sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Registro 336: Balanço 2010

2011 é de Oxum

Fui aprovado no concurso para professor da Escola de Teatro da UFBA em 3 de fevereiro e tomei posse no dia 21 de julho.

Em junho, encerramos as atividade do Curso de Artes Cênicas da Faculdade Social. Aproveito para agradecer aos colegas que estiveram desde o começo e os que permaneceram até o final. Nós acreditamos que seria possível e não desistimos. Desistiram por nós. Uma pena... Fizemos coisas legais e formamos alguns atores e professores de teatro. Todos os professores que passaram pelo curso prestaram concurso nas Universidades Federais e foram aprovados.

Recebi a notícia que meu primeiro livro para criança, Um muro no meio do caminho?? será reeditado pela Saraiva/Atual. Escrevi dois trabalhos que aguardam editores

Fiquei dez dias internado com dengue hemorrágica. Como é bom ter amigo e amigos. Todos solidários, prestativos, interessados. Não desejo para ninguém o tal mosquito e sua picada.

Não deu para ver a programação do FIAC, mas eu vi A Cela, Partiste, SiricoticoBenção, Torre de Babel, A Gente Canta Padilha, Dias de Folia, Monstro, Théâtre des Vampires (surpreendente, instigante, corajoso, principalmente para os atores e lógico para nós). Pouca coisa, mas dá pra perceber como anda a cena baiana. Faltou Sebastião, uma falha,  As Velhas e Pólvora e Poesia.

Os filmes que eu vi: Vincere de Marco Bellocchio (deslumbrante exercício cinematográfico), Diz Croquettes, Uma Noite em 67, As Melhores Coisas do Mundo, O Pequeno Nicolau, O Segredo dos Seus Olhos, Cabo do MedoMoscou, A Fita Branca, InvictusA Bela Junie . Vi muitos filmes, muitos que agora não dou conta de lembrar. Foram tantos. Sou viciado em cinema. Detestei A Origem.

Assis Valente (Coleção Folha - Raízes da MPB) tocou bastante no meu aparelho de som. Ainda não aderi ao MP3, mas fui obrigado a aderir ao celular. Ando agora com meu "Celulari" no bolso. Que praga! Ouvi bastante Michael Bublé (Crazy love e Call me irresponsible), Peter Gabriel (Stratch my back), Bryan Ferry (Olympia) e muitos dos meu velhos e estimados cd's, companheiros de todas as horas. Nelson Freire tocando Chopin (The nocturnes) foi uma constante, assim como Bach. Meus ouvidos não cansam de ouvir a Ária na Corda Sol da Suíte Número 3.

Os livros, Ah, os livros. Dei-me de presente tantos e não dei conta de ler todos. Já disse que compro livro como compro comida. Mas não posso deixar de lembrar de todos os Philip Roth, os novos e os antigos que eu não conhecia. Vão-se os dias e eu fico, as memórias de Edson Nery da Fonseca procurado desde que soube de seu lançamento e só conseguido depois que a Livraria Cultura se instalou naquela lonjura. Uma pena. O teatro e eu, de Sérgio Brito foi lido de um só fôlego. Depoimento corajoso do ator. Ganhei de Celso Nunes, que reencontrei na morando em Salvador, o seu livro escrito por Eliana Rocha, Celso Nunes sem amarras, coleção Aplauso. Da mesma coleção, Emílio di Biasi,  o tempo e a vida de um aprendiz. Foi, é, gratificante saber das histórias dos encenadores. Fui dirigido pelos dois e convivi mais próximo a Di Biasi, agora na Bahia, vou convivendo com Celso, a quem convidei para uma conversa na Escola de Teatro. O encontro foi realizado e agradou a quem esteve presente.

Lei O outono da idade média de Johan Huizinga, O poder da arte de Simon Schama e A Tragédia shakespeariana de A.C. Bradley. Intercalo a leitura pra ver se dou conta da pilha que se levanta na mesa de cabeceira. De Antonio Tabucchi, li O tempo envelhece depressa. Ganhei muitos livros presenteados por Fanny Abramovich, o último e ainda não lido é de Virgínia Woolf, O quarto de Jacob. A poesia de Cleise Mendes em O cruel aprendiz foi motivo de um texto no blog Cenadiária.

Escrevi artigos, alguns publicados. Um recusado. A recusa é parte da vida acadêmica. O problema é assumi-la.

O meu primeiro semestre na Escola de Teatro, eu vou esquecendo depois de retirar dele muitas lições. Não foi fácil. Um projeto, no qual investi energia e vi possibilidades para os atores, foi abortado. Se não consegui levar Carícia de Sergi Belbel para a cena, escrevi um artigo sobre a peça em fase de revisão. Por outro lado, dei aulas de História do Teatro para uma pequena turma do Bacharelado Interdisciplinar e avalio como superpositiva a convivência e o aprendizado dos estudantes.

Ah, dei conta de gratificante tarefa: escrevi Harildo Déda, nas dobras do tempo. O livro aguarda publicação. Os nossos encontros  foram momentos partilhados com emoção e alegria. Viagem no tempo, dele e minha.

Cultivei os poucos amigos, me aproximei de muitos companheiros, conheci pessoas, convivi com familiares. Mas continuo um solitário. Entreguei aos deuses os desafetos.

Fui visitado por Cid Pimentel, Fanny Abramovich, Tony Chou e Valéria, Luís e filhos, só faltou o meu afilhado Arthur. Gente que veio de longe

Acompanhei com assiduidade o ciclo de rituais no Terreiro do Gantois. Um descoberta, da mesma forma como foi tomar o chá no Centro Espiritual Estrela de Salomão, que é uma outra história, já que conhecia a bebida noutro lugar (São Paulo) e de um outro jeito.

Andei muito pela Cidade do Salvador e constatei o seu abandono. Abandono mesmo! Em agosto, fez 11 anos que retornei e fixei residência por aqui. Eu nunca vi a cidade tão suja, descuidada, entregue a incompetência dos atuais administradores e à nossa secular maleducação

Pra encerrar o balanço meio desbalançado - pois como dar conta dos trabalhos e dos dias, se a memória é seletiva - embora eu ache que não, faço duas citações: a primeira é de Simon Schama (O poder da arte, 2010, p. 10) e a segunda é de Mário Quintana, sem referência.

A grande arte tem péssimos modos. A silenciosa reverência da galeria [do teatro] pode levar você a acreditar, enganosamente, que as obras-primas são delicadas, acalmam, encantam, distraem - mas na verdade elas são truculentas. Impiedosas e astutas, as maiores pinturas [peças/encenações] lhe aplicam uma chave de cabeça, acabam com sua compostura e, ato contínuo, põem-se a reorganizar seu senso da realidade.

Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!

Que o ano novo venha novinho em folha, para que possamos viver a beleza da vida no que ela tem de esplendor e graça...

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Registro 335: Edward Albee, velho dramaturga continua com a mente afiada


Edward Albee
Vale a pena ler a entrevista do dramaturgo Edward Albee, publicada na Folha de S. Paulo (30.12.2010). Coube ao jornalista Lucas Neves entrevistar o autor de memoráveis textos, ainda inquietantes e de grande força no palco. Os grifos são de minha autoria.

Folha - A morte é uma presença marcante e até assume forma humana em peças de sua autoria, como "Três Mulheres Altas" e "A Senhora de Dubuque". Por que o senhor acredita que ela seja um mote tão forte para o teatro?

Edward Albee - Só há duas coisas que realmente importam. Os dois grandes eventos na vida de qualquer pessoa são seu nascimento e sua morte. E então você escreve sobre esse parêntese, sobre tudo o que acontece nesse intervalo. Você não pode escrever sobre seu nascimento porque não se lembra dele. Mas pode escrever sobre a morte, porque obviamente não tem memórias dela, mas espera por isso. Há vários tipos de morte. Muitas das minhas peças são sobre pessoas que estão vivas, mas morreram emocional e intelectualmente muito tempo atrás. Você pode estar morto no íntimo e ainda vivo.

As notícias que nos chegam sobre a cena americana incluem a estreia de uma adaptação musical de "Homem-Aranha" orçada em US$ 65 milhões (R$ 109,8 mi) e um número crescente de estrelas hollywoodianas buscando na Broadway legitimação. Que margem esse quadro deixa para provocação e tomada de riscos?

A maioria das pessoas quer um entretenimento seguro e amigável. Não desejam que seja um ato de agressão. E quase toda arte, em seu melhor, é um ato de agressão contra o status quo. Ou seja: está ali para levantar questões, não para fornecer respostas fáceis, simples.Mas se você faz perguntas difíceis, irrita muita gente. Essa é a função da arte, entretanto. Se ela não lhe saca do conforto, não é arte. O problema é que boa parte das pessoas tem preguiça intelectual.

De que maneira a arte pode ser a um só tempo agressiva e divertida?

Atraente é uma palavra perigosa, significa que as pessoas vão gostar. O que a arte precisa é ser mobilizadora de nossa mente e de nossas emoções. Ela não tem de nos deixar felizes, mas sim mais conscientes de nossos valores. E deve nos levar a interrogar se estamos dando conta ou não de nossas responsabilidades. Não entendo como alguém pode querer ir ao teatro só para ver atores voando suspensos por fios [referência a "Homem-Aranha"]. Vá ao circo, então! O teatro deve mobilizar o intelecto e o olhar.

Como o sr. vê o jogo de forças entre o teatro que chama de comercial e o de vocação mais experimental, hoje, nos Estados Unidos?

Grande parte das obras que são produzidas com um olhar no lucro que voltará para o investidor tende a ser uma perda de tempo. Por outro lado, grande parte dos trabalhos feitos só de amor ao teatro, ainda que não seja rentável, costuma ter mais valor. Esses são feitos em teatros pequenos, não comerciais, geralmente com temporadas mais curtas do que a porcaria comercial.

E por que isso acontece?

Porque as pessoas não querem ser incomodadas quando vão ao teatro. Anseiam por ter seus valores reafirmados -se é que se chega a discutir valores em cena. Não esperam vê-los questionados. Não estão ali para ser perturbadas. Querem perder tempo e estão dispostas a gastar muito dinheiro para isso.

O sr. é, então, pessimista em relação ao futuro do teatro?

