sábado, 9 de junho de 2012

Registro 397: Homenagem a Carmem Bittencourt



Conheci Carmem Bittencourt desde a primeira vez que assisti a uma espetáculo no Teatro Vila Velha. Corria o ano de 1966. A peça encenada, Estórias de Gil Vicente, por João Augusto reunia textos do dramaturgo português e finalizava com a adaptação para o palco de uma livreto de Cordel, A Entrada de Lampião no Inferno. A partir daí acompanhei a trajetória da atriz até me transferir da Bahia para São Paulo.

Carmem Bittencourt, uma dos fundadores da Sociedade Teatro dos Novos, juntamente com Carlos Petrovich, Echio Reis, Othon Bastos, Sonia Robatto, Maria Francisca, Tereza Sá, liderados por João Augusto, depois do rompimento da turma com a Escola de Teatro e seu diretor na ocasião, Martim Gonçalves, os dissidentes partiram para uma aventura que deu certo. 

O grupo tornou-se uma referência do moderno teatro na Bahia, etapa iniciada pelas atividades de Martim Gonçalves junto a Escola de Teatro da então Universidade da Bahia. A Sociedade Teatro dos Novos se impôs e por seu trabalho e pertinácia construiu no Teatro Vila Velha, Passeio Público, no terreno doado pelo governador Juracy Magalhães. 

Descendente de família tradicional de Salvador, Carmem Bittencourt teve um papel prepoderenante na consolidação da Sociedade e do espaço, não somente como atriz, mas como adminstradora e faz tudo. Muitas vezes comprei ingresso de suas mãos, pois quando não estava em cena, ela exercia também a função de bilheteira, assim como outros atores da Sociedade. 

Um talento dramático à toda prova, Carmem Bittencourt não se limitava aos papéis "sérios", revelando-se uma comediante das mais expressivas. Como não atuei no Teatro Vila Velha, minha relação mais próxima com a atriz se deu quando do seu ingresso no elenco de A Casa de Bernarda Alba, de Garcia Lorca, sob a direção de José Possi Neto, que realizava em 1973, a sua primeira e inesquecível encenação, uma leitura muito particular e pertinente para a época do texto do dramaturgo e poeta espanhol. Como assistente de direção, acompanhei de perto a criação do personagem Maria Josefa por Carmem Bittencourt.

Ao entrar em cena como Maria Josefa, a atriz infundia pura poesia e na loucura da personagem dizia palavras lúcidas sobre a casa, a sua dona e sobre a repressão infundida por ela às suas filhas e criadas. Em meu livro Transas na Cena: teatro e contracultura na Bahia, dedico muitas páginas ao espetáculo, seu processo de feitura e acabamento; registro acontecimentos importantes envolvendo o elenco e a atriz em foco.

Distante da Bahia, não acompenhei a saída de cena de Carmem Bittencourt, mas ao retornar para Salvador, no horizonte do século 2, em minhas andanças pela cidade, uma tentativa de me recontrar com a soterópolis que deixara, encontrei Carmem caminhando pela Graça, bairro onde residia. No primeiro momento não me reconheceu, mas ao ouvir as lembranças ao seu trabalho em A Casa de Bernarda Alba, ela me abraçou, disse que não atuava mais e seguiu em frente. Fiqui parado vendo-a distanciar-se. A figura magra, de traços angulosos, muito parecida com outras mulheres criadas por Lorca, andou firme. Desde aquele encontro não soube mais da atriz, até abrir as páginas de um dos jornais que circulam por aqui e saber de seu falecimento no dia 7 de junho.

Lá se foi Carmem Bittencourt que além de atriz, trabalhou muitos anos na Sociedade Orfãos de São Joaquim. Aos 94 anos, ela deixou este palco-mundo e foi representar noutras plagas. Mas fica registrado aqui a sua força, sua integridade, sua firmeza a sua grandeza de atriz. Muito além desde registro há um legado nas fotografias dos espetáculo que fez:  Almanjarra (1957), Auto do Nascimento (1959), O Beijo no Asfalto (1961), Eles Não Usam Blequetai (1964), Estórias de Gil Vicente (1966), A Morte de Quincas Berro D’Água (1972) e Branca de Neve e os 7 Anões (1973), entre outros. E se existem cópias, os fotogramas do filme Moleques de Rua (1963) de Álvaro Guimarães e de Entre o Amor e Cangaço (1965), de Aurélio Teixeira, demonstram as qualidades dessa atriz insequecível. Como é inesquecivel a sua Romana, em Eles não Usam Blequetai, nas palavras de Harildo Déda que apreciou a sua criação no palco:

Eu me lembro de momento de Carmem, que fazia Romana, catando feijão. Ela não chora, a atriz não chora, mas a queda de cada grão de feijão dentro da vasilha de alumínio é como se fosse lágrimas. Era muito bonito.


Aplausos!

terça-feira, 5 de junho de 2012

Registro 396: Dois espetáculos, Salmo 91 e Olorum



SALMO 91
Salmo 91, texto de Dib Carneiro Neto é mais um trabalho derivado do livro Estação Carandiru de Drauzio Varella, transposto também para o cinema por Hector Babenco. Um assunto como o da vida na penitenciária paulista, e o massacre que dizimou mais de cem mortos nela trancafiada foi abordado por três das linguagens da arte: a literatura, o cinema e o teatro. Daí a sua importância, pois o tema, visto por ângulos diversos e submetido aos elementos de cada uma dos meios, forma um painel sobre a des-esperança
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Além disso, o massacre do Carandiru, como ficou conhecida a chacina, inspirou o intenso trabalho de Nuno Ramos: a instalação denominada 111, exposta na Bienal Brasil Século XX (1994), um conjunto de meteoritos negros com inscrições, manifestação no campo das artes visuais ou plásticas. Portanto, o tema despertou o interesse de vários artistas.

