sábado, 4 de janeiro de 2014

Registro 449: Vamos descendo ladeira abaixo

O texto aqui reproduzido pelo seu valor reflexivo, é de autoria de um artista-pedagogo. Seu olhar crítico nos faz pensar sobre o que estamos fazendo, ou melhor, o que não fazemos. Tenho vivido tal situação na cidade onde vivo, Salvador, no condomínio onde resido e, como artista-pedagogo tento de alguma forma alertar para esta situação. No entanto, constato que a realidade descrita no texto de Zecarlos Andrade não chama a atenção da maioria que aceita tudo como está. Quando comento a situação caótica e desrespeitosa, as palavras perdem-se no vento. O texto é longo, mas vale a pena dar uma lida.



INFELIZ FUNK NOVO

Zecarlos Andrade

Sou santista de coração! Nasci na Gota de Leite, fui batizado no Montserrat, morei na Vila Mathias, mas há muito tempo subi a serra e vim para a capital. Neste final de ano, saindo das atribulações de São Paulo, desci para a Praia Grande em busca de um pouco de paz e sossego à beira mar. Adquiri há pouco tempo um apartamento que, pensava eu, poderia ser meu refúgio neste mundo conturbado.

A primeira e triste constatação foi que, apesar dos esforços diários dos garis, as praias estão imundas. Observo que as pessoas que as usam se incumbem de sujá-las, manifestando uma característica típica da cultura brasileira, que entende o coletivo como algo que não pertence a ninguém. O que deveria ser de todos, dá a impressão de não ter dono.

Crianças comem e jogam displicentemente os detritos na areia, ao lado de seus pais que, indiferentes, não vêm nisso nenhum erro. Afinal é tempo de férias! O lixo se acumula e os banhistas desviam-se de toda a sorte de imundice que vai sendo descartada sobre a areia até que com certa naturalidade, como se isso fosse normal. É evidente que essas crianças, ao fazerem isso e não recebendo de seus pais nenhum tipo de orientação, entendem, entenderão e passarão aos seus filhos a compreensão de que este é um procedimento considerado habitual, no qual o respeito pelas demais pessoas é algo que não merece ser levado em conta.

Essas crianças, desacostumadas a limites, crescem, tornam-se jovens que, com algum dinheiro no bolso e muita sede de poder e de consumo, transformam-se em pequenos transgressores que, ainda assim, aparentemente, não estão fazendo nada errado. Equipam os carros com caixas de som extremamente potentes e saem pelas ruas obrigando os demais cidadãos a se submeterem ao seu gosto musical: o funk.

O equipamento sonoro é uma forma evidente de demonstração de poder, pois quanto mais dinheiro houver em caixa, maior será a tecnologia empregada. Desnecessário dizer a esses jovens que esse capital seria muito mais bem aplicado em livros, cursos ou qualquer outro mecanismo que ampliasse os horizontes do conhecimento. O “funk” abomina o saber e quanto mais estúpido e ignorante for a sua cartilha, maior será o cordão de seguidores que professa a mesma fé.

Não sou retrógrado e nem reacionário. Apenas observo os fatos ao longo da história. O “rock and roll” quando surgiu, ao final da segunda da guerra, encontrou forte reação das camadas mais conservadoras, mas trazia em seu bojo uma semente de renovação que, infelizmente, não se percebe nesse novo ritmo. Percebemos apenas o som repetitivo, hipnotizante, monocórdico, pobre de melodia e se fosse só isso, não seria nada. As letras são uma apologia ao mau-gosto, à vulgaridade, ao sexo praticado descompromissadamente, no qual a parceira é como o salgadinho que se come na praia e, depois de se ter alcançado a satisfação individual, joga-se a embalagem fora, para que seja pisada pelos que passarem depois.

Ainda referindo-me às letras das pseudo-músicas, nota-se que o apelo é 100% sexual, demonstrando de forma evidente que esta questão permanece não resolvida para esses jovens. A mulher é colocada no mais baixo grau da serventia humana; nada mais do que um instrumento do prazer momentâneo, frequentemente chamadas de cadelas, vadias, piranhas e o vocabulário vai baixando o nível, até que se torna inegavelmente chulo. São essas mesmas jovens que mais tarde serão espancadas pelos seus companheiros, acostumados a sujar as praias e a maltratar animais. Costumo perguntar-me se esses jovens ouvem essas músicas em casa, ao lado de seus pais, para saber deles o que pensam a respeito. Acredito que não! Os pais quase não permanecem mais em casa e família é um conceito que está às beiras da extinção. 

