quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Registro 379: Final de ano

No tempo em que as casas comerciais faziam e distribuíam Folhinhas - para os mais novos, calendário -, havia uma com a seguinte estampa: um velho alquebrado despedia-se, enquanto uma criança com sorriso maroto entrava em uma sala preparada para recebê-la. Uma mensagem desejando votos de Feliz Ano Novo completava a cena. Foi-se o tempo... Mas um quadrinho da Mafalda pode abrir o registro 379.



O ano de 2011 vai chegando ao final do seu ciclo, apontando para 2012, o ano que vai acabar segundo uma porção de gente equivocada, gente crédula, sem postura crítica. O calendário Maia é a referência para mais um absurdo dentre muitos a nos atropelar diuturnamente. Durante o ano, inúmeras mensagens alertando para o fim infestaram a caixa do correio eletrônico. Foram todas apagadas, tendo em visto a dimensão da insensatez. Só me resta fazer coro com Assis Valente e com a Pequena Notável: “Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar / Por causa disso minha gente lá em casa começou a rezar... E o mundo não se acabou.” 

Apesar dos pesares, não tenho do que me queixar. Se o mundo anda fora dos eixos, como diz o bardo pela boca de Hamlet, tentei de todas as maneiras equilibra-me diante dos desequilíbrios. Um exercício diário. Viver é perigoso, já dizia o Rosa. Algumas notícias embrulharam meu estômago, outras fizeram meu coração se fechar um pouco. Uma grande parte me fez duvidar da capacidade do humano seguir a razão sábia. Aqui, no nosso quintal, só sendo muito Poliana para aguentar a mediocridade, a estupidez, a falta de civilidade. Tudo junto é a regra, não é exceção. Entre a miséria do quotidiano e a desmedida dos pequenos gestos, acreditar que a beleza poderá nos salvar pode ser um antídoto. 

Ao manifestar pesar pela morte do ditador da Coréia do Norte, o P C do B ficou com o mico do ano. Se essa gente chega ao poder, estamos fritos. Para um partido que defendia o regime que se instalou por muito e muitos anos na Albânia, só não causa espanto em quem acredita nos bons propósitos do Partido. A Folha de S. Paulo, edição de hoje (28.12.2011) traz um interessante editorial sobre o tema.

Outro mico: o Poder Judiciário posando de vestal! Só rindo.

A reforma da Praça de Ondina, aquela que beira o mar, durou mais de noves meses. Ao ser inaugurada demonstrou-se um “belo” desastre. Obra mal feita, logo apresentou seus problemas. Ainda assim, melhor que o monumental camarote que lá estão montando desde meados de dezembro. Assim, passaremos boa parte do verão com o mastodonte impedindo a visão do mar e dificultando o acesso de quem gosta de ir à praia. Sobrou para os banhistas um corredor estreito entre tapumes e um trecho todo arrebentado, já que não foi incluído no pacote. Nunca vi um leilão da via pública feito tão desrespeitosamente. E tudo continua como dantes no castelo de Abrantes. Uns “gatos pingados” ocuparam por um tempo a praça, num arremedo das ocupações norte-americanas. Penso que não deu em nada.   

O fato é uma gota no oceano de descalabros em Salvador. A cada dia a cidade se transforma no pior monstrengo. Suja, descaracterizada, confusa e barulhenta. Enquanto isso, o alcaide e sua ex-consorte mostram cenas de suas vidas íntimas para o público soteropolitano. O BBB vai se espalhando sem nenhuma decência. Falta-nos um  Gregório de Mattos, o Boca do Inferno.

Neste ano, deixei de ver televisão. O aparelho continua em casa para que eu possa ver filmes escolhidos a dedo, no conforto do sofá, sem as conversas e os celulares inoportunos A tv aberta é um lixo, reino da hipocrisia. Seus apresentadores primam pela “canastronice”. Cortei os canais por assinatura, já que a sua programação é repetitiva e cara. Além do mais, enquanto se assiste a um filme são inseridos anúncios na tela, um absurdo. 

Por falar em filmes, registro aqueles que apreciei: Melancolia, Em Nome de Deus, O Palhaço, A Árvore Da Vida, Bravura Indômita, Um Conto Chinês e muitos outros que não me lembro. Mas como não faço lista dos melhores do ano, não preciso completar o registro. Ah, faltou ver Meia Noite em Paris. Medianeiras, fui cheio de expectativas. A Pele Que Habito, passei uma semana pensando no filme. Ainda hoje ele me inquieta. Bem melhor que Má Educação (que não gosto) e Volver. Falta ver As Canções. No teatro, a agenda foi bem falha. Do Festival Latino Americano, vi meia hora de Gatomaquia do Grupo La Cuarta do Uruguai. Do Festival Internacional de Artes Cênicas, mas nacional que inter, nada vi. Mas confiando nos registro feitos no blog Cadernos Grampeados por Celso Júnior alguma coisa devo ter perdido de uma programação que não despertou meu interesse. Assisti Fim de Jogo. Escrevi sobre a encenação aqui no blog. Gostei de ver Remendo Remendó que a moçada de A Outra Companhia de Teatro mostrou no Teatro Vila Velha.

Fiquei feliz com o resultado apresentado pelos estudantes do Módulo II – Interpretação da Escola de Teatro. Fiquei com eles durante dois semestres e a moçada cresceu sensivelmente. O avanço foi visível em Cenas de Família e Um Incômodo. A turma de concluintes mostrou garra e empenho em Tudo é Mentira, longo, mas exuberante. Vi também Grito do Coração, texto em um ato,  homenagem que Harildo Déda, Gideon Rosa, Patrícia Oliveira e Vinícius Martins prestaram ao autor Tennessee Williams (1911-1983), em comemoração aos 100 anos do dramaturgo. Ganhei de presente Mister Paradise edição com peças de um ato de Williams.

 As leituras foram muitas. A quem interessar, recomendo: Nêmesis de Philip Roth, Ilusões Pesadas, de Sacha Sperling,  Borges Oral & Sete Noites, de Jorge Luis Borges. De Jonathan Frazen, Liberdade e As Correções; Avec Grotowski, Peter Brook, A Preparação do Diretor, Anne Bogart. O deslumbrante A Lebre com Olhos de Âmbar de Edmundo de Waal. Agora leio A Beleza Salvará o Mundo, de Tzvetan Todorov, espero concluir antes da virada, aproveitando as férias merecidas. Não consegui terminar a leitura de Odisséia, de Homero, na tradução de Trajano Vieira. A edição bilíngue continua pousada sobre a mesa de cabeceira. A Ausência que Seremos de Héctor Abad, imperdível, tocante. muito outros livros não constam do registro, paciência... Ah, quase esqueço de A Folha Dobrada, de William Maxwell, uma bela história sobre a amizade