O único problema da democracia é que você tem o que quer, em vez daquilo que você deveria querer. Numa democracia, se você é bem educado, pode tentar alcançar aquilo que deveria querer. Mas tem de ser instruído para fazer a democracia funcionar e para querer um teatro que faça algo útil. Quando eu ia à escola, tinha uma classe de formação cívica, em que aprendia como o governo trabalhava e o que significava um ato político. Não se ensina mais isso na América. Também tive aulas de música, literatura e artes visuais. Hoje, elas não são consideradas importantes. As preferências das plateias são ditadas pelo pouco que aprendem. Se o cardápio ensinado fosse mais amplo, a gama de interesses seria mais diversificada.

Diante desse quadro, por que insiste em abordar temas tabu, como bestialismo (em "A Cabra"), mastectomia voluntária e circuncisão reversa (ambas em "Homelife")?

Porque isso representa o que sou, o que me interessa. É sobre isso que acredito que as pessoas deveriam refletir. Mas esses temas ainda são capazes de ruborizar a plateia, tirá-la da zona de conforto? As pessoas prestam atenção de um jeito diferente quando estão diante de algo que é vendido como arte.

Já foi sugerido que o sr. se vale fartamente de sua biografia para criar peças. As mães de seu teatro seriam variações da figura de sua mãe adotiva, com quem o sr. mantinha uma relação difícil. Como equilibra realidade e ficção?

Estou limitado pelas fronteiras da minha imaginação. Escrevo o que consigo imaginar. Mas não limito a minha escrita a fatos que tenham acontecido comigo, porque não penso ser um objeto teatral tão interessante assim. Me considero uma pessoa interessante, mas não um tema próprio para uma peça.

Qual a diferença entre ser uma coisa e a outra?

Para que a história de alguém se preste ao teatro, suas ações têm de fazer sentido em termos dramáticos, não apenas intelectuais. Senão você transforma uma vida chata numa peça idem. Não consigo imaginar uma peça muito boa sobre [o filósofo alemão] Immanuel Kant, por exemplo.

Em suas peças, surge com frequência um elemento "intruso", alguém que vem de fora do cenário principal para (às vezes à própria revelia) derrubar máscaras sociais, revelar hipocrisias. Como o jovem casal convidado pelos protagonistas de "Virginia Woolf", ou o par e a filha visitantes de "Um Equilíbrio Delicado". O inferno são os outros?

Dramaturgia se apoia em conflitos emocionais, físicos, psicológicos ou políticos. E se você tem um grupo de pessoas que se conhece bem, está muito feliz e não tem sobre o que falar, não há conflito. O que você tem em mãos nesse caso é televisão.

Mas não dizem que a televisão americana vive uma nova era de ouro, com enredos provocativos, personagens bem construídos?

Por "era de ouro", querem dizer um período muito rentável. Só vejo programas informativos, que possam me ensinar algo. Gosto daqueles que tratam de animais, ciência, o cérebro. A minha leitura também segue essa mesma inclinação.
E peças, o sr. lê?

Leio porque quero saber o que está acontecendo naquela história. Se vejo uma montagem sem antes ter lido o texto, não tenho a certeza de estar assistindo à peça que o dramaturgo imaginou.Há uma hierarquia que deve ser respeitada, que determina que o texto venha antes, e a sua interpretação, depois. Essa deve apenas reforçar o que o autor concebeu. Em duas ocasiões, senti que isso não estava acontecendo, e o resultado foi horrível. Mas não quero falar sobre isso. Você tem de ser forte para garantir que a sua visão é o que a plateia vai receber, porque às vezes tentam abrandá-la, facilitá-la, torná-la menos perturbadora, mais digestiva. Diretores às vezes fazem isso, seguindo comandos de quem está colocando dinheiro na produção.

O sr. dá aulas na Universidade de Houston. Como é o contato com grupos de jovens dramaturgos?

Ensino porque aprendo ao fazê-lo. Sou muito egoísta. Se não existisse essa via de mão dupla, não funcionaria para mim. Sempre digo aos alunos: "Escrevam a primeira peça de todos os tempos. Inventem a forma, a estrutura, a ideia". Toda arte é reinvenção, não repetição. Arte ruim é repetição. É simples assim.

Um grito de liberdade contra a bárbarie.Grito por Jafar Panahi, o cineasta condenado pelo governo do Irã.
Seu crime: discordar.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Registro 334; Veja que deslumbramento

ACESSE!
VEJA QUANTO É DESLUMBRANTE O BARROCO
DA IGREJA DE SÃO FRANCISCO
SALVADOR - BAHIA

Viva a tecnologia quando a serviço da beleza!

http://www.onzeonze.com.br/blog360/toursaofrancisco/index.html

Um grito de liberdade contra a bárbarie.
Grito por Jafar Panahi, o cineasta condenado pelo governo do Irã. Seu crime: discordar.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Registro 333: Tempo de Natal e de outros eventos


Vivemos o Natal no Ocidente cristão.
Mas o Natal mercadoria é comemorado por todos no Ocidente capitalista.

O espírito natalino se espraia...

Eu me lembro dos Natais da minha infância quando meu pai preparava uma performance com Corró, um negro baixinho, vestido de Papai Noel e umas meninas amigas de minhas irmãs fantasiadas com trajes carnavalescos. Ao som daquela tristíssima canção de Assis Valente, Boas Festas, as meninas dançavam em torno de Papai Noel. O número era apresentado no palco do Cine Teatro Cliper, de propriedade de meu pai, antes da matinê.

Corró era festeiro. No carnaval, ele comandava uma batucada,  e desfilava montado numa burrinha feita de papelão e chitão toda enfeita de fitas coloridas, um objeto muito usado nos festejos populares do Nordeste. Mas no Natal, empenhava-se em representar Noel. Se Al Johnson pintado de preto fez o Cantor de Jazz, por que Corró não podia representar o bom velhinho sem precisar disfarçar sua pele negra?

Pensando bem era um anti-Natal. Mas nós, crianças de Ipirá, não víamos nada de anormal na performance, com seus elementos críticos. Talvez meu pai não imaginasse efeito tão insólito quando imaginou a cena. Havia ali naquele palco, cuja ribalta era iluminada com luzes verdes, vermelhas, azuis e amarelas, a junção de elementos tão díspares, mas integrados numa comunhão bem típica da nossa formação enquanto nação...

Lembro-me também do Natal em que meu pai armou um enorme presépio no salão do Grupo Escola Góis Calmon. Na época, já adolescente bem taludo e com veleidades artísticas, fui convocado para pintar montanhas cenográficas para compor um horizonte, cujo azul celeste indicava mais dia que noite.

Semanas antes de abrir o presépio aos visitantes, eu acompanhei meu pai pelas ruas da periferia distribuindo uma senha para as crianças e outra para os idosos. Tais senhas davam direito a um brinquedo, naturalmente para as crianças, e um cobertor Dorme-bem para os idosos. Dia marcado, ele recebia no salão do Grupo Escolar todos aqueles que tinham a senha. Lá estava eu servindo de ajudante.

Anos depois, o presépio era armado em casa. Depois de sua morte em janeiro de 1975, o presépio ficou como herança de minha irmã, que ao se tornar evangélica passou as imagens para outra pessoa. Não sei qual o fim do presépio.

Certa feita, meu pai cobriu uma árvore seca com algodão enfeitando-a com bolas enormes e luzes coloridas, mas não dessas luzes made in China. Eu, já rapaz, ingressando na universidade, achei um despropósito a tal árvore nevada. Essa árvore, penso agora, simbolizava para meu pai um sertão aguado, irrigado, próspero.

Tendo como suporte um tonel pintado de vermelho, a imensa árvore foi colocada na avenida principal da cidade. Mas na noite de 31 de dezembro, por conta de uma briga, botaram abaixo a Árvore de Natal. Os fofoqueiros se encarregaram de espalhar que o vandalismo era decorrente das inimizades político-partidária que meu pai amealhou durante parte de sua vida.

Embora crítico, eu gostava de ver a natalina árvore iluminada.

Para rememorar os festejos de meu pai, este ano armei um pequeno presépio. Fosse vivo, ele estaria comemorando 92 anos. Morreu meu pai aos 57, mas deixou um legado imaterial que sedimentou a minha vida e orientou as minhas escolhas.
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Teatro - Indicações para o Prêmio Braskem

Aproveito para parabenizar a atriz Margarida Laporte por ter sido indicada como Revelação por sua interpretação em Partiste, texto e encenação de Paulo Henrique Alcântara. A peça encerrou as atividades do curso de Artes Cênicas da Faculdade Social em junho passado. A delicada e tocante criação de Margarida infundia ternura e graça na cena. Inesquecível no personagem da Mãe. Além de atriz, Margarida é dona, com seu companheiro, da melhor sorveteria de Salvador, a Glacie Laporte.

Meus parabéns para Jacyan Castilho indicada para Melhor Atriz. Caso leve o prêmio é merecedora. Seu trabalho em A Cela é uma criação poderosa. Yumara Rodrigues também foi indicada, merece um prêmio especial por sua carreira. Não posso falar das outras atrizes indicadas (Andrea Elia, Claudia di Moura, Evelyn Buchegger), pois não vi suas atuações. São talentosas, tanto quanto Jacyan e Yumara.

Jarbas Olivier merece o prêmio de Melhor Ator.

Lamento não ter visto as encenações de As Velhas (direção de Luiz Marfuz) e de Pólvora e Poesia (direção de Fernando Guerreiro).

Livro

Soube pelo editor (Saraiva) que meu primeiro livro para criança Um Muro no Meio do Caminho?? será reeditado em 2011. O livro sai pela Atual, um selo da Saraiva. Na primeira edição, década de 80, o livro fazia parte de uma coleção organizada por Fanny Abramovich. Por conta do Plano Collor, a primeira edição, por outra editora, não mereceu a devida atenção. Mas quem podia prestar atenção em alguma coisa naquele momento, quando sofríamos o confisco do nosso dinheiro, ou melhor o roubo. Tristes tempos aqueles


Um grito de liberdade contra a bárbarie

Grito por Jafar Panahi, o cineasta condenado pelo governo do Irã. Seu crime: discordar.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Registro 333: Meninos, eu vi situação parecida por aqui.

Um grito de liberdade para Jafar Panahi, cineasta iraniano, autor de O Globo Azul e O Círculo.

O cineasta foi condenado a seis anos de prisão e proibido de filmar, escrever roteiros, dar entrevistas a meios de comunicação sejam eles locais ou estrangeiros por 20 anos.

É a morte de um artista!

