domingo, 18 de janeiro de 2009

Registro 232: Outro olhar sobre "A TROCA"

A PRESENÇA DO PASSADO
JORGE COLI
A história é clara, mas o pensamento tão complexo. Nada de conceito teórico, mas uma reflexão intrincada brotando, intuitiva, dentro do filme. A expressão perfeitamente controlada engendra uma força que não se refreia. "A Troca" retoma obsessões que se tecem a partir de tudo que Clint Eastwood filmou. Alguns críticos tentaram, sem sucesso, enquadrá-lo em um único gênero: film noir, melodrama, policial, filme social, filme político. Ele contém tudo isso para formar outra coisa: uma convicção ética que exclui o maniqueísmo.Nos anos de 1970, Eastwood fazia vingadores se levantarem contra a ordem social, comandada por poderosos sempre corrompidos até o cerne. O vingador vingava, não para restabelecer uma ordem justa, mas para destruí-la naquilo que estava ao seu alcance. Encontrava refúgio em comunidades de "outsiders", em meio à gente desprezada, mas leal, sincera, verdadeira: basta ver "O Estranho Sem Nome" ou "Josey Wales - O Fora da Lei"."A Troca" expõe, ela também, a luta individual capaz de enfrentar o complô dos interesses sujos e das mentiras infames. O sonho da comunidade permanece, embora mais tênue e transformado, não mais na antiga utopia comunitária, mas em certas afinidades, algumas éticas, outras mais difíceis de explicar.A palavra afinidade é uma chave no cinema de Clint Eastwood: significa laços invisíveis, muito poderosos, e para além das convenções. Quem viu não se esquece da cena unindo dois mortos que se amaram e se odiaram, em "Meia-noite no Jardim do Bem e do Mal". Há esse estranho filme, "Dívida de Sangue", em que dois personagens se ligam por razões nada racionais. O assassino abjeto de "A Troca" descobre uma surpreendente sintonia com a heroína, Angelina Jolie. Carrascos Os desmandos policiais expostos em "A Troca" são terríveis. O momento no qual, verdadeiro filme dentro do filme, surgem expostas as cumplicidades entre polícia e psiquiatria para abaterem-se com crueldade abjeta sobre as mulheres, é digno do mais alto Foucault. Dirty Harry, personagem do tira durão, machista, matador, que Eastwood interpretou em vários filmes, o primeiro deles dirigido por Don Siegel, ficou bem longe."A Troca" mostra suspeitos sendo baleados como num fuzilamento por razões torvas. A cena, que lembra os abates nos campos de concentração nazistas, remete para realidades como os esquadrões da morte, o Bope, e discursos delirantes do atual governador de Mato Grosso do Sul, que manda a polícia esquecer os direitos humanos. Sinistro Em "A Troca", Eastwood acusa, mas avança, e ultrapassa a denúncia militante graças ao personagem do serial killer. Ele encarnaria o mal absoluto, se o diretor não lhe tivesse concedido dimensão humana.Uma cena de execução judicial por enforcamento, descritiva, detalhada, expõe a barbárie da pena de morte como mais um crime cruel e perverso. O prisioneiro, cantando "Noite Feliz", mostra-se, ele próprio, habitado por uma inconsciência infantil. É um formidável momento de cinema. "A Troca" faz pensar no Kieslowski de "Não Matarás", no Chabrol de "O Açougueiro" e, sobretudo, em "M, o Vampiro de Düsseldorf", de Fritz Lang.Como neste último, a justiça é incapaz de compreender e, sobretudo, de resolver a questão do mal. Luz "Sobre Meninos e Lobos", o filme mais pessimista de Eastwood, centra-se, como "A Troca", na violência sobre crianças. Agora, porém, a última palavra é esperança.