O livro Harildo Déda, a Matéria dos Sonhos, escrito por Luiz Marfuz e por mim, foi lançado em novembro. Uma justa homenagem ao ator. Outros merecem. Vejamos: Sônia dos Humildes, João Augusto, Nilda Spencer, os que partiram. Mário Gusmão tem o seu escrito por Jeferson Bacelar

Meu primeiro livro Um Muro no Meio do Caminho? ganhou uma nova e caprichada edição pela Saraiva

Depois de muitos anos, muitos mesmo, reencontro dois amigos, um deles companheiro de infância e que não vejo desde 1974. Trocamos mensagens. O outro conheci em São Paulo por volta de 1975. Diz o poeta, “a vida é a arte do encontro...” ainda que complete: “embora haja tanto desencontro” 

Vi finalmente As Canções, o filme de Coutinho. Tocante como Edifício Master e Jogo de Cena. Árido como Moscou. Todos são belos momentos de cinema. Cinema pra poucos, uma pena. Os filmes não são difíceis, mas não é pra todo mundo. Na sessão das 17:00h do dia 26 seis gatos pingados na sala. Lembrei-me de quando vi Electra de Cacoyannis. Eu devia ter 14 anos quando assisti ao filme no Cine Íris (Feira de Santana). Na sala só havia o professor Divaldo Pitombo e eu. O filme acabou de ser lançado em DVD, revi. Continua poderoso. Adquiri vários dos filmes da Coleção Folha. Alguns são favoritos.

Desde que adquiri Recanto, o novo trabalho de Gal Costa, a minha cantora favorita entre muitas que admiro, faço um esforço para absorver, não a voz nem as letras, mas os arranjos. Eles não me entram confortavelmente pelo ouvido. Não acho que sejam inovadores, pelo contrário, ao pretender novidade revelam certa mesmice. Mas como gosto da intérprete, continuarei ouvindo o CD. Espero mudar de opinião. De qualquer maneira, é louvável a atitude de Gal Costa, prova que ainda há inquietação, os anos de carreira e a fama não mataram certa ebulição que leva o artista a correr riscos. Aplausos! É um disco triste, muito triste. Eu queria um disco menos Caetano e mais Gal. Será que você me entende?

Caso eu me lembre de mais alguma coisa, compartilho com os leitores do blog. Agora é me preparar para fugir da muvuca.

Acrescento mais um mico: o ditador da Venezuela, num momento paranoico, atribuiu à CIA, leia-se governo norteamericano, a onda de câncer que se abateu sobre os governantes da América Latina. Tenho profundo pesar pelos doentes, mas o delírio venezuelano é risível.  É estranho que tantos governantes, ou ex, sejam acometidos da mesma doença, quase ao mesmo tempo, mas daí fazer tal acusação é querer desviar a atenção dos problemas que acometem os países Latinos com com sua "veias aberta.s" A postura anti-imperialista é velha e não leva a nada. Já vimos este filme.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Registro 378: É Natal




Quando criança, eu sempre gostei de ver presépios. Gostava por dois motivos: pelo significado do tema ali retratado e pela forma como cada família se encarregava de organizar a cena. A cada Natal, era sempre uma surpresa. Eu apreciava o jeito como os materiais eram utilizados na construção cenográfica e como as figuras eram dispostas.


Geralmente armados em um dos cantos da sala de visitas, os presépios refletiam a compreensão que cada um tinha da cena, misturando-se as figuras da tradição com objetos do cotidiano, como brinquedos, recortes de revistas, bibelôs e tudo mais que a imaginação do autor desejasse. Os mais tradicionais mantinham-se fiéis aos elementos básicos e terminavam por remeter seus presépios às inúmeras pinturas legadas pelos artistas ao longo do tempo. Confeccionados com papéis pintados imitando pedras tinham sempre na base uma faixa de areia que chamávamos de praia onde se dispunha um espelho como se fosse um lago onde patos nadavam tranquilamente. 

Em casa, ainda que se comemorasse a festa com muito ânimo e rigor, não lembro de presépio armado com frequência, pelo menos durante a minha infância. Mas não posso me esquecer da surpresa proporcionada por meu pai. Eu já beirava os 18 anos, quando nas proximidades do Natal grandes caixa de madeira foram deixadas em casa sem que ele revelasse o seu conteúdo. Logo em seguida me pediu que eu recortasse em papelão algumas montes indicando-me como modelo os morros que víamos do quintal. O morro chamado de Monte Alto, cujo o cimo abrigava uma capela visitada pelos fiéis na Sexta da Paixão, serviria como fonte para a minha empreitada. Intrigado e descontente por não saber o destino de tais recortes pus-me a pintar os recortes, mesmo sem dominar as técnicas do claro-escuro para dar volume ao intento. Em seguida, fui intimado a ajudá-lo a montar em um pequeno palco armado no salão da Grupo Escola Góes Calmon a cenografia para o presépio que ele queria, não para a família e convidados, mas para toda a cidade. Fazendo suspense, só abriu as caixas no dia 23 de dezembro, retirando dela as figuras para dispô-las na cena.

Misturando montes artificiais, pintados toscamente, com plantas e musgos retirados da caatinga, tendo ao fundo um céu azul estrelado o presépio materializou-se no salão sem carteiras e tornou-se uma atração.

Guardo ainda na memória o presépio de dona Elisa, ele tinha como atração uma bela imagem do Deus Menino no Monte, peça antiga, hoje encontrada somente em museus e antiquários. Na casa de um tio armava-se a lapinha no meio da sala, proporcionando ao visitante uma movimentação para apreciar as cenas distribuídas nos diversos planos. Vi outros presépios e cada um deles aguçou a minha percepção para a religiosidade popular, para a arte e, principalmente para o teatro. Aquelas variadas cenas revelavam teatralidade, algo que só compreendi muito mais tarde. Mas não tenho dúvida, as lapinhas educaram a minha sensibilidade e o meu olhar.


sábado, 17 de dezembro de 2011

Registro 377: Aplausos



Sérgio Britto 1923 - 2011

A homenagem se estende a Joãozinho Trinta, o carnavalesco, artista genial. Ele se apropriou do que a avenida tinha de melhor e expandiu sua criatividade. Ainda que desafinado, eu canto para Cesária Évora, a cantante caboverdiana. Sérgio Britto, como os outros dois, deixou-nos um legado. Vi apenas suas direções para Os Filhos de Kennedy e Afinal uma Mulher de Negócios. Seu livro O Teatro & Eu é deslumbrantemente corajoso. O ator não se esconde. 

Êta 17 de dezembro triste!

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Registro 376: Boa palavra


SENTIDOS DO FUNDAMENTALISMO

CONTARDO CALLIGARIS

Eis uma (pequena) contribuição ao debate sobre fundamentalismo que se deu, recentemente, na Folha (artigos de Ives Gandra da Silva Martins, 24/11, e Daniel Sottomaior, 8/12; cartas dos leitores Antônio Ilário Felici e Francisco Guimarães, 9/12; coluna de Hélio Schwartsman, 10/12).