E tudo isto porque discordou.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Registro 332: Dzi Croquettes - Libertários


Acabo de retornar da Sala de Arte Cinema da UFBA onde vi o documentária de Tatiana Issa e Raphael Alvarez, Diz Croquettes. Imperdível, principalmente para quem acha que faz vanguarda no tempo de agora e muda comportamentos e quebra paradigmas na cena.

Ao ver o filme, as emoções voltaram com a mesma força de outrora, quando eu vi pela primeira vez o grupo de rapazes, seu show, suas vidas. Lembro-me bem. Em 1974, recém chegado a São Paulo, estive na plateia do Teatro Maria Della Costa para ver duas, três, quatro vezes os Dzi Croquettes. Eu era um jovem ator, fazendo o meu primeiro espetáculo sob a direção de Márcio Aurélio também estreante. Nas folgas, íamos ver os Dzi, uma ilha libertária em meio à caretice reinante naquele momento, fim do terrível governo Médici. Seguíamos em bando aquele grupo alegre e sempre purpurinado nas festa, nos restaurantes, nos bares e boates. A purpurina era uma marca registrada do grupo, e os  tietes e  desbundados aderiram ao enfeite e a descompostura, botando os velhos hábitos e o bom comportamento de pernas para o ar, tanto na vida quanto na arte. Arte e vida misturavam-se sem nenhum pudor, artaudianamente. Grotesco e lirismo sem pudor, deboche desregrado, vitalidade cênica exercida com talento, com técnica. A qualidade dos atores era visível e a técnica rigorosa e disciplinada de Lennei Dale aparecia na performance de cada um. A cena sob o som de Assim Falou Zaratustra era impactante. Nada era improvisado, embora houvesse improviso. O ritmo da cena contagiava e não havia buraco nas duas horas do espetáculo. Valorosos rapazes. Os sobreviventes, são hoje senhores, alguns com visual menos Croquette, mas ainda brilha em cada um o fulgor de quem se sabe dono da história, a individual e a coletiva. A rapaziada era da pesada, mas de alma bailarina.

Era tanta purpurina que se a polícia quisesse encontrar alguém, bastava seguir o brilho colorido que se espalhava do palco para a plateia e impregnava roupa e corpo.

Em cena, Wagner, Cláudio, Ciro, Reginaldo, Leni, Carlinhos, Elói, Bayard, Benedito e outros que não me lembro agora, depertavam as mentes e os corpos adormecidos e passavam aquela energia desreprimida. Apontavam caminhos, negando o discurso da direita e desconfiando das palavras de ordem da esquerda. Riam de tudo e, sobretudo deles mesmos.

Atitude contracultural, marcadamente libertária, o posicionamente dos rapazes, nem macho nem fêmea, mas andrôgino, fazia balançar as certezas de muita gente. Para os artistas que se deixaram contaminar pela coragem, deboche e técnica (os Croquettes dançavam à bessa, cantavam bem e eram ótimos intérpretes), a energia que rolava no palco serviu como um indicador para romper com o fechamento da cena. Cena que tinha medo de ser alegre, pois comprometida em denunciar as mazelas decorrentes da ditadura militar. Encontrando uma forma desviante do discurso engajado, os Diz Croquettes estampavam a necessária liberdade e noutro tom figuravam o poético e o político noutra vertente.

Quem aspirou o ar soprado do palco Dzi, não foi mais o mesmo. E se alguém duvida, basta ver o documentário. Lá estão os depoimentos de muita gente, há também emoção verdadeira, sem pieguice, mesmo quando Tatiana  Issa lembra dos que morreram como seu pai, iluminador do espetáculo.

A maioria não sabe da existência do grupo. Ele ficou restrito ao eixo Rio-São Paulo e fez muito sucesso na França. Sucesso de verdade. Estiveram na Bahia, mas aqui o grupo se desfez. A separação, ainda que temporária, deixou marcas na família Croquette, Lennie Dale se afastou. Mas em seguida, eles conseguiram fazer dois espetáculos, Romance, de pouca repercussão e outro visto somente em Paris.

Vi Romance no Teatro Ruth Escobar, no elenco o meu amigo Vicente Di Franco, paulista que morou em Salvador e esteve no elenco de Marylin Miranda, espetáculo de José Possi Neto, que tinham muito da estética dos Croquettes.

Se você está pensando em show de travesti. Esqueça! Nada contra, mas os Croquettes passavam ao largo de tal manifestação. Artisticamente a coisa era bem diversa. Muita coisa do que se vê na cena de hoje, ainda que seus realizadores não saibam, é fruto da criatividade transgressora de um grupo que se lança e se firma num cenário hostil.

É certo que o ideário contracultural em curso dava margem e sustentava tal acontecimento e o grupo, intuitivamente, percebeu a hora e a partir daí organizou-se. Pelas brechas, como dizia o poeta Torquato Neto, encontraram uma maneira de furar o estabelecido na cena teatral, criando um espaço vital para sua expressão. Reiventaram a família sem a caretice da instituição, num momento em que viver comunitariamente era um desejo realizado por muitos. E muitos saíram de casa para viver em comunidade, um jeito diferente de encarar o mundo. Alternativas foram criadas e o mundo tornava-se outro, ainda que as condições fossem de amargar.

O texto abaixo foi retirado da página da Enciclopéia Itáu Cultural - Teatro e completa as falhas da minha memória.

Grupo carioca irreverente, alinhado à contracultura, à criação coletiva e ao teatro vivencial, que faz do homossexualismo uma bandeira de afirmação de direitos.


O conjunto cria, em 1972, o espetáculo Gente Computada Igual a Você, que se origina de um show de boate, posteriormente levado para São Paulo, na casa noturna TonTon. A realização transferida para o Teatro 13 de maio, faz enorme sucesso. Na equipe criadora do espetáculo constam os nomes do coreógrafo Lennie Dale, do autor Wagner Ribeiro de Souza, e dos bailarinos Cláudio Gaya, Cláudio Tovar, Ciro Barcelos, Reginaldo de Poli, Bayard Tonelli, Rogério de Poli, Paulo Bacellar, Benedictus Lacerda, Carlinhos Machado e Eloy Simões.

Gente Computada apresenta números cantados, dublados e dançados, entremeados por monólogos que equacionam as experiências de vida dos integrantes. Tais textos de interligação, de autoria de Wagner Ribeiro, primam pela ironia, duplo sentido e tom farsesco. A montagem recicla práticas da antiga revista musical, do show de cabaré e da tradição norte-americana do entertainment. As coreografias de Tinindo Trincando, com música dos Novos Baianos, e Assim Falou Zaratustra, em versão dance e technopop, constituem momentos altos do espetáculo. Figurinos ousados, maquiagem pesada e o contraste dos corpos masculinos em trajes femininos imprimem ao espetáculo tons de grotesco, de deboche e espírito ferino. Um árduo trabalho de interpretação e de dança é empreendido pelo bailarino Lennie Dale, para transformar o grupo numa trupe artística, elogiada pela crítica.

Em Paris, os Dzi Croquettes conhecem a consagração internacional. Em 1973 e 1974, fazem longas temporadas no Le Palace e, entre outras atividades, participam do filme Le Chat et la Souris, de Claude Lelouch. Uma parte da equipe cria um novo espetáculo, Romance, de Cláudio Tovar e Wagner Mello, 1976, que não alcança a mesma projeção do anterior. Posteriormente um elenco feminino vem agregar-se ao núcleo fundador, mas essa alternativa não amplia as propostas iniciais e, pouco tempo depois, o grupo se dissolve.

Inspirado no conjunto norte-americano The Coquettes e no movimento gay atuante na off-Broadway, a equipe utiliza equacionar conteúdos brasileiros para falar de nossa realidade, desde a repressão sexual até a censura e a ditadura. O grupo está na origem de uma corrente que veio a se desenvolver algum tempo depois, vinculada ao travestismo, ao deboche, à exploração do virtuosismo dos membros do elenco, à caricatura, à farsa e à comédia de costumes. [...].

sábado, 4 de dezembro de 2010

Registro 331: Argumentos contra a estupidez

Violência contra homossexuais

Drauzio Varella

A HOMOSSEXUALIDADE é uma ilha cercada de ignorância por todos os lados. Nesse sentido, não existe aspecto do comportamento humano que se lhe compare.

Não há descrição de civilização alguma, de qualquer época, que não faça referência a mulheres e a homens homossexuais. Apesar de tal constatação, esse comportamento ainda é chamado de antinatural.

Os que assim o julgam partem do princípio de que a natureza (leia-se Deus) criou os órgãos sexuais para a procriação; portanto, qualquer relacionamento que não envolva pênis e vagina vai contra ela (ou Ele).

Se partirmos de princípio tão frágil, como justificar a prática de sexo anal entre heterossexuais? E o sexo oral? E o beijo na boca? Deus não teria criado a boca para comer e a língua para articular palavras?

Se a homossexualidade fosse apenas uma perversão humana, não seria encontrada em outros animais. Desde o início do século 20, no entanto, ela tem sido descrita em grande variedade de invertebrados e em vertebrados, como répteis, pássaros e mamíferos.

Em alguma fase da vida de virtualmente todas as espécies de pássaros, ocorrem interações homossexuais que, pelo menos entre os machos, ocasionalmente terminam em orgasmo e ejaculação.

Comportamento homossexual foi documentado em fêmeas e machos de ao menos 71 espécies de mamíferos, incluindo ratos, camundongos, hamsters, cobaias, coelhos, porcos-espinhos, cães, gatos, cabritos, gado, porcos, antílopes, carneiros, macacos e até leões, os reis da selva.

A homossexualidade entre primatas não humanos está fartamente documentada na literatura científica. Já em 1914, Hamilton publicou no "Journal of Animal Behaviour" um estudo sobre as tendências sexuais em macacos e babuínos, no qual descreveu intercursos com contato vaginal entre as fêmeas e penetração anal entre os machos dessas espécies. Em 1917, Kempf relatou observações semelhantes.

Masturbação mútua e penetração anal estão no repertório sexual de todos os primatas já estudados, inclusive bonobos e chimpanzés, nossos parentes mais próximos.

Considerar contra a natureza as práticas homossexuais da espécie humana é ignorar todo o conhecimento adquirido pelos etologistas em mais de um século de pesquisas.

Os que se sentem pessoalmente ofendidos pela existência de homossexuais talvez imaginem que eles escolheram pertencer a essa minoria por mero capricho. Quer dizer, num belo dia, pensaram: eu poderia ser heterossexual, mas, como sou sem-vergonha, prefiro me relacionar com pessoas do mesmo sexo.

