. Juca, muito misterioso, olhou para xícara de café com leite e depois para o bule; em seguida, encarando a mãe, na respondeu. Dona Amélia estava intrigada, precisava saber o significado daquele berro. Lá na cozinha, o papagaio gritou:

- Traz o café do louro, Divina!

Divina deixou mais torradas quentinhas na mesa e lá se foi pra cozinha, sem saber a tal história do muro.
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LEÃO, Raimundo Matos de. Um muro no meio do caminho. Ilustrações de Beth Kock. São Paulo: Salesiana Dom Bosco, 1987.

Quando saio por aí, com meu irmão, brincamos de tudo: subimos em todas as árvores, principalmente nas mangueiras, corremos atrás de todos os bichos, principalmente atrás das galinhas, e apanhamos todas as frutas, principalmente as verdes. Mas existe uma brincadeira que é diferente de todas as outras, e é a melhor delas: andar dentro do córrego, pra baixo e pra cima. Minha mãe não gosta muito, nem minha avó, mas a gente anda assim mesmo.. Meu pai nem vê, porque fica trabalhando o dia inteiro, tratando das vacas, correndo de jipe, tirando leite, passeando a cavalo, cuidando dos porcos. Ele só para depois do almoço, pra ler uns jornais ou um livro.
Enquanto isso, nós dois, eu e meu irmão, no córrego, andamos pra baixo e pra cima. Mas nós não brincamos disso só por causa da água. É que lá no fundo, brilhando, sempre tem uns pedaços de vidro. Minha mãe diz, e minha avó concorda com ela, que o nome certo é louça antiga, mas nós já estamos acostumados, meu irmão e eu, a dizer que são cacos de vidro. Eles são grandes, pequenos, quebrados, redondos, compridos, grossos, finos, de todo jeito. Às vezes são coloridos, às vezes são brancos.
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VIANA, Vivina de Assis. O rei dos cacos. Ilustrações de Carlos Moreno. São Paulo: Salesiana Dom Bosco, 1986.


Daniel foi vendo a mãe fraquinha, sem forças, pálida. Cada dia pior. Canseira à-toa. Sem conseguir brincar até o final dum jogo bobo. Vira e mexe, chamando os filhos. Muda sobre sua doença. Chorando mansinho, ia fazendo cafuné, soprando beijinhos, abraçando apertado. Só querendo ficar perto deles. O tempo todo.
Mônica e Dona Lelena batiam muitos papos.
- Taí, mamãe. Cansei de ver na televisão, de ler nas revistas, mas nunca achei que ia acontecer comigo. Não acredito. Não pode ser verdade. É um pesadelo sem fim. Um horror total!
- Precisa ter esperanças, minha filha.
- Esperança? No quê? De quê? Estou doentíssima e você vem falando de esperança...
- Podia procurar outro médico.
- Boa idéia! Quem sabe uma outra opinião? Um jeito diferente de me tratar?
- Talvez um outro remédio. Tenho algumas economias. Vamos usar. Todinhas. Já falei com o Heitor. Ele concorda.

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ABRAMOVICH, Fanny. Dias difíceis. Ilustrações de Helena Alexandrino. São Paulo: Moderna, 2002.

Registro 1: Inauguração

CENADIÁRIA passa a existir a partir de hoje, 16 de março de 2007.É um espaço para divulgação de trabalhos de minha autoria. Além disso, é um lugar para publicar textos que me agradam.Essa é a ideia que me move, a principal. Coisas que apanho nos livros, jornais e revistas. São os apanhados. Dessa maneira espero compartilhar o que me emociona, me cutuca, me faz pensar. Não necessariamente nessa ordem.
A imagem que ilustra esse primeiro registro é parte da pesquisa que venho realizando com o chitão, tecido popular ainda usado no país.Na página Diário - http://www.geocities.com/rmleao - há um link para a exposição virtual Barroco Popular - Verso e Reverso. Espero comentários dos leitores, assim poderei dialogar.
Octavio Paz tem um belo poema sobre esse hábito às vezes tão violentado por nós.Deixo o poeta falar.
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CONVERSAR

Octavio Paz

Leio num poema:
conversar é divino.
Porém deuses não falam:
fazem, desfazem mundos,
enquanto os homens falam.
Os deuses, sem palavras
jogam jogos terríveis.

O espírito desce
e desata as línguas,
porém não fala palavras:
fala lume. A linguagem
elo deus inflamada
é uma profecia
de chamas, um desabar
de sílabas queimadas:
cinzas sem sentido

A palavra do homem
é filha da morte.
Falamos porque somos
mortais: palavras não
são signos, são séculos.
Ao dizer o que dizem
os nomes que dizemos
dizem tempo: nos dizem,
somos nomes do tempo.
Conversar é humano
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Tradução de Augusto Massi