quinta-feira, 31 de julho de 2008

Registro188: Constatação


Hoje, a sensação de ser estrangeiro em minha própria terra tornou-se fortemente presente. A constatação não é de agora. Desde que parti e retornei para breves estadias, o sentimento de não pertecimento era vivido sem que isso provocasse dor.
Desde o passado até agora, lidar com essa emoção sempre foi de certa maneira facilitado pelas ocorrências, algumas boas outras nem tanto. Ocorrências na vida de quem se sente cidadão do mundo, cujo vento torna-se a cidade, versos que ouvi em uma canção popular na voz de Fernando Lona.
Céu de fim de tarde. Horizonte sem fim. Descrever a paisagem que se descortina da orla da cidade é querer o infinito. Descortinar o que há para além. O olhar traça uma grande panorâmica deslocando o ponto de vista do mar aberto para a a muralha de pedra e cal. Mas o que se lê da cidade são apenas fragmentos. A dinâmica vertiginosa não deixa o olhar captar além das aparências. Tudo se move rapidamente. O que se vê é a fisonomia sem que se possa captar o verdadeiro eu da cidade, sua gente move-se como figuras que se esvaem entre luz e sombra.
A foto foi feita em 28 de julho de 2008. Postado na mureta que circula a Avenida Oceânica para os lados do Farol da Barra, o olhar não quer ver a cidade, mas ela vai se construíndo pela imaginação e o que ela cria não diz muito da cidade. Ela constrói outra cidade. Uma cidade que combine mais com a paisagem descortinada ao por do sol. Outro rosto se forma e anda-se atrás dessa máscara imposta pelo céu de luzes cambiante e mar... e mar... Amar cada cidade que te é dada. Aprender com elas.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Registro 187: A vida é sagrada

Tem dias que o Mais, suplemento do jornal Folha de S. Paulo, está demais. Demais de bom, como no último domingo, 27 de julho. Nem sempre é assim, às vezes o Mais é de uma "chatura" sem fim, pedante que nem ele só.
Acabo de ler o número que traz na capa o poeta fuzilado pelos franquista, Federico Garcia Lorca, ou Lorca para aqueles que gostam e amam o poeta e portanto tratam-no com intimidade. Sobre Lorca, fala o cubano Urbano Martínez Caramante, contando-nos sobre a pesquisa realizada em torno da visita do poeta espanhol a Cuba, nos anos 30.
"Liberdade, liberdade abre as asas sobre nós"
Leia, a entrevista é reveladora.
Mais adiante, Luiz Costa Lima e João Cezar de Castro Rocha escrevem sobre a imensidão que é Antonio Candido, cuja Formação da Literatura Brasileira é referência.
Na folha seguinte Franklin de Matos (que não é meu parente nem aderente) resenha o livro de Tzvetan Todorov, O Espírito das Luzes. Bela resenha, faz a gente correr para a livraria e sair com o livro para sentar e ler e aprender. Nesses tempos bicudos, de caretice travestida de transgressão, de fundamentalismo (religioso, político, racial, para ficar só por aqui), gotas dos princípios definidos pelas Luzes caem bem. Melhor ainda quando lidos e vividos criticamente. O que não dá é pra ficar achando que os tempos pós-modernos superaram os preconceitos, os dogmas, as instituições e por aí vai.
Cito: "Autonomia do indivíduo e da sociedade, finalidade humana de nossos atos, universalismo, laicização, vontade geral, equilíbrio e independência dos poderes, invenção da história como relato dotado de sentido imanente, invenção da arte, do artista e da história da arte: alguém duvida que as Luzes sejam responsáveis por boa parte de nossa identidade atual?
Diante das teocracias islâmicas de hoje, da base norte americana de Guatánamo e das ameaças à pesquisa sobre células-tronco, alguém duvida de que precisem ser defendidas?"
Assim Franklin Matos encerra sua resenha sobre o livro em questão.
Por fim, na última página a lúcida porrada em nossos corações e mentes. Ela nos vem do filósofo esloveno Slavoj Zizek Em o Mutante, o esloveno apresenta uma ridografia de Radovan Karadzic, o líder-poeta que aterrorizou com sua guerra de limpeza étnica a região dos Balcãs. Gostaria de citar o texto na íntegra, mas o trecho final vale ser transcrito:
"O predomínio da violência religiosa (ou etnicamente) justificada pode ser explicado pelo próprio fato de vivermos numa era que se vê como sendo pós-ideológica.
Como já não é possível mobilizar grandes causas públicas com base na violência em massa - ou seja, a guerra - na medida em que nossa ideologia hegemônica nos chama para desfrutar nossas vidas e realizar nossos eus, é difícil para a maioria das pessoas superar sua repugnância diante da idéia de torturar e matar outro ser humano.
A grande maioria das pessoas é espontaneamente "moral": matar outro ser humano é profundamente traumático. Assim, para convencê-las a fazê-lo, é preciso uma causa "sagrada", maior, que faça os melindres individuias em relação ao assassinato parecerem triviais.
A religião ou o pertencimento étnico se enquadram perfeitamente nesse papel. É claro que existem casos de ateus patológicos que são capazes de cometer assassinatos em massa apenas por prazer, matar simplesmente por matar, mas eles constituem exceções raras.
A maioria de nós precisa ser "anestesiada" contra nossa sensibilidade elementar ao sofrimento do outro. E para isso é preciso uma causa sagrada.
Mais de uma século atrás, em "Os Irmãos Karamázov", Dostoiévski lançou um aviso contra os perigos do niilismo moral ateu: "Se Deus não existe, então tudo é permitido". A lição que nos ensina o terrorismo de hoje é que, pelo contrário, se existe um Deus, então tudo - até mesmo explodir centenas de espectadores inocentes - é permitido àqueles que afirmam agir diretamente em nome desse Deus, como instrumento de Sua vontade."
Dá o que pensar, não?
Por hoje é só. Se alguém concorda ou discorda, o diálogo está aberto. Alguns podem considerar que palavras ao vento dispersam. Mas é isso mesmo. Elas podem cair em bons olhos-ouvidos-mentes.
Agora, eu quero é comer com coentro, porque, como dizia Sílvio Lamenha, "Poesia é axial."