Não sejamos ridículos; quem escolheria a homossexualidade se pudesse ser como a maioria dominante? Se a vida já é dura para os heterossexuais, imagine para os outros.

A sexualidade não admite opções, simplesmente se impõe. Podemos controlar nosso comportamento; o desejo, jamais. O desejo brota da alma humana, indomável como a água que despenca da cachoeira.

Mais antiga do que a roda, a homossexualidade é tão legítima e inevitável quanto a heterossexualidade. Reprimi-la é ato de violência que deve ser punido de forma exemplar, como alguns países o fazem com o racismo.

Os que se sentem ultrajados pela presença de homossexuais que procurem no âmago das próprias inclinações sexuais as razões para justificar o ultraje. Ao contrário dos conturbados e inseguros, mulheres e homens em paz com a sexualidade pessoal aceitam a alheia com respeito e naturalidade.

Negar a pessoas do mesmo sexo permissão para viverem em uniões estáveis com os mesmos direitos das uniões heterossexuais é uma imposição abusiva que vai contra os princípios mais elementares de justiça social.

Os pastores de almas que se opõem ao casamento entre homossexuais têm o direito de recomendar a seus rebanhos que não o façam, mas não podem ser nazistas a ponto de pretender impor sua vontade aos mais esclarecidos.

Afinal, caro leitor, a menos que suas noites sejam atormentadas por fantasias sexuais inconfessáveis, que diferença faz se a colega de escritório é apaixonada por uma mulher? Se o vizinho dorme com outro homem? Se, ao morrer, o apartamento dele será herdado por um sobrinho ou pelo companheiro com quem viveu por 30 anos?

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Folha de S. Paulo, 4 de dezembro de 2010

sábado, 20 de novembro de 2010

Registro 330: Sou contra

DA MESMA MANEIRA QUE SOU CONTRA BINGOS FINANCIANDO A SAÚDE, SOU CONTRA A CPMF, TENHA O NOME QUE TIVER O TAL IMPOSTO. QUANDO DE SUA VIGÊNCIA DURANTE 1O ANOS, OS SERVIÇOS DE SAÚDE PÚBLICA CONTINUARAM DEFICIENTES. QUEM DELES PRECISOU E AINDA PRECISA SABE BEM O QUE É UM HOSPITAL OU POSTO DE SAÚDE DO ESTADO.

A MINHA CONSIDERAÇÃO NÃO AFIRMA A EFICIENTE QUALIDADE DAS CLÍNICAS E HOSPITAIS PARTICULARES. OUTRO DIA, FIQUEI  3 HORAS ESPERANDO PARA SER ATENDIDO POR UM MÉDICO, EM UM DOS HOSPITAIS MAIS CONHECIDOS E TRADICIONAIS DE SALVADOR. 

A CONSULTA ESTAVA MARCADA PARA AS 18:00H. DEPOIS DE MUITO ESPERAR, VENDO OUTROS PACIENTES NA MINHA FRENTE, AGENDADOS PARA O  MESMO MÉDICO, EU DESISTI. SE ASSIM NÃO PROCEDESSE, SAIRIA DO CONSULTÓRIO SABE-SE LÁ QUE HORAS. EU CHEGUEI PARA CONSULTA ÀS 17:00H.

domingo, 14 de novembro de 2010

Registro 329: Bons argumentos sobre "Caçadas de Pedrinho"

Caçada a Monteiro Lobato

MARCELO COELHO

EXISTE RACISMO na obra de Monteiro Lobato? A resposta, definitivamente, é sim. Leia-se, por exemplo, o que ele escreveu num artigo de jornal, reproduzido em "Ideias de Jeca Tatu" sem mudanças, nas diversas edições que o livro teve ao longo da vida do autor.

"Enquanto colônia, o Brasil era uma espécie de ilha de Sapucaia de Portugal. Despejavam cá quanto elemento antissocial punha-se lá a infringir as Ordenações do Reino. E como o escravo indígena emperrasse no eito, para aqui foi canalizada de África uma pretalhada inextinguível."

Mesmo para os padrões da época (o artigo foi escrito no começo do século 20), não deixa de soar chocante e incomum esse "pretalhada inextinguível".

Certo que portugueses, índios, italianos e alemães não recebem tratamento muito melhor. O afrancesamento das elites, Lobato repetiu o tema várias vezes, era coisa de "macacos".

Mas o "pretalhada inextinguível" não se apaga facilmente da memória, quaisquer que fossem as intenções caricaturais e polêmicas do escritor.

Isso está na obra para adultos de Monteiro Lobato, hoje bem menos levada a sério do que sua literatura infantil.
NEGRA COMO PRONOME Passo às "Caçadas de Pedrinho", que não é o único livro a fazer de Tia Nastácia uma personagem caricatural, insistindo em descrever seus traços africanos.

A todo momento, o leitor é lembrado de que a cozinheira é "preta". Ela arregala os olhos como "duas xícaras de chá"; resmunga, "pendurando o beiço"; apavorada ao ver um rinoceronte, cai desmaiada no chão, e o narrador comenta: "desmaio de negra velha é dos mais rijos".

Mais do que isso, a referência à cor serve o tempo todo como uma espécie de pronome, substituindo "Nastácia", para evitar a repetição do nome próprio: "a negra aproximou-se", "a pobre negra era ainda mais desajeitada do que Rabicó", "a pobre negra se convenceu" etc. etc.

Nenhum livro hoje em dia, para crianças ou para adultos, usaria esse tipo de vocabulário, e por mais que se ironize a ideia do "politicamente correto", há inegável progresso em evitar esse tipo de caracterização.

Discuto mais adiante o teor do famigerado parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) sobre "Caçadas de Pedrinho", que antes de mais nada notou o que é visível a olho nu: um palavreado como o de Lobato não se admite mais atualmente.

Observo apenas, no recenseamento desses termos, que um trecho do livro não é tão racista quanto parece. Nastácia é comparada a uma "macaca de carvão" quando, em desespero, sobe rapidamente num mastro de são Pedro para escapar das feras da floresta. O macaco de carvão, ou mono-carvoeiro (Brachyteles arachnoides), tem pelo claro, quase loiro.

A VELHA, O ALEMÃO Dito isso, o tal uso "pronominal" do termo "negra" para substituir "Nastácia" tem equivalentes em outros personagens do livro. Dona Benta é por vezes chamada de "a velha", e o dono de um circo, o sr. Fritz, recebe imediatamente o tratamento de "o alemão". Por sua vez, Emília, sendo interesseira e boa comerciante, é chamada de "ciganinha".

Um exemplo mais recente, que não é de Lobato. Reportagem policial publicada na Folha em julho de 1969 referia-se à testemunha de um assassinato como "a negra Angelina Maria de Jesus (...) gorda e baixa, de nariz achatado e grande". A reportagem sempre usa o termo "negra" ao referir-se a ela.

Ruim, sem dúvida, que no ano de 1969 ainda se escrevesse assim. O caso talvez nos advirta para ver com mais estranheza, por exemplo, alguma notícia nos dias de hoje que fale de um "coreano" ou um "boliviano" assaltado no centro da cidade, em vez de mencionar apenas sua condição, digamos, de comerciante ou de turista.

Voltando a Tia Nastácia, vale notar que sua cor também acaba introduzindo um certo componente "estrangeiro" ao conjunto dos personagens do "Sítio do Picapau Amarelo".

Enquanto Dona Benta é uma velhota assustada, que acaba propiciando as condições para as aventuras dos netos, Tia Nastácia assume um papel mais rico e contraditório. É ela quem toma distância do mundo fantástico do Sítio; crédula no que diz respeito a sinais da cruz, é bem mais cética do que Dona Benta quanto estão em jogo as invencionices de Emília e as aventuras de Pedrinho.

Para Tia Nastácia, o marquês de Rabicó é, antes de tudo, um leitão. Ela corresponde a um "mundo adulto", mais realista, que Dona Benta encarna apenas imperfeitamente.

Quando Emília propõe a Tia Nastácia que compre o rinoceronte, a cozinheira responde sem paciência nenhuma: "Era só o que faltava (...) Se fosse uma chocolateira eu fazia negócio, porque a minha está vazando".

Por fim, quando todos perdem o medo do rinoceronte e o atrelam a um carrinho para passear, ela é a última a aceitar a novidade. É assim que termina o livro, numa frase "antirracista": "Tenha paciência", diz Nastácia, ou melhor, "a boa criatura", expulsando Dona Benta de seu posto no carrinho. "Agora chegou a minha vez. Negro também é gente, sinhá..."


RACISTA AFINAL? Para resumir. Existiria, para usar o clichê, um "conteúdo racista" em "Caçadas de Pedrinho"? Conteúdo, propriamente, não, porque o livro não diz que os negros seriam uma "raça inferior" etc. etc. Mas há "formas de expressão" racistas ao longo de todo o texto, mesmo quando, no último parágrafo, os direitos de Nastácia à igualdade são reivindicados (e atendidos).

Seria essa incômoda e deseducativa presença de vocabulário racista o suficiente para banir "Caçadas de Pedrinho" das escolas brasileiras?

Certamente não. Mas o recente parecer do Conselho Nacional de Educação nunca propôs isso. O relatório, escrito pela professora Nilma Lino Gomes, merece ser lido na íntegra, e procura resolver com equilíbrio uma situação burocrática e legal das mais complexas.

Trata-se de responder à reclamação de um funcionário da secretaria de Educação do Distrito Federal, que notou a seguinte ambiguidade. Uma edição recente do livro, publicada em 2009, vinha com adaptações às novas normas ortográficas e com uma nota explicando que Lobato, ao fazer Pedrinho matar uma onça, vivia numa época em que os cuidados com o ambiente não eram tão intensos como hoje.

O "ecologicamente correto", até que bastante injusto com Lobato, um dos primeiros a denunciar queimadas no Brasil, impôs notas e advertências na nova edição de "Caçadas de Pedrinho".

NOTAS DEMAIS Por que não colocar o mesmo tipo de coisa no tocante ao vocabulário racista?

É isso o que sugere o relatório do CNE, sem deixar de enfatizar o caráter clássico da obra. Pode-se discordar, talvez, de tantos cuidados pedagógicos com notas e contextualizações, como se professores e alunos fossem incapazes de tocar com as próprias mãos num texto carregado de radioatividade política.

Pode-se imaginar que, no futuro, notas e explicações sobre "ciganinhas", "alemães", "velhas" ou o que quer que seja terminem sobrecarregando o livro com a seriedade do politicamente correto.