Fundamentalista é, antes de mais nada, quem leva a sério sua convicção e segue à risca os preceitos que derivam dela.

Se você for católico, não se divorciará nem comerá carne na Sexta da Paixão; se for judeu, no sábado, evitará ligar a luz elétrica; se for muçulmano, não tomará álcool e, caso seja mulher, circulará de véu fora de casa; se for ateu, não invocará a misericórdia divina, nem mesmo em momentos de extremo perigo.

Meu pai era convencido de que existem mistérios para os quais qualquer resposta seria desonesta.

Nesse seu agnosticismo, ele era fundamentalista no sentido que acabo de definir. Um dia, quando meu irmão e eu éramos já adultos, ele quis que prometêssemos que, se ele, na agonia, pedisse a assistência de um padre, nós lhe negaríamos esse recurso, considerando que sua sanidade mental teria se perdido no aperto acovardado da última hora.

Prometemos. Por sorte, ele morreu sem pedir conforto religioso algum. Se ele tivesse pedido, não sei se eu teria mantido minha promessa; à diferença dele, eu não sou fundamentalista: decido e escolho segundo as circunstâncias e não por princípio.

Mesmo assim, tenho respeito, se não simpatia, por esse tipo de fundamentalismo. E acho que todos deveriam poder levar (e viver) suas convicções a sério, se assim quiserem -claro, nos limites básicos impostos pelos códigos Penal e Civil, que regem a convivência social.

Mas tenho pressa de chegar ao outro sentido, pelo qual fundamentalista é quem exige que os preceitos que derivam de suas convicções ou de sua fé sejam observados por todos -ou mesmo que eles se transformem em lei da sociedade inteira.

Esse tipo de fundamentalista, seja qual for sua convicção, religiosa ou ateia, é animado pela necessidade de converter os outros, a qualquer custo. Em geral, ele acha que a violência de seu espírito "missionário" é um corolário de sua fé e uma prova de sua generosidade: "Forçando o outro a se converter, eu só quero seu bem, mesmo que seja contra a vontade dele".

Com esse tipo de fundamentalista, eu implico, por duas razões.

Primeiro, detesto que alguém esconda sua violência atrás de pretensas boas intenções e não gosto da ideia de que um outro imagine saber o que é "bom" para mim.

Segundo, não acredito que alguém possa querer converter os outros à força por generosidade.

Há duas razões pelas quais, em regra, alguém quer impor as normas de suas convicções aos outros, e ambas são péssimas:

1) Ele precisa que ao menos os outros respeitem essas normas, que ele preza, mas não consegue impor a si mesmo -ou seja, incapaz de obedecer a seus próprios princípios, ele quer validá-los pela obediência forçada dos outros;

2) Ele quer se livrar da inveja que ele sente da vida dos que não respeitam essas mesmas normas (para assinalar a componente de inveja, presente nos moralistas, Alfred Kinsey, o grande sociólogo e sexólogo, dizia que "ninfômana" e "tarado" são os que conseguem ter uma vida sexual mais intensa do que a da gente).

Em suma, os motores de muitos fundamentalismos missionários são a incapacidade de viver à altura dos preceitos pregados e a inveja de quem não respeita esses preceitos.

Por isso, no debate (ou na gritaria) entre homossexuais e evangélicos, por exemplo, nem preciso decidir se gosto mais de Oscar Wilde ou do apóstolo Paulo.

Pois, bem antes e independentemente disso, a oposição relevante é a seguinte: os homossexuais não pretendem que os evangélicos passem todos a transar com parceiros do mesmo sexo ou a frequentar baladas gays, enquanto os evangélicos pretendem que os homossexuais se convertam e renunciem a seu desejo (transformado em "pecado") - ou, no mínimo, que eles sejam impedidos de viver segundo suas próprias disposições e convicções.

Ou seja, para se situar nessa oposição, não é preciso escolher entre as ideias e as práticas das partes, mas entre os que querem regrar a vida de todos segundo seus preceitos e os que preferem que, nos limites da lei, todos possam pensar e agir como quiserem.

Assim sendo, como se diz na roleta, "façam suas apostas". (Folha de S.Paulo 15.12.2011) Ilustrada

domingo, 11 de dezembro de 2011

Registro 375: Cenas de Família e Um Incômodo

Cenas de Família e Um Incômodo, finalização do semestre 2011.2, Módulo II de Interpretação Teatral da Escola de Teatro da UFBA reuniu seis cenas curtas de peças realista - Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki, O Jardim das Cerejeiras, de Anton Tchékov, A Moratória, de Jorge Andrade, Cordel do Amor Sem Fim, de Cláudia Barral, Eles Não Usam Black-tie, de Gianfranceso Guarnieri e No Natal a Gente Vem te Buscar, de Naum Alves de Souza. Peças de uma dramaturgia consagrada, visto que, ao longo do tempo, os textos passaram pela prova do palco sob diversas concepções. Os textos foram escolhidos visando possibilitar aos alunos-atores o contato com os temas tratados pelos autores e, sobretudo, o exercício interpretativo no interior da convenção realista, conteúdo do Módulo, um procedimento que se renova a cada tempo e não se prende ao Realismo histórico, embora se aproxime dele como referência.Objetivou-se com o trabalho mostrar o potencial de cada estudante e como cada um encaminhou seus processos ao abraçar os personagens, de forma a mostrar mais uma vez as suas qualidades de intérpretes. É certo que uma cena diz pouco sobre a totalidade de uma peça, mas ele é reveladora de algo que perpassa o texto como moto contínuo. Nesta reunião de cenas de família, subjaz um incômodo ou vários embaraços: as mesquinharias, a perda de uma propriedade, um pedido de casamento que se desfaz e um desejo não realizado, um filho que trai a sua família e, por conseguinte, a sua classe. Por fim uma família que constrói suas relações sustentada pela hipocrisia. Cenas de Família e Um Incômodo não é uma exercício de encenador, mas uma moldura para evidenciar atrizes e atores em processo de formação. A Mostra esteve em catar na Sala 5 - Escola de Teatro, nos dias 9 e 10 de dezembro. Segue-se alguns registros de cenas.
Raimundo Matos de Leão
Coordenador do Módulo e 
professor de Interpretação e
História do Teatro

Pequenos Burgueses 
Tatiana (Ana Tereza) e Pólia (Enoe Lopes Pontes)

Tatiana (Ana Tereza), Bessemenov (Ronei Silva),
 Akoulina, Mariana Passos)

 Tatiana (Ana Tereza), Piotr (Roy Rogeres),
Akoulina (Mariana Passos)

O Jardim das Cerejeiras
Liuba (Mariana Barbosa), Gaiév (Saulus Castro),
Lopakie (Maxwell Marquez)

Firs (Madyson Cavalcante), Liuba (Mariana Barbosa),
 Gaiév (Saulus Castro)