terça-feira, 29 de julho de 2008

Registro 186: Eleição e igrejas

Em pleno século XXI, o retrocesso O jogo político eleitoral atrela-se as igrejas. Com isso, não se leva em conta o passado do candidato, sua postura ética diante do mundo e do outro, nem seu programa político e sua vinculação com o pensamento moderno. Basta que ele seja fiel a sua igreja que passa a ser um cidadão acima de qualquer suspeita. É como se a religião servisse de blindagem para os candidatos que correm por aí a divulgar o seu credo em detrimento do outro como se ele fosse eleito para gerir os interesses do seu grupo religioso.
Tal fato acirra cada vez mais a intolerância e as divisões em um mundo que se quer plural e diverso.
Esse registro deve-se ao fato de ter lido o comentário assinado pelo jornalista Josias Pires, enviado por e-mail. Transcrevo a nota tal qual recebi. Concordo em parte com ela. Os dois primeiros parágrafos vão ao encontro do que penso a respeito dos acontecimentos que envolvem políticos que colocam em primeiro plano o seu credo religioso, induzindo o eleitor a escolhê-lo. Manipulação. Quanto ao restante da nota não tenho muito o que dizer, mas acho que ela é tendenciosa, da mesma maneira que a reportagem citada.
Um pouco menos de "igrejice" faria bem aos políticos e aos eleitores. E quando falo isso, não nego a grandeza da religiosidade. O que se postula é que cada um cuide do sua crença e não faça dela bandeira para ganhar eleição. Tal postura vai ampliar cada vez mais o fosso entre os indivíduos, já que cada igreja se acha detentora da verdade, caminho aberto para o pensamento único.
Estou fora!
"A "contaminação" do processo eleitoral em Salvador pela dimensão religiosa pode ser considerada uma das novidades deste início da campanha. De fato, as atitudes tomadas pela administração do atual prefeito que levaram à demolição de um templo religioso e a má vontade com a regularização fundiária das casas-de-santo – numa cidade negra em que o candomblé sempre foi um fator de resistência étnica, religiosa e cultural – ajudaram a botar mais lenha na fogueira da intolerância religiosa, uma praga que ninguém de bom senso pode querer para Salvador, cidade que já tem problemas em demasia para resolver.