Será o momento em que as aventuras de Pedrinho, Narizinho e Emília deixarão, em definitivo, de divertir os seus leitores e tratá-los com inteligência, para tornarem-se apenas uma "maçaroca" e uma "caceteação", como diria Lobato, a serem enfiadas pela goela das crianças.

"A todo momento, o leitor é lembrado de que a cozinheira é "preta". Ela arregala os olhos como "duas xícaras de chá"; resmunga, "pendurando o beiço"; apavorada ao ver um rinoceronte, cai desmaiada no chão, e o narrador comenta: "desmaio de negra velha é dos mais rijos"

"Enquanto Dona Benta é uma velhota assustada, que acaba propiciando as condições para as aventuras dos netos, Tia Nastácia assume um papel mais rico e contraditório. É ela quem toma distância do mundo fantástico do Sítio; crédula no que diz respeito a sinais da cruz, é bem mais cética do que Dona Benta"

"Existiria um "conteúdo racista" em "Caçadas de Pedrinho"? Conteúdo, propriamente, não, porque o livro não diz que os negros seriam uma "raça inferior". Mas há "formas de expressão" racistas ao longo de todo o texto, mesmo quando, no último parágrafo, os direitos de Nastácia à igualdade são reivindicados"

Folha de S. Paulo, Ilustríssima, 14 de outubro de 2010


sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Registro 328: Caça à Pedrinho

Visitando Cenadiária, Fanny Abramovich ficou perplexa por não encontrar nenhum texto de minha autoria sobre a proibição do Conselho Nacional de Educação ao livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Ela reclamou por e-mail e enviou-me um texto de Marisa Lajolo sobre a questão. Concordei com Fanny, uma lobatiana por excelência, uma encarnação de Emília entre nós. Por conta da minha desatenção, registro o que penso sobre o assunto.

É isso aí, meu camarada! Em nome do politicamente correto, atitude sustentada na hipocrisia, paraceristas resolveram censurar um dos livros de Monteiro Lobato, Caçadas de Pedrinho. Os tais zelosos censores prestaram um desserviço ao Ministério da Educação, pois o Conselho Nacional de Educação - CNE, acolheu a recomendação de não distribuição do livro para as bibliotecas do Brasil varonil. Alegam os pareceristas, com o aval do Conselho, que o livro tem conteúdo ofensivo aos negros, portanto veicula um conteúdo racista. Além disso, argumentam que os nossos professores não são competentes para lidar com o assunto junto aos seus alunos. Um absurdo atrás do outro e vamos em frente tendo que engolir mais uma do "festival de besteiras" que assola o país.

Lembro-me de ter lindo os livros para criança de Monteiro Lobato indicados e oferecidos por uma tia professora, que embora crítica de Lobato não proibiu que eu descobrisse as maravilhas de sua escrita, o jogo imaginativo e inventivo de suas narrativas, uma fabulação que me fazia preso às páginas de cada aventura. Após leituras tão agradáveis e educativas, sem a chatice, que muitas vezes envolve a educação, eu não me vi menosprezando negros, nem achando que eles são seres de segunda. Longe de mim. Em minha família e em minha casa sempre foram tratados como qualquer outra pessoa. Se eram amigos, recebiam o tratamento que se dispensa a amigos, se trabalhavam para nós, eram reconhecidos como trabalhadores e respeitados, assim como os brancos. Se eram desconhecidos, eram tratados educadamente.  Assim, não fui deformado pela escrita de Lobato nem por outra qualquer. Os livros foram e são aulas de prazer e me disseram da imensidão e do ínfimo que existe em mim, no outro e no mundo. Portanto,sinto-me confortável para dizer que tantos os pareceristas quanto os doutos do Conselho não estão certos ao censurar Caçadas de Pedrinho. Bola fora! Uma constante...

Ao 18 anos, passou pela porta de casa um vendedor de livros oferecendo a colação de Monteiro Lobato, com todos os livros encadernados em vermelho e com as primeiras ilustrações da obra. Para espanto do meu pai, que não entendia como um jovem na idade em  que eu estava tinha interesse por livros destinado às crianças, pedi que ele adquirisse a coleção. Com certa arrogância, natural em jovens que se acham sabedores de tudo, disse-lhe da importância de ter tais livros em casa. Mais ou menos convencido pelo filho que estudava em Salvador, ele comprou a caixa com todas as obras. Que alegria... e reli cada um durante os três meses de férias em Ipirá, sob o calor do verão, espichado em uma rede, ou deitado na esteira. Inesquecíveis  férias. Inesquecível Lobato. Ah, e naquele tempo, eu andava meio aborrecido com ele, por conta da crítica azeda que fez ao trabalho de Anita Malfati. Críticas que a minha professora de Português no Colégio Central não perdoava e destilava suas inteligentes farpas contra o escritor.

Essas são lembranças de um tempo não politicamente correto ou politicamente certo na correção de deixar que o outro pense por si e faça suas escolhas

Parece-me estranho e não me entra pela cabeça os argumentos dos pareceristas. Afirmam eles que Tia Nastácia é chamada de negra, bem como a África é mencionada como uma lugar de origem de animais ferozes. Não vejo aí nenhuma deformação, nem inverdade, nem preconceito. Tia Nastácia, uma grande e valorosa criação de Lobato, é negra. Preconceito seria chamá-la de branca, amarela, vermelha, na tentativa de dizer uma coisa por outra. Quanto à África ser um lugar de bichos ferozes, não vejo motivo para tanto alvoroço. Nas histórias que li passadas no Continente, o que me fascinava também era o fato de ele ter em suas florestas e savanas bichos que eu só conhecia de revista ou no cinema. E não são ferozes seus leões, tigre, panteras?

Na minha mente de criança, nunca associei animais ferozes da África com seus humanos habitantes. Nem chamei negros de urubu, macaco ou outra coisa qualquer. Nem matei passarinho, nem atirei o pau no gato. Não arreliei nem velho nem gordo. E embora sem entender os motivos da loucura nunca fiz pouco dos loucos que andavam pelas ruas da cidade em que passei minha infância. E não conclua pela minha inocência e pureza. Fiz as minhas maldades, tive os meus desejos inconfessos e fui assustado com as advertências e ameaças do fogo do Inferno. Lembro-me bem de ter perdido um carnaval inteirinho, castigado que fui por ter escorraçado Radar, o cachorro de uma tia que apareceu no meu caminho na hora errada. Mereci o castigo. Ele foi educativo, esclarecedor...

Na minha santa ingenuidade, penso que se há gente feroz, elas se encontram em qualquer lugar do planeta, nas Américas, Europa, África e Ásia.  

O patrulhamento dos pareceristas e do Conselho ignora algo elementar: o leitor, seja ele adulto ou criança, tem a capacidade de interpretar e sua interpretação passa por muitos níveis. É o que diz Marisa Lajolo em texto sobre o assunto:

"É um grande avanço nos estudos literários esta noção mais aberta do que se passa na cabeça do leitor quando seus olhos estão num livro. Ela se fundamenta no pressuposto segundo o qual, dependendo da vida que teve e que tem, daquilo em que acredita ou desacredita, da situação na qual lê o que lê, cada um entende uma história de um jeito.  Mas essa liberdade do leitor vive sofrendo atropelamentos. De vez em quando, educadores de todas as instâncias – da sala de aula ao Ministério de Educação -   manifestam desconfiança da capacidade de os leitores se posicionarem de forma correta  face ao que lêem."

Além disso desacreditam na capacidade do professorado. Se não confiam nos professores é porque a educação no país está abaixo de uma linha aceitável. Os professores frequentaram escolas e se não foram bem formados a culpa recai em quem? Aí, caímos num círculo vicioso. E parece que ninguém no Ministério nem no Conselho está interessado em reverter esse quadro, romper o círculo. Os pequenos avanços não minimizam a questão. Estudantes saem da escola sem ter aprendido nada ou quase nada.E sem nada saber não saberão de Lobato.

Sem essa de censurar o que cada um quer e deve ler. Onde está o direito de escolher? Onde está o direito de a criança entrar em contato com o mundo de Lobato e forma um espírito crítico? A tal vigilância  está dirigida para o lugar errado. Um ideia fora do lugar.

QUERO MAIS E MAIS LIVROS DE LOBATO E VOU COMPRAR ALGUNS EXEMPLARES DE CAÇADAS DE PEDRINHO PARA PRESENTEAR CRIANÇAS. ELAS SÃO MUITO ESPERTAS E SABERÃO APRECIAR AS AVENTURAS E NÃO CONFUNDIR ALHOS COM BUGALHOS.

Segue abaixo o texto de Marisa Lajolo.


Quem paga a música escolhe a dança ?

Marisa Lajolo
Prof. Titular (aposentada) da UNICAMP; Prof. da Universidade Presbiteriana Mackenzie;  Pequisadora Senior do CNPq.; Organizadora ( com João Luís Ceccantini)  do livro  de Monteiro Lobato livro a livro (obra infantil) , obra que recebeu o Prêmio Jabuti 2010 como melhor livro de Não Ficção.


“Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, está em pauta e é bom que esteja, pois é um livro maravilhoso.

Narra as aventuras da turma do sítio de Dona Benta primeiro às voltas com a bicharada da floresta próxima e, depois, com uma comissão do governo encarregada de caçar um rinoceronte fugido de um circo. Nos dois episódios prevalecem o respeito ao leitor, a visão crítica da realidade, o humor fino e inteligente.

Na primeira narrativa, a da caçada da onça, as armas das crianças são improvisadas e na hora agá não funcionam. É apenas graças à esperteza e inventividade dos meninos que eles conseguem matar a onça e arrastá-la até a casa do sítio. A morte da onça provoca revolta nos bichos da floresta e eles planejam vingança numa assembléia muito divertida : felinos ferozes invadem o sítio e –de novo- é apenas graças à inventividade e esperteza das crianças ( particularmente de Emília) que as pessoas escapam de virar comida de onça.

Na segunda narrativa, a fuga de um rinoceronte de um circo e seu refúgio no sítio de dona Benta leva para lá a Comissão que o governo encarregou de lidar com a questão. Os moradores do sítio desmascaram a corrupção e o corpo mole da comissão, aliam-se ao animal cioso da liberdade conquistada e espantam seus proprietários. E, batizado Quindim, o rinoceronte fica para sempre incorporado às aventuras dos picapauzinhos.