A Moratória
Helena (Ana Henrique), Marcelo (Augusto Nascimento)

Marcelo (Augusto Nascimento), Helena (Ana Henrique)

Joaquim (Roy Rogeres), Lucília (Carluce Couto)

Cordel do Amor Sem Fim
Teresa (Dany Araújo), José (Madyson Cavalcante), 
Madalena (Evana Jeyssan), Carminha (Lahana Olipa)

Madalena (Evana Jeyssan), Carminha (Lahana Olipa)

Eles não Usam Black-tie
Otávio (Ronei Silva), Romana (Jéssica Menezes)

Maria (Uerla Cardoso), Tião (Saulus Castro)

No Natal a Gente Vem te Buscar
Mãe (Ana Henrique), Solteirona (Gabriela Lucenti)

Solteirona (Gabriela Lucenti), Primo (Maxwell Marquez),
Mãe (Ana Henrique), Pai (Madyson Cavalcante)

sábado, 10 de dezembro de 2011

Registro 374: ESTUPIDEZ

"A Justiça determinou ontem a internação provisória do adolescente que atropelou e matou o desempregado Vaderli Gonçalves. O advogado do garoto, Wagner de Souza, disse à Folha desconhecer a decisão da Justiça. Ele afirma que o menino confundiu o pedal do acelerador com o do freio, razão da tragédia." (Folha de S. Paulo, 10 de dezembro de 2011)

A estupidez, título do registro não se refere ao ato da Justiça. Leia com atenção e veja de quem é a asneira. Um homem é morto por um adolescente de 14 anos que, num ato de irresponsabilidade, sai dirigindo um carro pelas ruas do Campo Limpo, bairro paulistano causando um ato violento e traumático para uma família. O ato não pode ser relativizado. O acontecimento trágico é exemplar. Ele revela o descompasso, algo estranho no interior da família. É muita irresponsabilidade junta. 

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Registro:372: Recebi, recolhi. Palavras são sagradas


João Guimarães Rosa diz:
Todo caminho da gente é resvaloso. Mas também, cair não prejudica demais. A gente levanta, a gente sobe, a gente volta! O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria. Aperta e daí afrouxa. Sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.

Cruz e Souza completa:
O coração que sente vai sozinho,
Arrebatado, sem pavor, sem medo,
Leva dentro de si raro segredo,
Que lhe serve de guia no caminho.

Para arrematar, Fabrício Carpinejar:


MELHOR ASSIM

Não culpo Deus pela caligrafia.
Não se pode escrever bem
E ainda ter a letra bonita.

Não reclamo a estranheza do rosto,
O nariz torto, os olhos caídos.
O que falta em mim, imagino.

Ser feio até que me tranquiliza.
Enquanto os outros se descobrem,
Eu me invento. Não me basto sozinho.
A beleza de minha mulher me perdoa.

sábado, 5 de novembro de 2011

sábado, 29 de outubro de 2011

Registro 370: filme, lembranças, livros e lírios

São precisamente 19:51 desse horário inventado, nada contra. Acabo de retornar do Cine Glauber Rocha onde fui ver Palhaço de Selton Melo. Ecos do passado perpassam o filme, mas não há saudosismo piegas. Sabemos que o circo está morrendo, mas o trabalho do ator-diretor não é réquiem. 

Sutil, delicado e perpassado de humor, o filme prendeu minha atenção. São belos os planos, a ambientação e, sobretudo, o entrosamento do elenco. Cada qual desempenha o seu papel em harmonia com a proposta do diretor e completam a atuação dos protagonistas, Paulo José e Selton Melo. Uma bela trupe de profissionais se encarrega de encher a tela de poesia. Não há pieguice, como não há humor grosseiro, uma tônica destes tempos tão arreganhados e desmedidos. Para completar, o diretor entrega a Moacir Franco (o humorista-cantor), a Jorge Loredo (o Zé Bonitinho) e a Ferrugem (o ex-menino prodígio) pequenos papéis, completando o painel de personagens todos eles cativantes. Ao longo do filme, outras homenagens: uma casa comercial chama-se Aretusa, nome de um circo famoso, o personagem de Selton Melo (Pangaré, o palhaço) tem o nome do famoso palhaço Benjamin Oliveira e o de Paulo José (o palhaço Puro Sangue) denomina-se Valdemar, uma referência a Arrelia (Valdemar Seyssel). Este último eu conheci em São Paulo.  

Lembrei-me dos circos que frequentei na minha infância: o Nerino, o Pavilhão Zé Bezerra, o Circo São Raimundo, onde Maria de Jesus e Ducycleide disputavam a preferência do público masculino. A primeira, de sensualidade recatada, se é que isto existe, era morena de longos cabelos pretos. A outra, despudorada, extravasava sex-appeal de loira oxigenada. Uma delícia vê-las em seus números. Como chamariz de público, a propaganda alimentava a rivalidade entre as duas. Durante a temporada  do circo em Ipirá, Maria de Jesus e outros artistas residiram numa casa perto da minha, mas não tive coragem de me aproximar. Fascinado, eu acompanhava o dia-a-dia daquela gente para mim tão estranha, visto que conseguiam, todas as noites,  elevar-se acima do cotidiano.

Muitas vezes, no final da tarde, quando o palhaço com pernas de pau e megafone percorria as ruas gritando “Hoje tem espetáculo?!”, eu fazia parte do grupo de meninos que respondia: “Tem sim senhor! Por este feito, nós éramos marcados no braço com tinta preta e assim, entrávamos sem pagar na função da noite. O duro era tomar banho sem que a marca desaparecesse. Devo muito do que sou ao circo, a estes artistas que me faziam sonhar em querer ser um deles.

Não vi Palhaços de Federico Fellini, mas tenho a impressão que há no filme de Selton Melo respiros fellinianos.  O olhar maroto do palhaço Pangaré dá lugar ao tristonho de Benjamin, desejoso de alguém ou de alguma coisa que o faça rir. Sua fixação no ventilador torna-se uma metáfora para o sufoco vivido por este palhaço que tenta romper com a sua identidade, mas como um filho pródigo retorna ao pai e à lona.

Na saída, comprei um livro. Borges, oral & sete noites, são aulas que escritor argentino proferiu a convite da Universidade Bolonha. Enquanto esperava o ônibus na Praça Castro Alves, vazia, sob a luz do entardecer, comecei a leitura do primeiro texto curto, O livro. Borges nos diz que “pegar um livro e abri-lo contém a possibilidade do fato estético”.  Borges escreve:  “Em primeiro lugar, mencionarei Montaigne,  que dedica um de seus ensaios ao livro. Nesse ensaio há uma frase memorável: “Não faço nada sem alegria”. Montaigne afirma que o conceito de leitura obrigatória é um falso conceito. Diz que quando encontra uma passagem difícil num livro, deixa-o de lado; porque vê na leitura uma forma de felicidade”. Confesso que não li Montaigne, mas estou a concordar com ele.