O poeta Caetano Veloso já cantou o seu desejo de que um prefeito desse um jeito na Cidade da Bahia. Certamente precisaremos de gerações de bons prefeitos para que a nossa cidade saia do caos econômico e social em que se encontra. Acredito que nós, jornalistas, podemos fazer alguma coisa em benefício da cidade, na medida em que cumpramos o nosso papel, transmitindo informações de qualidade, bem apuradas e bem escritas. Sabemos que nem sempre isto acontece e precisamos estar vigilantes para corrigir erros e continuar perseguindo os acertos.
O que me parece inaceitável na reportagem do jornal A Tarde sobre a visita de Pinheiro ao terreiro Maraió Lage é que o repórter "informa" que a yalorixá teria autorizado fotografias no interior do templo e que o candidato é que teria se recusado a ser fotografado. Conversei hoje pela manhã com Mãe Jojó que assegurou ser "mentira" – ela jamais teria autorizado isto, inclusive porque nunca procedeu desta forma e não seria agora, em plena campanha eleitoral, que iria mudar o seu comportamento. É proibido, sim, fazer fotografias no interior do terreiro – é uma regra básica daquela Casa. A postura de Pinheiro foi respeitar o desejo da mãe-de-santo.
Outro aspecto que pode ser apontado como desmedido foi o tamanho da foto. É a primeira vez que o jornal publica uma foto daquela dimensão de um candidato na atual campanha. Uma foto do candidato saindo do terreiro depois de ter conversado com Mãe Jojó. O significado da foto foi construído pelo texto – este é um caso em que as palavras falam mais do que uma imagem. Por fim, acredito que este tipo de jornalismo é uma contribuição para atiçar o clima de intolerância religiosa que grassa em alguns setores da nossa cidade. Quem ganha com isto?"

domingo, 27 de julho de 2008

Registro 185: Sobre a cidade

É A CIDADE QUE HABITA OS HOMENS OU SÃO ELES QUE MORAM NELAS?

Nelson Brissac

As cidades habitam os homens ou são eles que moram nelas? Hoje nem a cidade sem rastros e sem história nos habita, nem os homens que não sabem mais ver habitam a cidade. A alma dos lugares parece ter-se perdido para sempre. Reduzidos a locais moldados pelo hábito, com seus habitantes conformados com traçados preestabelecidos. É o aparente paradoxo da obra de Benjamin: o encontro da cidade com os homens se dá quando estes percorrem terras desconhecidas ou quando se fazem estranhos em sua própria cidade.

Porque só assim conseguem descobrir onde na cidade ainda vibram sinais de vida, por onde passa o lençol freático que a inunda de rumores ou de onde vem a luz que por vezes a faz resplandecer. É preciso redescobrir a paisagem das cidades.
__________________________________________________________
BRISSAC, Nelson. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nelas? In: Revista da USP. Disponível em htttp://wwww.usp.br/revistausp/n15/fjeantexto.html Acesso em 21 de julho de 2004