Estas histórias constituem o enredo do livro que parecer recente do Conselho Nacional de Educação (CNE), a partir de denúncia recebida, quer proibir de integrar acervos com os quais programas governamentais compram livros para bibliotecas escolares . O CNE acredita que o livro veicula conteúdo racista e preconceituoso e que os professores não têm competência para lidar com tais questões. Os argumentos que fundamentam as acusações de racismo e preconceito são expressões pelas quais Tia Nastácia é referida no livro, bem como a menção à África como lugar de origem de animais ferozes.

Sabe-se hoje que diferentes leitores interpretam um mesmo texto de maneiras diferentes. Uns podem morrer de medo de uma cena que outros acham engraçada. Alguns podem sentir-se profundamente tocados por passagens que deixam outros impassíveis. Para ficar num exemplo brasileiro já clássico, uns acham que Capitu ( D. Casmurro, Machado de Assis, 1900) traiu mesmo o marido, e outros acham que não traiu, que o adultério foi fruto da mente de Bentinho. Outros ainda acham que Bentinho é que namorou Escobar .. !

É um grande avanço nos estudos literários esta noção mais aberta do que se passa na cabeça do leitor quando seus olhos estão num livro. Ela se fundamenta no pressuposto segundo o qual, dependendo da vida que teve e que tem, daquilo em que acredita ou desacredita, da situação na qual lê o que lê, cada um entende uma história de um jeito. Mas essa liberdade do leitor vive sofrendo atropelamentos. De vez em quando, educadores de todas as instâncias – da sala de aula ao Ministério de Educação- manifestam desconfiança da capacidade de os leitores se posicionarem de forma correta face ao que lêem .

Infelizmente, estamos vivendo um desses momentos.

Como os antigos diziam que quem paga a música escolhe a dança, talvez se acredite hoje ser correto que quem paga o livro escolha a leitura que dele se vai fazer. A situação atual tem sua (triste) caricatura no lobo de Chapeuzinho Vermelho que não é mais abatido pelos caçadores, e pela dona Chica-ca que não mais atira um pau no gato-to. Muda-se o final da história e re-escreve-se a letra da música porque se acredita que leitores e ouvintes sairão dos livros e das canções abatendo lobos e caindo de pau em bichanos . Trata-se de uma idéia pobre, precária e incorreta que além de considerar as crianças como tontas, desconsidera a função simbólica da cultura. Para ficar em um exemplo clássico, a psicanálise e os estudos literários ensinam que a madrasta malvada de contos de fada não desenvolve hostilidade conta a nova mulher do papai, mas – ao contrário- pode ajudar a criança a não se sentir muito culpada nos momentos em que odeia a mamãe, verdadeira ou adotiva...

Não deixa de ser curioso notar que esta pasteurização pretendida para os livros infantis e juvenis coincide com o lamento geral – de novo, da sala de aula ao Ministério da Educação—pela precariedade da leitura praticada na sociedade brasileira. Mas, como quem tem caneta de assinar cheques e de encaminhar leis tem o poder de veto, ao invés de refletir e discutir, a autoridade veta . E veta porque, no melhor dos casos e muitas vezes com a melhor das intenções, estende suas reações a certos livros a um numeroso e anônimo universo de leitores . .

No caso deste veto a “Caçadas de Pedrinho” , a Conselheira Relatora Nilma Lino Gomes acolhe denúncia de Antonio Gomes da Costa Neto que entende como manifestação de preconceito e intolerância de maneira mais específica a personagem feminina e negra Tia Anastácia e as referências aos personagens animais tais como urubu, macaco e feras africanas ; (...) aponta menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano , que se repete em vários trechos do livro analisado e exige da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura.

Independentemente do imenso equívoco em que, de meu ponto de vista, incorrem o denunciante e o CNE que aprova por unanimidade o parecer da relatora, o episódio torna-se assustador pelo que endossa, anuncia e recomenda de patrulhamento da leitura na escola brasileira. A nota exigida transforma livros em produtos de botica, que devem circular acompanhados de bula com instruções de uso.

O que a nota exigida deve explicar ? o que significa esclarecer ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura ? A quem deve a editora encomendar a nota explicativa ? Qual seria o conteúdo da nota solicitada ? A nota deve fazer uma auto-crítica ( autoral, editorial ? ) , assumindo que o livro contém estereótipos ? a nota deve informar ao leitor que “Caçadas de Pedrinho” é um livro racista ? Quem decidirá se a nota explicativa cumpre efetivamente o esclarecimento exigido pelo MEC ?

As questões poderiam se multiplicar. Mas não vale a pena. O panorama que a multiplicação das questões delineia é por demais sinistro . Como fecho destas melancólicas maltraçadas aponte-se que qualquer nota no sentido solicitado – independente da denominação que venha a receber, do estilo em que seja redigida, e da autoria que assumir- será um desastre. Dará sinal verde para uma literatura autoritariamente auto-amordaçada. E este modelito da mordaça de agora talvez seja mais pernicioso do que a ostensiva queima de livros em praça pública, número medonho mas que de vez em quando entra em cartaz na história desta nossa Pátria amada idolatrada salve salve. E salve-se quem puder ... pois desta vez a censura não quer determinar apenas o que se pode ou não se pode ler, mas é mais sutil, determinando como se deve ler o que se lê !

sábado, 30 de outubro de 2010

Registro 327: Delicadeza

A dramaturga e professora Cleise Furtado Mendes, relançou em noite de autógrafos, adiada de 2009 para 2010, por motivos alheios ao seu querer, o livro O Cruel Aprendiz.

O livro se encontra em minha mesa de cabeceira e li uma boa parte de seu conteúdo, mistérios que a autora nos revela a cada página. Das páginas que visitei pedindo licença, porque livro é como casa, a gente pede licença antes de invadi-los, escolhi poesias levado pelo calor da hora. 

Visitante, sorrateiramente penetrei no universo da autora e me deixei seduzir por Marinha, Sagração, Plaudite, Maria, Busca, entre outros que me tocaram pelos ritmos com que as palavras anunciam pensamentos e sentimentos que chegam em mim e repentinamente me prendem à página, lugar do "palavrar". 


Ao longo de o Cruel Aprendiz, encontro poesias que desvelam o mundo do teatro, universo por onde a autora transita e também se apresenta ao mundo. Tais escritos dizem coisas para mim também: Persona, Nilda Spencer aos 80, A Palavra e o Teatro, Tema de Téspis, o ator, Biografia de Um Ator. Outro do meu interesse é o belo Bahia 1798.

Não sou crítico literário, por isso me abstenho a um juízo. .Mas que importância teria essa minha avaliação? Ainda que considere a crítica literária, deixo-a aos doutos. O que importa é que a poesia de Cleise Furtado Mendes me encanta, aí está um dos seus valores. As palavras dosadas, arrumadas, postas em sossego em cada folha de papel ganham vida e me desassossegam, tiram-me da passividade do cotidiano, da mesma forma que o Pano listrado, "tecido de aturdimento e danação", verdadeira arlequinada para minha alma às vezes tão apática.

Dias depois da noite de autógrafos, 26/10/2010, recebi por e-mail mais uma produção de Cleise Mendes. Coisa recente, enviada como brinde. Uma delicadeza que reproduzo aqui neste diário. Diário que a preguiça e os atropelos da vida impedem registros constantes.


Passagem de Gabriel


Cleise Furtado Mendes


Pedacinhos de papel
estrelejando
o chão da sala,
manchas em constelação
pelas paredes brancas.
Dá pra ver que por aqui
passou um anjo.


Por aqui passou um anjo
combatendo
a imobilidade das coisas.

Com sua espada flamejante
- comprada em oferta
com a máscara de Batman -
foi transmutando em cacos e farelos
tudo que vive triste
de não ser tocado.


Aqui passou o anjo Gabriel
com seus três anos de sabedoria
e nada ficou no lugar
ao sopro desse vento
teimoso como a vida.

28/10/10

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Registro 326: Estupidez

O texto que se segue é de autoria de Eliane Trindade e Daniel Bergamasco, Folha de S. Paulo, 27 de outubro de 2010. É o relata de um acontecimento inimaginável, pensave eu, até que a coisa se deu no âmbito de uma atividade reunindo universitários. Fui universitário, hoje sou professor de universitários, vi e tenho visto coisas absurdas, mas esta que se deu em Araraquara - SP passou dos limites. Fere o bom senso. O pior de tudo é que os organizadores, candidamente, disseram ser uma brincadeira. Somente crianças perversas, sem limite, sem educação, concebem uma brincadeira de tal monta, penso eu. E olha que não são crianças, os moços da Universidade Estadual Paulista. Somando-se ao pior, o vice-diretor da Faculdade de Ciências e Letras, veja bem, promete apurar, aplicar medidas disciplinares e conclui: "mas não queremos estabelecer um processo inquisitório". Ninguém em sã consciência quer processos inquisitoriais. Vivemos noutro mundo e com outro padrão de justiça.  O que se quer então? È que a autoridade da instituição educacional tome com determinação a atitude necessária para restabelecer a saúde do lugar que administra. Ao finalizar sua fala da forma como finalizou, dá margem para que tudo termine sem grandes consequências para os estúpidos estudantes que fizeram de suas colegas "vacas" de uma rodeio. A que ponto nós chegamos!!

"Um grupo de alunos da Universidade Estadual Paulista, uma das mais importantes do país, organizou uma "competição", batizada de "Rodeio das Gordas", cujo objetivo era agarrar suas colegas, de preferências as obesas, e tentar simular um rodeio -ficando o maior tempo possível sobre a presa.

A agressão ocorreu no InterUnesp 2010, jogos universitários realizados em Araraquara, de 10 a 13 de outubro.

Anunciado como o maior do país, o evento esportivo e cultural, que reuniu 15 mil universitários de 23 campi da Unesp, virou palco de agressão para alunas obesas.

Roberto Negrini, estudante do campus de Assis, um dos organizadores do "rodeio das gordas" e criador da comunidade do Orkut sobre o tema, diz que a prática era "só uma brincadeira".

Segundo ele, mais de 50 rapazes de diversos campi participavam. Conta que, primeiro, o jovem se aproximava da menina, jogando conversa fora -"onde você estuda?", entre outras perguntas típicas de paquera.

Em seguida, começava a agressão. "O rodeio consistia em pegar as garotas mais gordas que circulavam nas festas e agarrá-las como fazem os peões nas arenas", relata Mayara Curcio, 20, aluna do quarto ano de psicologia, que participa do grupo de 60 estudantes que se mobilizaram contra o bullying.