Por falar em livros, um deles me levou até o Colégio Antônio Vieira na noite de 26, próximo passado. Fui ao encontro de estudantes do programa de educação de jovens e adultos. Faz tempo não sou acolhido com tanto carinho nem sou ouvido com tanta atenção. Estudantes de 18 a 60 anos, presumo, e professores enchiam o auditório para uma conversa sobre identidade, tolerância/intolerância, inclusão e exclusão, tudo que a razão enlouquecida provoca nos tempos que correm. Eles tinham lido o meu livro Da Costa do Ouro, motivo de minha ida ao Colégio.

Encabulado, porque apresentado pelas professoras com tantos elogios, iniciei a minha fala contando sobre como cheguei ao ato da escrita e de como engendrei o livro que parte de uma acontecimento histórico, a revolta dos Malês, na Bahia do século XIX. O livro narra o encontro de três jovens: Mariana, neta de uma Mãe de Santo, Fortunato, um Malê muçulmano e Richard, filho de uma família de inglesa Protestante.  

A minha fala gerou um diálogo guiado pela razão sábia e tratamos de assuntos relativos ao livro e outros que surgiram no calor da troca. No final, autografei muitos livros e ganhei um belo vaso com lírios, que desde aquela noite abrem seus botões enfeitando a minha casa. Mais alguns dias eles estarão murchos. Ó impermanência! Aceito-a. Os lírios passarão, mas o seu significado permanecerá, lembrando-me do encontro, até que eu salte para fora do círculo do tempo.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Registro 369: A ausência que seremos


Muitos livros foram escritos tendo como figura central o pai. Lembro-me de Carta a meu pai de Kafka,  e de como este livro terrível me marcou. Recordo-me de a Ilha de Arturo, de Elza Morandi, que se não tem o pai como personagem central, mostra-o como uma figura de suma importância na formação de Arturo. A figura paterna assoma nos livros de Dostoievski e em tantas obras que nos mostram de maneira positiva ou negativa de que maneira o pai se mostra para a família, sobretudo para os filhos. Acabo de ler um livro inesquecível, cujo título nos inquieta: A ausência que seremos.

O título são versos atribuídos a Jorge Luis Borges que foram encontrados no bolso do médico sanitarista e defensor dos Direitos Humanos Héctor Abad Gómez, assassinado na Colômbia na década de 80. Quem escreve é seu filho Héctor Abad, que nos oferece a intimidade de sua memória para contar em primeiro plano a sua relação com este pai, que parece não existir de tão grandioso que é. Mas não se trata de hagiologia, e sim do retrato de um homem que soube colocar no mesmo plano o seu amor pela família, em especial pelo filho, e o dever para com os humilhados e ofendidos do seu país, sendo este último o motivo de seu assassinato.

Vale à pena conferir o livro de Héctor Abad e mergulhar fundo em suas páginas. Primeiro, porque seremos tocados pelo encantamento que este pai biografado provoca em seu filho criança. E o que salta destas páginas é o amor incondicional e envolvente marcando a infância do autor admirador da figura heróica, afetiva e calorosa do pai. Ao mesmo tempo, acompanhamos os conflitos vividos pelo adolescente, que se vê sufocado por esta figura superprotetora que não esconde seu afeto distribuído em grandes doses entre a esposa, as seis filhas e o filho querido. Por fim, veremos o adulto que se depara com um pai combatente, interessado, herói e mártir.

Nos registros do filho, os sentimentos são rememorados, e por eles nós percebemos as marcas do afeto guiando-lhe os passos, fazendo-o  crescer. Vemos também o estrago que a violência perpetrada pelos paramilitares acobertados pelas autoridades colombianas trouxe à família e ao país, visto que  Abad Gómez não foi o único assassinado naquele período penumbroso da história da Colômbia.  No concerto de vozes (mulher, filhas, amigos e inimigos)  orquestrado por Héctor Abad, surge o retrato de um médico humanista em toda a sua complexidade. Sua história contada por alguém tão íntimo nos comove, pois não é um discurso panfletário nem sectário, mas o retrato de uma vida civilizada em meio à barbárie que acometeu e acomete a América Latina com suas veias abertas, seus barroquismos, suas mazelas e suas loucas esperanças.  Memória e história a nos envolver.

Algumas horas dedicadas  ao livro A ausência que seremos nos fazem entrar em contato com a narrativa salvadora de um passado nos termos de Walter Benjamin. As preocupações do pensador judeu-alemão sobre o ato de contar história, sua serventia e importância, soam nas páginas do livro de Héctor Abad. A narrativa adiada por muito tempo, por conta da violência que se abateu sobre sua família, é prova cabal da afasia, ou seja, a impossibilidade de narrar. Mas o tempo decorrido entre os acontecimentos e o ato rememorativo é demonstração de que o narrador destravou-se. A escrita surge plena, pois o conteúdo recalcado retorna iluminado pela necessidade salvadora. A palavra que corporifica a narrativa assume então  a dimensão da constituição do sujeito. Portanto, não há mais silêncio, nem esquecimento.

As lutas encetadas pelo sujeito na tentativa de não deixar o passado esquecido nos leva a pensar na importância da reminiscência,  para que se possa, de certa maneira, vencer a morte. Nada se perde, se assim queremos.  O ato de lembrar, tão presente na história e na literatura, cuida para que nada nos escape. (GAGNEBIN, 2004) Ao urdir a trama de sua narrativa, Abad fala de sua experiência após um tempo em que, mudo, não conseguiu dar corpo à narrativa que nos dá.  Assim, vencendo o trauma ou livrando-se dele pelo ato rememorador, o autor compartilha conosco os vestígios deixados por seu pai. Emerge da guerra suja da Colômbia um sujeito que não emudece e faz valer as suas referências e de sua coletividade. A ausência que seremos é denúncia, mas é, sobretudo, a demonstração da grandeza do amor voltado para o individuo e para a coletividade.

REFERÊNCIAS

ABAS, Héctor. A ausência que seremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2004. 

domingo, 9 de outubro de 2011

Registro 368: Participação o VIII Fórum Intermunicipal de Teatro da Bahia


ALGUNS DESAFIOS DO ENCENADOR NO SÉCULO XXI

Raimundo Matos de Leão


Inicialmente, eu agradeço à União de Amadores Cênicos da Bahia pelo convite. Sinto-me honrado em participar do VIII Fórum Intermunicipal de Teatro da Bahia, e espero contribuir com algumas ideias para animar o debate sobre o tema que me foi confiado: os desafios do encenador no século XXI. Os desafios são claros, e espero que os encenadores sejam homens e mulheres de seu tempo, atentos ao que acontece no mundo globalizado, mas sem perder de vista o que se passa no seu quintal na sua aldeia. Aí já temos um desafio que enseja uma certa demanda por parte de todos nós, artistas ou não. No caso daqueles que optaram pelo exercício de colocar em cena um espetáculo, assinando-o, a responsabilidade é inegável, visto que a obra artística deve trazer elementos que possam estabelecer a comunicação com o espectador na sua contemporaneidade. Falo no singular, pois a obra atinge cada um em particular, embora a plateia se configure com um conjunto de sujeitos. Isso torna o desafio  maior, pois o artista tem de falar para indivíduos que vão ao teatro munidos de uma visão de mundo e com uma bagagem de informações que serão postas a prova ou não pelo que está em cena.