sábado, 26 de julho de 2008

Registro 184: Passeio pela cidade

Ontem, aproveitando o último fim de semana de férias, sem ter muito o que fazer, resolvi andar sem rumo pelo centro da cidade. Gosto de fazer essas excursões, nem sempre prazerosas, mas estimulantes. A temperatura amena, muito mais outonal que invernal, torna a tarde agradável e a caminhada menos suarenta. Munido de paciência e de máquina fotográfica observo a sujeira das ruas, tão diferente da avenida próxima aos hotéis. Tomo o ônibus. Marcas da diferença.
Enquanto escrevo essas notas eu ouço Gal Costa. As canções do CD "O Sorriso do Gato de Alice" embalam o que me vem na cabeça. Tento reconstruir o passeio de ontem.
No ônibus, ouço a conversa de dois passageiros atrás do meu banco. A conversa me interessa. Controlo-me para não olhar e conferir quem são. Espero até eles descerem para conferir. A mulher comenta o que vê como se o outro passageiro não enxergasse a paisagem através da janela. Ou como se ele estivesse fazendo essa travessia depois de muitos anos. O casal desce nas proximidades do Campo Grande. Ele é bem idoso, muito bem vestido e de chapéu. Ela é mais jovem, deduzo ser sua filha. Veste-se como todas as mulheres que vejo pela cidade, calça apertada, blusa mais ainda, deixando entrever as dobras do corpo que tenta se acomodar ao modelo escolhido.
Resolvo descer na Piedade. Gosto da praça e mais de sua fonte. Ela me traz recordações da infância, quando estive pela primeira vez em Salvador. Lembro-me que a praça era mais bonita. Havia menos árvores, mas os arbustos floridos eram abundantes. Estátuas decoravam os canteiros e no meio do jardim a fonte, ainda existente. Hoje ela destoa do planejamento modernoso submetido ao jardim, mas continua charmosa, talvez o objeto mais belo na praça. Há também os bustos, um deles recentemente roubado, mas reposto, dos líderes da Conjuração Baiana, também chamada de Revolta dos Alfaiates. Justa homenagem, já que na praça foram enforcados.
Nos bancos que circundam o jardim muitos homens conversam. São idosos. Disseram-me ser aposentados que ali se reunem. Moradores de rua, mendigos e desocupados completam o cenário. Passantes se arrastam pra lá e prá cá num ritmo que às vezes me exaspera, principalmente quando apressado. Não é o caso nesse passeio sem compromisso. Mas noto sempre uma lentidão nas pessoas e pergunto-me sempre o motivo de elas pararem para conversar no meio do passeio público sem se importatr com o outro que às vezes tem que se espremer para passar rente a parede ou caminhar pela rua, visto que os dialogantes não conseguem perceber quem passa. Costumes, hábitos, questões culturais, dizem...
Passo pelo Convento da Lapa e me pergunto o que nele se abriga. Somente a igreja está aberta. Noto na entrada uma faixa com a seguinte frase: "Jesus te espera". De repente me ocorre que as igrejas disputam fiéis entre si usando os mecanismos da que condenam ou perseguem.
Passo pelo Central, o colégio onde fiz o curso clássico. Portanto sou antigo. A avenida Joana Angélica no meu tempo de calça azul-marinho e camisa de tricoline branco era mais bonita., o colégio também. Mas como disse o compositor popular, aqui, o que é construção já é ruína. Os casarões que sobraram ao longo da avenida estão descaracterizados. Viraram monstrengos arquitetônicos se é que se pode chamar de arquitetônico algo que não é nada. A feiúra impera.
As ruas estão cheias de caras de políticos com seus sorrisos, congeladas falsidades, tentando mostrar o que não são. Mas a fotografia revela e diz o que lhes vai na alma. Coitado de quem acredita em políticos. A paisagem está suja.
Dou com os costados nas imediações da Igreja de Santana, resolvo entrar para ver as imagens restauradas. A de São Benedito destruída por uma fanático fundamentalista e a de Santana. Constato que o templo está fechado, mas insisto. Por fim encontro uma porta lateral aberta.
Quase desisto de fotografar a imagem de Santana. Um ventilador preso na parede da secular igreja, como uma idéia fora do lugar, permanecia em todos os ângulos que me posicionei. Eu queria apenas a imagem e detalhes dos elementos decorativos, mas o ventilador intrometia-se e a objetiva capatava-o. De todos os lados que me posicionei estava ele lá, dizendo-se tecnologicamente moderno. Não deu para fotografar a outra imagem. Ela estva na sacristia e a luz não favorecia. Não quis usar o artifício de flash.
Os pássaros que cantam na minha janela atraídos pelo bebedouro com água e mel, cantam mais ainda quando ouvem as canções na voz de Maria das Graças. São dez horas de uma manhã de sábado. Há sol. O dia avanço com poucas promessas...
Descendo a ladeira em direção a Baixa dos Sapateiros, chegam-me aos ouvidos os acordes da canção de Ari Barroso. Ela toca somente em mim. Meu coração balança. E eu flâneur vou embalado no embalo da canção. Como não sei assobiar, cantarolo baixinhos as primeiras frases e ando por entre lojas de roupas populares até a Ladeira da Praça. Antes de subi-la, entro numa loja de coisas antigas numa daquelas ruas próxima a Casa de Angola na Bahia. Ruínas.
Retorno para casa, meu casúlo. Já é noite. Ao me aproximar sinto o cheiro de um bom incenso que vem do seu interior. A luz coada através das cortinas dão uma sensação de segurança.
Sinto o esplendor nas coisas.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Registro 183: Tem endereço certo

ALGEMAS

Raimundo Matos de Leão


Para te ter livre e teu,
para te amar sem medidas,
aprisionei o teu retrato
no meu álbum de recordações.

Rompi as cordas do egoísmo.
Algemei o teu retrato na memória.

Prisioneiro do meu álbum,
trancado na memória,
tatuado no meu corpo,
tenho-te livre para te amar.