No Orkut, os participantes estipulavam regras para futuras competições, entre elas cronometrar as performances dos "peões" e premiar quem ficasse mais tempo em cima das garotas com um abadá e uma caneca. Há relatos de gritos de incentivo: "Pula, gorda bandida".

Com a repercussão, a página do site de relacionamento foi excluída. Cópias dos posts espalharam-se pelo campus em Assis.

Em murais aparecem frases como "Unesp = Uniban", referência ao caso a Geisy Arruda, que foi xingada por usar um vestido curto.

As vítimas não querem falar. "Uma das meninas está tão abalada que não teve condições de voltar à faculdade. Teme ficar conhecida como "a gorda do rodeio'", afirma a advogada Fernanda Nigro, que acompanhou, na última terça-feira, uma manifestação de repúdio.

O grupo foi recebido pelo vice-diretor da Faculdade de Ciências e Letras, do Campus de Assis, Ivan Esperança. "Vamos ouvir os envolvidos e estudar as medidas disciplinares, mas não queremos estabelecer um processo inquisitório",

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Registro 325: "Brincadeiras " no Festival de Teatro da Amazônia



É sempre bom ver o nosso trabalho tomando outra forma. Falo da encenação de meu texto Brincadeiras (1977) que recebe mais uma leitura cênica, agora feita por Socorro Andrade para a Companhia Metamorfose de Manaus. O espetáculo foi apresentado no Festival de Teatro da Amazônia entre os dias 8 a 17 de outubro.

Conforme notícias recebidas, o Teatro Amazonas estava cheio na estreia de Brincadeiras e recebeu o Prêmio de Melhor Espetáculo e uma viagem para Recife. Além disso, a montagem  recebeu as seguintes indicações: Melhor Texto, Melhor Atriz (duas atrizes foram indicadas), Melhor Direção, Melhor Ator, Melhor Figurino e Melhor Cenário.
A diretora enviou-me fotos do espetáculo. É gratificante saber como o texto ganha no palco abordagens múltiplas, ainda que traga em sim um potencial para a cena. Desde sua estreia em São Paulo em 1978, sob a direção de Mário Mazetti, Brincadeiras vem recebendo diversas montagens, uma demonstração de que o texto não perdeu a sua força comunicativa, permitindo outros inventos sobre ele.
Ao ver as fotos da Cia. Metamorfose, percebo a criação de Socorro Andrade. Imagino que ela soube captar a essência do texto, não se prendendo a ele, mas jogando com a minha proposta. Bacana!!

Registro 324: Como Esquecer


O filme de Malu de Martino, Como Esquecer, em cartaz na Sala de Arte - Cinema da UFBA é uma grata surpresa. Não há ali esforço pretensioso de transformar a linguagem cinematográfica através de um exercício de pirotecnia. A diretora conta com um bom roteiro para contar um momento da vida da professora Júlia (Ana Paulo Arósio) na luta para reconstruir seu viver esfacelado, após uma intensa relação amorosa com Antônia. Filme intenso, construído com belas imagens Como Esquecer é tocante ao retratar essa descida ao fundo do poço e expor com muita verdade a personagem em sua ego-trip dolorosa. Acompanhada de perto por seu amigo (Murilo Rosa) que também sofre as dores da perda, seu namorado faleceu, e por uma amiga (Natália Lage) abandonada pelo namorado ao sabê-la grávida, Júlia recebe o apoio necessário para retornar à vida, já que se encontra deliberadamente fora dela. Não há grandes lances, tudo acontece de maneira verossímil, o que torna a dor da perda ainda maior. Os pequenos gestos dolorosos, alegres e afetivos vão se somando ao longo do filme. Belo filme.

Cabe ao elenco, muito bem escolhido e adequado aos personagens, levar em frente essa história. O trio central cumpre com talento exemplar as nuances dos seus personagens, sem estereotipia, sem exageros. Destaque para Ana Paula Arósio que se mostra densa ao expor as dores causadas pelo fim do amor difícil de esquecer.

Sobre a personagem, sua construção, na visão da diretora e dos roteiristas, reclamo um pouco, visto sua insistência em se negar para a vida, quando a vida apresenta possibilidades transformadoras. Mas isso não diminui as qualidades do filme. É somente um ponto de vista

domingo, 17 de outubro de 2010

Registro 323: Há sempre um copo de mar para o homem navegar

O texto é longo, mas vale a pena alguns minutos para tomar conhecimento do seu teor. É de autoria de Nuno Ramos, "a besta fera" da hora. O "bode expiatório" da hipocrisia nacional.Não vi a obra de Nuno Ramos, mas acompanho a polêmica sobre os urubus. Sobre a obra, o silêncio total. Mais importou o escândalo dos ofendidos, mas nada sobre os significados do trabalho, uma leitura, um olhar para ver o que há ali, sua "estrutura de sentimento" e o que mais houver. E há. Bandeira Branca não está ali para escandalizar burguês, pichador, ou defensores dos direitos dos animais, esses aí adoram passear nos Jardins Zoológicos e ter bichinhos de estimação na coleira. O texto de Nuno é esclarecedor. Foi publicado no caderno Ilustríssima do jornal Folha de S. Paulo em 17 de outubro (a data nos anima a pensar nos caminhos do mundo de ontem e de hoje. A data também nos assombra). No mesmo caderno Lorenzo Mammì escreve um belo artigo em defesa da arte. A arte se defenda por si mesma. Gosto do texto de Mammì.Taí a dica. E seguimos navegando. Até quando? 

Bandeira branca, amor

NUNO RAMOS

PROCUREI INTENCIONALMENTE matar três urubus de fome e de sede no prédio da Bienal de São Paulo. Pus ali imensas latas cheias de tinta escura, para que se afogassem, além de espelhos, para que batessem a cabeça durante o voo. Construí túneis de areia preta, para que entrassem sem conseguir sair, morrendo ali dentro. E, para forçá-los a voar, costumo lançar rojões em sua direção.

ACUSAÇÕES Como nos pesadelos ou nos linchamentos, não é possível responder a acusações desta ordem, que circularam pela internet e no boca a boca com força insaciável nas últimas três semanas, criando um caldo de cultura próximo à violência e à intimidação. Como resultado disso, em plena Bienal, entre faixas pedindo que eu fosse preso, meu trabalho foi atacado por um pichador, que driblou a segurança, rasgou a tela de proteção aos bichos e danificou uma das esculturas de areia.

Fomos cercados, eu e minha mulher, por militantes ecologistas, que nos xingavam e gritavam do outro lado do vidro do carro, a boca em câmera lenta, "a-li-men-ta-e-les!" -o que, claro, já havia sido feito naquele mesmo dia. Barbara Gancia, colunista da Folha, chegou a pedir, utilizando um imaginário de repressão militar ou de milícia fascista, que eu fosse colocado de cuecas contra um muro e submetido a uma ducha com as mangueiras para incêndio do corpo de bombeiros.

Ingrid E. Newkirk, presidente da organização não governamental Peta [pessoas pelo tratamento ético de animais, na sigla em inglês], num artigo feroz, publicado na Folha em 8/10, encontra apenas o que pressupõe desde o início: que eu quero aparecer (ela, não? alguém duvida que um dos temas da polêmica é justamente a disputa pelo espaço na mídia?); que sou (os termos são dela) cruel, "bad boy", sem compaixão e produtor de arte de má qualidade. Como não há argumentos e o raciocínio é circular, tudo retorna à ilibada consciência da articulista.

A notícia atravessou fronteiras raras para questões envolvendo arte (horários insuspeitos em todos os canais de TV, cadernos de jornal pouco afeitos à cultura e nas mais diversas regiões do país), passando a assunto de bar e padaria. Os urubus, definitivamente, haviam conseguido escapar e, para usar os versos de Augusto dos Anjos, pousaram na minha sorte.

TOM Frequento uma área da cultura afastada dessa luz radioativa, e não quero errar o tom. Começo este texto, portanto, fazendo a minha lição de casa: o que quer que tenha acontecido, aconteceu por meio das instituições. A licença do Ibama de Sergipe, que permitiu o transporte e a exposição dos animais, era legítima e dentro de parâmetros absolutamente legais, bem como sua cassação pelo Ibama de Brasília.

Tentamos, eu e a Fundação Bienal, que me apoiou de todos os modos possíveis em defesa do meu trabalho, uma liminar na Justiça e perdemos. Acatamos e tiramos, no mesmo dia em que a decisão liminar saiu, as três aves. Sinto-me coibido, injustiçado e chocado com tudo isso, mas não posso dizer que fui censurado. E por entender que a forma que destruiu meu trabalho ao tirar as três aves é legítima, quero divergir completamente dela.

Como quase nenhuma informação sensata circulou, tenho primeiro que dizer o óbvio:

1) As aves que utilizei em meu trabalho são aves nascidas em cativeiro, e não sequestradas ao habitat natural; é para este cativeiro que voltaram (e onde estão neste momento), quando foram "soltas" do meu trabalho;

2) Pertencem ao Parque dos Falcões (criadouro conservacionista que funciona com autorização do Ibama, realizando atividades educacionais e pedagógicas, pelo Brasil inteiro, com aves de rapina), que as mantêm em exposição para o público, como num zoológico;

3) Estas mesmas três aves participaram em 2008 de uma versão bastante similar deste trabalho, no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, durante dois meses, adaptando-se perfeitamente ao espaço e sem nada sofrer, com plano de manejo aprovado pelo mesmo Ibama;

4) As aves foram adaptadas ao espaço da Bienal antes do início da mostra, com a presença do veterinário responsável por elas e de um tratador;

5) Esse tratador, o mesmo que cuida delas em Sergipe, ficou permanentemente com elas durante todo o tempo de exibição das aves ao público, literalmente abrindo e fechando a mostra:

6) Eram alimentadas por ele todas as manhãs, em quantidade e frequência estipuladas pelo plano de manejo;

7) O volume das caixas de som foi controlado, sendo mantido numa altura bastante inferior ao do murmúrio do público, para evitar estresse aos bichos;

8) O plano de manejo das aves, aceito pelo Ibama de Sergipe, foi revogado, já no meio da polêmica, pelo Ibama de São Paulo -mas sem recomendação de cassação. O que o laudo técnico, sério e sisudo do Ibama de São Paulo solicitava eram ajustes -basicamente, que desligássemos uma das caixas de som e que instituíssemos banhos de luz ultravioleta todas as manhãs, para suprir a falta de luz solar direta sobre os bichos (embora a luz do dia banhasse o espaço). Oferecia, ainda, uma licença de 15 dias, a ser prorrogada de acordo com a avaliação periódica sobre o bem-estar dos animais. O Ibama de Brasília, que, sob pressão política e midiática, determinou arbitrariamente a saída das aves, em desacordo com o laudo do Ibama de São Paulo, travou o que parecia ser um processo rico de colaboração entre técnicos sérios, com conhecimento sobre os animais, e um trabalho de arte;

9) Obtivemos laudo favorável do Departamento de Parques e Áreas Verdes da Prefeitura de São Paulo;

10) Técnicos do setor de aves do Zoológico de São Paulo, em vistoria ao trabalho, não manifestaram qualquer crítica específica ao manejo das aves -fiquei sabendo nesta visita, inclusive, que a jaula dos urubus era bem maior que qualquer jaula do zoológico, inclusive a do condor.