Penso que o artista, por mais complexa que seja a sua obra, busca estabelecer um diálogo com aquele que recebe sua criação, portanto a obra deve se abrir para o receptor de maneira que seus elementos se traduzam e se espalhem. Neste processo, é preciso que o encenador se dê conta da importância do trabalho autoral que se manifesta por uma série de procedimentos cênicos, sem perder de vista o objetivo maior, que é fazer com que sua obra seja decodificada tanto por leigos quanto por especialistas. 

Desde que no teatro surge a figura do encenador nos meados do século XIX, ficando André Antoine como aquele que primeiro assinou um espetáculo, da mesma forma que o pintor assinava seus quadros, a figura do encenador passou a concentrar em maior ou menor grau a responsabilidade sobre o espetáculo. Ele é responsável pela autonomia do espetáculo, contribuindo então para que a encenação se constitua como discurso autônomo em relação ao texto dramático, criando assim a dramaturgia da cena ou o texto espetacular, como define o italiano Marco de Marinis (1982, apud FERNANDES, 2010), ao pensar o espetáculo como uma escritura. Aí temos outro desafio que implica  na opção por parte do artista de tomar para si uma determinada corrente estética e produzir/criar a partir dela, buscando uma unidade de sentidos ou optando por se expressar por um espetáculo organizado de maneira que ele se torne uma polifonia de significantes.

Outra questão que também me parece um desafio é o encenador dar conta da tradição, espanando o pó que o tempo deixou sobre o legado das gerações de artistas anteriores a ele, e ao mesmo tempo se valer dos avanços tecnológicos da contemporaneidade. No entanto, é necessário que o encenador fique de sobreaviso para não sair por aí copiando experimentos que negam o princípio fundamental do teatro, que é a relação direta em tempo real do ator com o espectador. A minha opinião, muitíssimo particular, é de que o teatro existe mesmo é nesta relação. Sem o elemento humano, como poderá haver reverberação emocional, intelectual, estética? Não me parece um bom caminho descaracterizar de tal forma o ato teatral que ele deixe de ser o que é. Tal afirmação não nega a interdisciplinaridade, o hibridismo e a fragmentação. O palco absorve tudo, desde que tudo faça sentido e signifique. Assim não cairemos na algaravia que por vezes se impõe no espaço cênico. Penso num certo equilíbrio entre a “vanguarda prospectiva,” celebrativa da tecnologia de ponta, e a “vanguarda tradicionalista” que se inspira nos ritos antigos (SCHECHNER, 1998), como um caminho para fortalecer a presença viva do ator em comunhão com os espectadores sem que se caia no virtualismo, tendência cada vez mais impositiva na cena.

Assim, vejo como desafio do encenador na pós-modernidade, levando em conta que este conceito está em permanente questionamento, agir organicamente para responder ao postulado do fim das grandes narrativas, ao rompimento das fronteiras entre arte, ciência e entre as linguagens da arte. Levando em consideração tais questões, o encenador deve atentar  para que o apagamento não se dê de maneira que não saibamos mais se o que vemos é encenação teatral ou outra manifestação. Sobre o propalado fim das grandes narrativas, Os Náufragos da Louca Esperança, criação do Théâtre du Soleil, excursionando pelo Brasil, segue na contramão. Sobre a encenação de Ariane Mnouchkine, Luiz Fernando Ramos afirma: "Negando a hipótese de que não haja lugar para as grandes narrativas, o que se conta não só analisa o fracasso das utopias modernas , como arisca  remexê-las. O coletivo do Soleil resiste. Eles não renunciam a sonhar e a produzir quimeras." (Folha de S. Paulo, 06.10.2011)

Outro conceito que deve ser um desafio no horizonte dos encenadores é a polêmica instaurada a partir de Lehmann (2007) e seu conceito de pós-dramático em oposição ao dramático, uma categoria ultrapassada, segundo o ponto de vista do teórico alemão. Seguindo o seu pensamento que aponta o pós-dramático,  surgido em cena desde o teatro experimental dos anos 70, e configurado com mais precisão nas experiências dos anos 90 para cá, o teatro do século XXI deixaria de ser fabular, caindo por terra a triangulação drama, ação e imitação, modelo que nem as vanguardas do século XX conseguiram romper. Parece-me, no entanto, que a discussão proposta envereda por uma via que determina o apagamento de um modelo e sua substituição por outro, um fator que pode colocar os encenadores em uma camisa-de-força, visto que todos devem ser, de agora em diante, pós-dramáticos, e assim conceber suas encenações. É certo que a teatralidade contemporânea vem sendo explodida ao longo do tempo. Podemos tomar a encenação de Ubu Rei de Alfred Jarry, em 1896, como um ponto luminoso nas muitas revoluções sofridas pelo teatro. Assim como este momento ímpar, outros surgiram ao longo da história do espetáculo, figurando transformações radicais e encenações autorais. Talvez seja esse o desafio maior, criar uma obra autoral e fazê-la chegar aos espectadores, independente de um modelo camisa-de-força.

Nesta panorâmica, corro o perigo da redução, mas o que quero fazer aqui é levantar pontos para uma reflexão por parte de quem se interessa em assumir a condição de encenador em um momento histórico de grande mobilidade, de tantas alternativas e redefinições que fornecem possibilidades para a escritura cênica.

Diante de tantos apelos, surge outro desafio: aquele que nos é colocado constantemente, o do engajamento em uma corrente estética, política ou espiritual. Não delongarei o assunto, visto que cabe a cada encenador optar por uma dos campos que acabei de citar, ou por todos eles. Mas é preciso que reflitamos sobre a diversidade de pensamento que engendra uma série de produtos artísticos reverberadores de sentimentos e ideias que desejam a transformação, seja da arte ou do sujeito. Pensando nas teorias desenvolvidas, segundo Guy Debord (1997) em A sociedade do espetáculo, tudo aquilo que era vivido tornou-se representação, ou seja, espetáculo, e este acúmulo de representação gera em nós a sensação de que não podemos intervir e modificar as coisas. Tal comportamento gera uma certa passividade, identificada no interior da pós-modernidade. Lutar contra esta passividade talvez seja um desafio do encenador em direção ao engajamento, mas de modo tal que este engajamento não nos leve ao radicalismo da exclusão. No momento em que o discurso da inclusão é pauta em todas as reuniões e conversas, é necessário discutir a intolerância para sabermos o que é preciso tolerar, e isso  sem que se turve o olhar, para não sermos restritivos ou complacentes demais.