É notável um traço comum entre os trabalhos, a densidade presente em todos eles, sem nenhum ranço da arte panfletária, muita acostumada ao tematizar tais acontecimentos. Os discursos citados acima seguem outra proposta e despertam sentimentos e pensamentos mais profundo que um panfleto.

Salmo 91 esteve em cartaz na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, em Salvador, depois de uma temporada no Teatro Molière. Dirigido por Djalma Thürler, Salmo 91 é composto por dez monólogos correspondendo aos personagens interpretados por cinco atores, Lucio Tranchesi Rubio, Fábio Vidal, Duda Woyda, Rafael Medrado e Lucas Lacerda.

Originalmente, o texto não determina um cruzamento entre os monólogos, já que se mostram independentes, mas o diretor faz com que eles se cruzem, com os atores interagindo na dramaturgia cênica, opção que dinamiza o espetáculo de maneira intensa, com belas cenas retiradas de um material não tão belo: a vida passada, as condições de vida na prisão, os relacionamentos entre os presos. Colabora para a plasticidade da encenação, o espaço trabalhado pelo cenógrafo carioca José Dias e pela iluminação que recorta a cena, dando-lhe contornos para cada momento específico deste bom trabalho diretivo.

Djalma Thürler conduz seu elenco com precisão, retirando de cada intérprete bons momentos, marcando a cena de maneira orgânica, ainda que alguns intérpretes se destaquem pela entrega emocional e pela técnica que sustenta a criação. Mantendo a atmosfera e delineando cada personagem, os atores não resvalam em nenhum momento para a caricatura. A intensidade de algumas interpretações não beira o exagero.

Espetáculo bem acabado, Salmo 91 precisa ser visto e discutido. Para tanto, espera-se que retorne ao palco não somente para o amadurecimento de suas constituintes, mas para apreciação por parte do público interessado em bom teatro. Seu tema pode afastar espectadores, mas não aqueles atraídos pela humanidade que emana do tema e que podem se deixar tocar por suas contradições, sua violência e jogos de poder. Dib Carnerio Neto, ao adaptar o livro para o palco, não trata seus personagens sob a tinta do maniqueísmo. Ao expor cada um na sua inteireza, adentra por um universo rico de nuances reveladoras de uma vida no crime. O autor, o diretor e, sobretudo, os intérpretes reviram as almas atormentadas destes homens encarcerados, expondo para o espectador os personagens, mas sem tomar partido e sem julgamento prévio. O que se passa no palco é uma fatia tragicômica da realidade revestida de poesia, mas sem mascaramento. Os personagens são o que são e buscam sobreviver diante das circunstâncias. O espetáculo vive pela sua intensa poesia, pois o real se metamoforseia em objeto estético.

OLORUM
Em cartaz no Espaço Xisto Bahia, temos Olorum, texto de Gildon Oliveira sob a direção de Elisa Mendes, espetáculo do Grupo NITA. O autor reconta no palco o mito da criação do mundo e do homem, a partir da matriz africana. Ao recontar a aventura de Oxalá e Odudua, sua irmã (na versão adaptada), Gildon trabalha com a estrutura do épico, opção que facilita, de maneira criativa, a compreensão do mito por parte do espectador.

Transitando por universo aparentemente conhecido, o autor conduz a criança, espectador para o qual se destina o espetáculo, para o interior da narrativa fecunda, pois constrói seu desenrolar intercalando a ação dramática com intervenções de narradores que fazem avançar o que se conta. Por veze, esta escolha rompe com a representação de situações ricas que a poesia dramática possibilita quebrando-lhe a atmosfera e interrompendo o fluxo emocional, ponto central do drama, para ressaltar a objetividade do gênero épico., um traço determinante da encenação concebida por Elisa Mendes.

A diretora arma o espetáculo em um espaço neutro, tendo ao fundo um painel formado por pequenos recortes brancos que lembram bandeirinhas, mas que nada contribui para o todo da encenação. E não funciona nem como elemento decorativo. Mas a solução encontrada para caracterizar o Orum (céu), uma árvore em miniatura à beira do proscênio, é teatral e plena de significados.

O figurino esclarece enquanto elemento da linguagem. Em alguns casos, como o de Oxalá e Odudua, tornam-se peças expressivas caracterizadoras dos personagens, pois são criativas bem adequadas ao contexto da peça. Coube a Hamilton Lima a responsabilidade pelo cenário e figurinos.

Com excessivas cenas de dança que não contribuem para o desenrolar da ação, o espetáculo se sustenta na qualidade do texto, nos bons desempenhos dos atores (Mariana Freire, Jussara Matias, Marinho Gonçalves, Leandro Villa), dos bailarinos (Denys Silva, Claudionor Neto, Beatriz Costa), na sensível iluminação de Marcelo Marfuz e sobretudo nas canções de autoria de Gildon Oliveira e Ângelo Castro.

Por fim, a escolha do tema é exitosa, pois coloca de maneira apropriada um tema pertencente ao contexto cultural baiano, coim suas raízes na matriz africana, marco também da brasilidade. Vale conferir Olorum, demonstração de que o teatro para criança em Salvador atinge uma qualidade visível como neste espetáculo. Espera-se que a cena destinada a um público numeroso saiba manter-se em um nível estético sem concessões ao comercialismo que por vezes ronda os produtos culturais oferecidos aos espectadores em formação. Assim, os responsáveis por levar as crianças ao teatro podem escolher de maneira criteriosa aquilo que elas apreciariam sem diminuir-lhes a inteligência e a sensibilidade

Èpa Bàbà!