EXPIAÇÃO Por que, então, tanta confusão? Que é que está sendo expiado aqui?

Para começo de conversa, e como aproximação ao problema, quero lembrar que "Bandeira Branca" não é um trabalho de ecologia, nem eu sou especialista em aves de rapina, assim como "Guernica" de Picasso não é apenas um trabalho sobre a Guerra Civil Espanhola, nem Picasso um historiador. Por isso utilizei os serviços de uma entidade ecológica, o Parque dos Falcões, e obtive, tanto na montagem em Brasília, em 2008, quanto em São Paulo, autorização do órgão legal em meu país para esses assuntos.

Ou a lei não vale para todos? Tratar meu trabalho como crime e a mim como criminoso é fazer o que fazia a direita franquista, ao chamar "Guernica" de quadro comunista, ou a aristocracia francesa da segunda metade do século 19, quando ameaçava retalhar a "Olympia", de Manet, em nome dos bons costumes.

O que me foi negado com a criminalização do meu trabalho foi a possibilidade de um sentido -o sequestro, digamos, de qualquer sentido que ele pudesse propor. E é contra isso, mais do que contra a boataria e a calúnia, que escrevo hoje.

VALORES Arte não cabe nos bons nem nos maus valores, por mais confiança que se tenha neles. Dela emana um signo aberto, para isso foi inventada, para que fanatismos como os que ouvi nessas últimas semanas não circunscrevam completamente o possível da vida. Claro que ninguém está acima da lei, e, repito, cumprimos, artista e instituição, rigorosamente a legislação ambiental brasileira -mas é a possibilidade de pensar diferente que está sendo criminalizada aqui.

Artistas extraordinários como Joseph Beuys (por sinal, fundador do Partido Verde na Alemanha), Jannis Kounellis, Hélio Oiticica, Nelson Felix, Tunga, Cildo Meireles, utilizaram animais em suas instalações. Provavelmente o trabalho de Beuys que inclui um coiote ("I Love America and America Loves Me") seja, sem nenhum favor, uma das mais importantes obras de arte do século 20.

"Tropicália", de Hélio Oiticica, que tem araras vivas em seu interior (curiosamente, exposta há poucos meses, com as aves, no prédio do Itaú Cultural de São Paulo, na avenida Paulista, sem despertar qualquer polêmica), é um trabalho fundamental para a compreensão do que somos e do que queremos ser. Negar o que estes artistas conseguiram com seus trabalhos -uma oxigenação radical de nosso imaginário- tratando-os como criminosos certamente seria regredir a épocas de triste memória.

Posso entender quem seja contra bichos em cativeiro. Seria interessante exigir um pouco de coerência dessa posição -ou seja, vegetarianismo radical, já que a quase totalidade da carne que comemos vem de animais em cativeiro, fechamento de todos os zoológicos, jóqueis-clubes, fazendas com animais para monta e, ainda, requalificação geral de nossas relações com bichos domésticos. Mas, mais do que coerentes, gostaria que fossem suficientemente democratas para aceitar que nem todos pensem como eles, nem todos se deem o lugar de xamãs, em contato íntimo com os desejos e sensações dos animais, e que dentro das regras públicas legais de cada país o acesso a esses animais possa se dar sem histeria nem calúnias.

BANDEIRA BRANCA Como nada ou quase nada se falou sobre o trabalho, peço licença para interpretar o que eu próprio fiz, partindo de uma breve descrição. "Bandeira Branca" (este título, no meio de um bombardeio desses, é dessas coisas que só a arte explica) foi montado pela primeira vez há dois anos, no CCBB de Brasília, e agora, ampliado e modificado, recebeu uma segunda versão, especialmente para a 29ª Bienal.

O trabalho consiste em três enormes esculturas de areia preta pilada, foscas e frágeis, a partir de cujo topo, feito de mármore, três caixas de som emitem, em intervalos discrepantes, as canções "Bandeira Branca" (de Max Nunes e Laércio Alves, interpretada por Arnaldo Antunes), "Boi da Cara Preta" (do folclore, por Dona Inah) e "Carcará" (de João do Vale e José Candido, por Mariana Aydar). Três urubus vivem na instalação durante toda a duração do trabalho.

O resultado é uma cena solene, entre a litania e a canção de ninar, que me parece ter cavado, em sua montagem em São Paulo, uma espécie de buraco negro no prédio da Bienal. Acho que o vão do prédio, uma das obras mais felizes de Niemeyer, com sua velocidade e otimismo, ganhou com meu trabalho um contraponto ambivalente, noturno e encantado, triste mas também próximo do mundo dos contos de fada.

Há uma espécie de espiral ascendente no trabalho, que se desmaterializa conforme o espectador sobe a rampa do prédio e as pesadas colunas de areia se transformam na geometria de quem vê as esculturas de cima. Feito primeiro de areia, depois de mármore, depois de vidro, depois de som, depois de voo, o trabalho faz em seu percurso o mesmo que as aves, num ciclo que a chuva de fezes brancas, caindo sobre as peças e sobre o chão, inicia novamente.

ANTIPENETRÁVEL Mas o ponto crucial, acho eu, é que, apesar da monumentalidade do trabalho e da textura inacabada da areia, que solicitam o corpo do espectador, o público é mantido fora da obra, numa espécie de antipenetrável. A obra de certa forma já foi ocupada, já tem dono e por isso não podemos nos aproximar. A noite, as canções e os urubus são seus donos, e ao público resta assistir de fora a alguma coisa viva, que não precisa dele.

As canções e os bichos, forças ascensionais contra a inércia e o peso das esculturas, já tomaram conta da obra e a tela de proteção, que materializa o desenho do vão do prédio, marca essa passagem entre um exterior institucional e um interior ativo, fechado em si, mistura de cultura (canções), natureza (os urubus) e arquitetura.

As aves e as canções dão ao trabalho o seu agora, uma duração voltada para algo indiferente ao mundo lá fora. Daí que muita gente tenha me dito que se sentia observado pelas aves e não observador, dentro da grade e não fora dela. E que no meio de tanto tumulto, com certeza as três aves pareciam as únicas tranquilas.

Esta atividade interna autossuficiente está no coração deste trabalho e me acompanhou ao longo da balbúrdia destes dias difíceis. Fico feliz de perceber que de certa forma o trabalho já pressupunha isso, falava disso e defendia-se exatamente disso -queria estar consigo e não conosco, longe da barulheira que no entanto causava.

AUTOSSUFICIÊNCIA Em vez da atividade do espectador, própria de tantas das melhores obras modernas, e que encontrou entre nós uma formulação extrema na ideia dos "Penetráveis" de Hélio Oiticica, a arte contemporânea parece estar se voltando para dentro, numa autossuficiência renitente.

Não é o lugar para desenvolver isto, mas, para dar dois exemplos memoráveis, acho que as "Elipses", de Richard Serra, apoiadas em si mesmas e não mais nas paredes das instituições, ou "O Ciclo Creamaster", de Matthew Barney, com suas infinitas dobras e relações internas, partilham esta característica. Meu trabalho acompanha de certa forma essa direção.

A institucionalização crescente da arte trouxe para junto dela uma pletora de discursos institucionais, todos perfeitamente centrados, seguros de si e disputando espaço na mídia e nas oportunidades orçamentárias. Isso vem, talvez, do estilhaçamento das grandes noções universais que acompanharam a formação do mundo moderno: política, religião, burguesia, proletariado, luta de classes, direita, esquerda etc.

Com a quebra dessas noções universais, os particulares (ecologia, minorias étnicas, minorias sexuais etc.) firmaram-se, cheios de si, pontudos, zelosos de suas verdades. A arte talvez seja a última experiência universalizante, ou ao menos não simétrica à discursividade do mundo, e acho que tende a ser cada vez mais atacada, toda vez que discrepar, como soberba e como arbítrio. Mas penso que é isso mesmo que ela deve manter: sua soberba e seu arbítrio, para que possa continuar criando.

DESFAÇATEZ Pois isso para mim foi o mais impressionante de tudo: a absoluta incapacidade, digamos, interpretativa de quem me atacou, a recusa de ver outra coisa, de relacionar o sentimento de adesão ou de repulsa que meu trabalho tenha causado com qualquer coisa proposta por ele, em suma, a desfaçatez com que foi usado como trampolim para um discurso já pronto, anterior a ele, que via nele apenas uma possibilidade de irradiação.

Para isso, é claro, o principal ingrediente é que fosse tomado de modo absolutamente opaco e literal, espécie de cadáver sem significação. Para que possa ser veículo estrito de discursos e de grupos, sem que utilize seus recursos, digamos, naturais (sedução, desejo, ambivalência), o trabalho de arte tem de estar, de fato, desde o início definitivamente morto. Daí, creio, a ferocidade com que fui atacado -uma espécie de operação higiênica preventiva, para impedir que qualquer germe de espanto, ambiguidade, beleza, estupor, pudesse aparecer, desqualificando o desejado consenso.

No fundo, acho que a frase famosa de Frank Stella, que jogou uma pá de cal nas ilusões subjetivas de começos dos anos 60 e inaugurou as poéticas minimalistas que duram até hoje, "What you see is what you see" ("O que você está vendo é o que você está vendo"), parece ter migrado da arte para o mundo. A literalidade das obras de um Carl Andre ou de um Donald Judd transferiu-se inteira para as instituições e para o público.

Por isso talvez caiba hoje à arte a tarefa bastante simples, mas tão difícil, de dizer exatamente o contrário: "O que você está vendo NÃO é o que você está vendo". Ou seja, sonhar. Ou, como diz a letra da canção, "Bandeira branca, amor".