Vejo também como desafio do encenador no século XXI o exercício do papel de pedagogo. É preciso que ele exerça este papel, o do encenador-pedagogo, principalmente quando prepara atores em seus espetáculos. Esta função foi posta em prática no passado por Constantin Stanislavski, e resultou nos avanços que conhecemos sobre a preparação de intérprete, como também das técnicas de encenação. E por falar em técnicas, não é possível conceber um encenador que não as domine minimamente. Deixando claro que as técnicas não devem ser um limitador no seu processo de criação, cabe então, como um desafio, a capacidade do encenador de utilizar as técnicas, percebendo-as enquanto procedimentos que renderão frutos  quando da concepção do seu trabalho, e de sua transposição para tridimensionalidade da cena. A ênfase está na construção da poética, sendo a técnica um meio para a criação.

Quero alertar para a conjunção teoria e prática, não necessariamente nesta ordem, pois vejo neste binômio algo interligado. Cabe ao encenador dar conta dos princípios que regem os estudos teatrais, não desviando a teoria da prática, para não tornar os processos criativos em elucubrações que fazem do palco outro lugar. Deve-se dar conta do trânsito entre as fronteiras, movendo-se com sabedoria para evidenciar o que o teatro tem de mais interessante:  a relação entre alguém que age e outro que a observa.

Cabe ao encenador do século XXI se perguntar a cada momento: para aonde vai o teatro? No artigo O Teatro na Encruzilhada (1998.), Richard Schechener, estudioso da Performance, coloca a pergunta no plural: “Aonde vão os teatros?”, visto que os aspectos do teatro são múltiplos e não evoluem ao mesmo tempo. Portanto, há espaço para gêneros e formas diversas. Nesta diversidade, cabe ao encenador manter a qualidade de suas propostas, sejam elas conformadas de maneira realista-naturalista, ou sob o signo da vanguarda, do experimentalismo, mas sem perder de vista que a experiência teatral é a do espetáculo ao vivo. Por fim, o desafio maior é encontrar os meios para concretizar o sonho e o desejo de cada um.

Finalizando, cito um trecho que recolhi de um artigo escrito pela atriz Fernanda Torres, publicado na Folha de S. Paulo, em 21 de fevereiro de 2011. Diz ela:

Em Surfando no Caos, autobiografia do guru do LSD da América nos anos 1970, Timothy Leary prevê que, no futuro, os relacionamentos virtuais dominarão de tal maneira a humanidade que a presença de alguém em carne e osso será um acontecimento de dimensões míticas. Intrigante observação. Se o psicólogo americano estiver certo, a velha invenção dos gregos, o teatro, será o grande diferencial das gerações futuras, seja na vida artística, política ou filosófica. Em um mundo ainda nervoso, tenso, populoso e avidamente dominado pela tecnologia, nada superará o poder da presença orgânica da natureza encarnada, sólida, calorosa e profunda. E assim, o humanismo entrará novamente em voga.”

Deve encenador fazer do seu espetáculo o lugar dessa humanidade.


REFERÊNCIAS

DÉBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
FERNANDES, Sílvia. Teatralidades contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010.
RAMOS, Luiz Fernando. Théâtre du Soleil sintetiza potência da literatura e do cinema. In: Folha de S. Paulo, Ilustrada. São Paulo, 2011.
SCHECHENER. Richard. O teatro na encruzilhada. Correio da Unesco, ano 26, n.1, jan., 1998.
TORRES, Fernanda. Iremos tocar a baleia Moby no meio da sala. In. Folha de S. Paulo, Ilustrada. São Paulo, 2011.

O presente texto sofreu acréscimos após sua apresentação no Fórum, mas mantém as ideia defendidas durante a exposição. 

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Registro 367: Estado e Religião: uma combinação que não dá certo

JUDEU SEM RELIGIÃO

Escritor israelense que ganhou na Justiça o direito de ter carteira de identidade sem registro de crença ataca a não separação entre religião e Estado e o uso do judaísmo por 'fascistas'. Yoram Kaniuk publicou mais de 20 livros em sua premiada carreira, mas nunca ocupou tantas manchetes. O motivo foi a ação para apagar o judaísmo de sua carteira de identidade. 

Depoimento a Marcelo Ninio (de Jerusalém para Folha de S. Paulo, 6 de outubro de 2001)

Tomei a decisão por que não queria ser minoria em minha própria família [risos]. Sou casado há 50 anos com uma americana não judia. Minhas filhas nasceram aqui, serviram o Exército, são cidadãs israelenses, mas não são consideradas judias. Ganhei um neto e ele foi considerado "sem religião", por ser filho de não judia. Decidi que quero ser como o meu neto. Cansei do controle da religião neste país. É um ciclo perigoso: os religiosos se fortalecem politicamente e impõem mais e mais a religião sobre nós. Até o calendário e o horário de verão são impostos pelos religiosos. Há um controle inaceitável sobre a vida das pessoas. Querem transformar Israel num Estado religioso. Lutei pela criação deste país. O objetivo não era um Estado judeu. [David] Ben Gurion [fundador de Israel] não sonhou com isso, ele não acreditava em religião. O que ele queria era um lar nacional para o povo judeu.Decidi que quero ter a nacionalidade judia, não a religião. Mas Israel não reconhece isso. Bibi [premiê de Israel, Binyamin Netanyahu] fala o tempo todo que os palestinos devem reconhecer o caráter nacional judeu de Israel, mas o próprio Estado não reconhece a nacionalidade judia sem a religião. A decisão judicial é histórica. O juiz abriu uma brecha que, espero, levará à separação entre Estado e religião. Ainda não é uma revolução, mas pode ser o começo.Esse veredicto pode começar a quebrar o monopólio político dos religiosos. Se houver separação entre Estado e religião, eles não terão mais o mesmo poder político. Hoje, nosso modelo lembra a Idade Média. Quando a religião tem o controle, a vítima é sempre a liberdade. Minha mulher e minhas filhas nunca sofreram por não serem judias. Vivemos em Tel Aviv, uma cidade muito liberal. Mas é humilhante, porque não são como os outros. Todas as reações que recebi até agora foram muito boas. Milhares de pessoas esperam por isso há anos, e acho que muitas seguirão o meu exemplo. Ninguém me atacou ainda, mas espero que isso aconteça [risos]. Sou um lutador. Israel tem de decidir: pode ser país democrático ou país judeu religioso. Não pode ser os dois. Religião é dogma, não aceita a democracia. Se em um ou dois anos não acontecer uma mudança, este país está perdido. Se tornará um Estado religioso e sem mão de obra, sem soldados para defendê-lo nem gente capacitada para desenvolver alta tecnologia. Sustentamos centenas de milhares de parasitas. Hoje quase 50% dos alunos de classes primárias são ortodoxos, e a maioria não se integrará ao Estado. Além de tudo, a falta de separação entre Estado e religião permite que o fascismo se espalhe. O incêndio criminoso da mesquita no norte de Israel é só um exemplo. Há fascistas nos assentamentos que fazem o que querem e o governo não faz nada. Atacam árabes, arrancam suas oliveiras, vandalizam mesquitas e o governo faz vista grossa, pois teme perder seu apoio político. Chegamos a um beco sem saída. Por isso o veredicto que me foi concedido é tão importante: cria uma brecha histórica para mudarmos isso, para acabarmos com a legitimidade dos fascistas que usam a religião.Se Israel for mais democrático e menos religioso, o Estado poderá agir contra esses hooligans.  (Grifos meus)