Na poesia medíocre do “funk” alusões grosseiras ao ato sexual são corriqueiras. Aquilo que deveria ser um encontro de corpos em harmonia, nada mais é do que um exercício decadente do prazer pelo prazer, no qual o outro nem mesmo se parece com um ser humano e o que interessa mesmo é demonstrar uma artificial superioridade.

Apesar da grosseria nas relações sociais, da banalização do sexo, da degradação geral dos valores, os jovens, que começam comendo salgadinhos e jogando a embalagem na areia, acham que as demais pessoas são tiranamente obrigadas a partilhar das suas mazelas. O som, altíssimo, percorre as ruas, ou estaciona em frente aos prédios, porque afinal a rua é pública e isso quer dizer que não tem dono, concluindo-se portanto que estamos em um território onde tudo é permitido. Estacionam seus veículos a madrugada inteira, pouco importando se há alguém que deseje descansar.

Pobres jovens esses que comem salgadinhos e ouvem funk e que desconhecem que liberdade não é fazer tudo que se tem vontade, mas, sim, poder fazer tudo que a lei permite (E olhem que esse é um conceito iluminista do Século XVIII). Sem dúvida estamos nos embrutecendo e nos aproximando rapidamente da barbárie, se é que já não chegamos lá.

Enquanto ouvem o funk e entorpecem o espírito, os jovens lançam mão da bebidas e outros aditivos, para aumentar o prazer e torná-los ainda mais predispostos a agir por impulsos irracionais que, às vezes, terminam em tragédias. Vi inúmeros desses carros sonoros, depois de longa balada, partirem velozes e furiosos, dirigidos por adolescentes em visível estado de consciência alterado, ou, para que se entenda melhor: bêbados e drogados. Torçamos para que cheguem vivos em casa, se é que possuem uma...

Se cresce a onda de violência na baixada e aumentam os índices de criminalidade, não tenham dúvidas de que isso é uma reação em cadeia e que tudo começa lá atrás quando, inocentemente, em um dia de verão, come-se um salgadinho na praia e joga-se o papel na areia.

Pergunto-me: quais serão os valores que norteiam, ou nortearão a vida dessa geração funkeira, acostumada a impor sua vontade e desprezar a dos que estão à sua volta, entendendo que o mundo gira em torno do seu próprio umbigo. No momento em que esses jovens constatam que a realidade que os cerca é muito mais cruel e consiste em um conjunto de sistemas corruptos que eles mesmos ajudaram a construir é que se atravessa a última barreira da civilidade para ingressar no crime. Só não vê quem não quer que uma coisa leva à outra, considerando-se que a prática arbitrária de impor seu gosto aos demais, esbarra nos limites de uma lei que, apesar de agonizante, ainda existe e, quando cumprida, superlota os pobres presídios deste vasto país.

Quanto exagero pensarão alguns que se dispuserem a ler esta carta até o fim. “São apenas jovens se divertindo, ou melhor “zoando”... Depois isso passa...” – Enganam-se! Passar, passa, como passa tudo nessa vida, mas deixa sequelas cada vez mais profundas que vão, aos poucos, diante dos olhares complacentes, corroendo nossos alicerces de moralidade e minando as possibilidades de termos no futuro uma sociedade mais justa, mais sensata e mais equilibrada.

As autoridades parecem estar com as mãos amarradas e nada podem fazer para coibir esses abusos. Devem entender que diante de outras tantas questões mais graves, essa é de menor importância, sem no entanto perceber que um passo conduz ao outro nesse caminho, que se revela uma escalada em direção ao caos.

Não vejo outra solução para este problema que não passe pelo filtro da educação que, sabidamente, é uma das últimas preocupações dos nossos políticos. A classe que detém o poder, inteligentemente, sabe que se educar o povo, jamais será eleita com tanta facilidade. Deve ser por isso que há gente por aí dizendo que “o funk é a produção cultural de uma camada expressiva da juventude “ – Não caiam nesse engodo, caros leitores. Essa é apenas uma tentativa de fazer média para permanecer no poder, conquistando o voto desses jovens e mantendo-os na ignorância. Em assim sendo, tanto a política quanto as nossas praias continuarão sujas!