Pensemos no depoimento do escritor, hoje com 80 anos. A sua lucidez é impressionante. Em um mundo acossado cada vez mais pelas Religiões, todas elas querendo o poder para somente reprimir o indivíduo,  as palavras de Yoram Kaniuk calam fundo, pelo menos em mim

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Registro 366: Mais um trecho de Amostra Grátis


Mais um trecho da mostra didática, AMOSTRA GRÁTIS, dos alunos-atores do Módulo I - Interpretação, Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, sob a minha orientação. O vídeo é de autoria de Sandro Souza aluno do curso de Direção Teatral.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Registro 365: Meu livro


Um muro no meio do caminho?! meu primeiro conto para crianças, publicado em 1987, agora recebe uma novíssima edição pela Atual Editora (Grupo Saraiva). Este novo projeto, ganhou a atenção da editora e o resultado é dos melhores. A ilustração é de Márcio Levyman, que foi meu aluno no Ginásio Israelita Scholem Aleichem. Ele fez uma belo trabalho. Levyman é um ilustrador de mão cheia. Gosto do seu traço. O livro foi editado primeiramente por iniciativa de Fanny Abramovich  organizadora de uma coleção para a Salesiana. Na ocasião, o Plano Color atrapalhou os planos da editora e o livro, ainda que tivesse boas críticas, perdeu-se por aí. Agora, ele é outro livro, contando uma história inusitada, a mesma história, mas atualizada. Clique na foto.


sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Registro 364: Protocolo Lunar

Em cartaz no Teatro Martim Gonçalves, Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, o espetáculo Protocolo Lunar, uma história de amor para todas as idades, cumpre com técnica e arte a sua missão, mostrar em um espaço poético a fábula contada por uma senhora "lunática" a uma garota, que sem questionar sobre lógica da existência da mulher secular, dialoga de maneira imaginativa, fazendo-nos mergulhar no universo da fantasia, do sonho e criação sem freios.

No espaço concebido por Sonia Rangel também dramaturga e diretora, a encenação mistura atores e bonecos para falar dos amores perdidos, mas que encontram lugar no espaço lunar. Espaço que se materializa de forma criativa evidenciada nos objetos iluminados com precisão e sensibilidade por Pedro Dutra. 

Na primeira etapa da fábula, quando do encontro da Velha com a Menina, o diálogo permeado de nonsense nos faz sorrir e esperar pela segunda parte quando a velha conta sobre a paixão que se perde, mas não cria desconforto. Perder e ganhar fazem parte do jogo da vida, do aprendizado...

Ainda que a transição entre a primeira parte e a segunda se alongue, não perdemos o interesse pelo que acontece. Mas a ação ganharia desenvoltura houvesse um enxugamento em boa parte do texto. Com isso desapareceria o vácuo que há na dramaturgia textual e cênica. Tal observação não retira o mérito do conjunto, visto que a força do espetáculo está nas imagens que cria.


O diálogo entre os bonecos se dá através de uma língua inventada cuja sonoridade é cativante. Os atores manipuladores merecem aplausos por tais momentos.


No palco permeado de imagens incrivelmente belas, a encenação nos diz o que é a poesia, esta manifestação intraduzível por mais que queiramos conceituá-la. Ela se manifesta de maneira intensa em nossas vidas poetizando-a. E na peça, os livros que a Velha carrega nas malas são a prova de que a poesia se faz como elaboração de forças criativas que emanam do espírito humano, desencadeadas por um querer que não se submete a uma lógica estreita. Ela é livre e se faz na disparidade.

Protocolo Lunar cativa o público, vimos isto pela reação durante o espetáculo e no final, quando a plateia aplaude não por obrigação, uma atitude recorrente nos finais dos espetáculos em Salvador, me parece.

A equipe de Os Imaginários responsável pelo trabalho cênico constitui-se como um grupo vinculado ao projeto de pesquisa Imaginário e Processos de Criação. Centrando-se no universo de Teatro de Animação, a produção do grupo mostra-se inventiva neste espetáculo, assim como em Fragmentos, animação com Beckett.

Vale a pena conferir Protocolo Lunar. Para mim foi um experiência gratificante. Dormi contente e tive sonhos saltitando por entre meus lençóis.


Penso que Federico Garcia Lorca aplaudiria Protocolo Lunar e Sílvia Orthof também. Maria Clara Machado,  certamente. Lewis Carrol,sem dúvida. Fanny Abramovich aplaudiria entusiasticamente.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Registro 363: Bons filmes, belas palavras

Ontem, ao sair do cinema, pensei em escrever sobre o filme A Árvore da Vida, mas tomado pela experiência não consegui organizar as ideias. A intensidade da obra não me paralisou, mas não querendo reduzir o seu impacto através de frases feitas não insisti, o texto ficou reduzido a um parágrafo. 
O filme de Terrence Malick causou uma funda impressão e catalizou certas preocupações que me acompanham. Aproveitando a oportunidade, digo o mesmo de Melancolia, o filme de Lars von Trier. Tanto um como o outro são filmes que mexem com o espectador e não há meio termo, ou gostamos ou detestamos. 
Logo cedo, antes de sair para cumprir a jornada de trabalho na Escola de Teatro, início do semestre, olhei a Folha de S. Paulo e dei com o texto de Luiz Felipe Pondé. O texto me satisfez plenamente. Ainda que discorde de outros textos de Pondé, o de hoje sobre o filme de Malick é preciso. Sem a sua permissão reproduzo o artigo e espero que ele contribua para aqueles que desejam ver A Árvore da Vida. Mas aviso, vá de coração aberto. Recomendo também a ida ao cinema para ver Melancolia. E tem mais, na sexta, 26, deve entrar em cartaz Homens e Deuses. Viva os filmes, os bons filmes. Vamos ao texto.
Natureza e graça
Luiz Felipe Pondé
(Folha de S. Paulo, 15 de agosto de 2011)

A vida é feita de escolhas. Uma das escolhas mais sérias na vida é o modo como vivemos a vida, se como graça ou como natureza. Essa questão é uma alternativa clássica na filosofia cristã, mais especificamente de Santo de Agostinho, morto no ano 430 d.C. Duas de suas obras, "Natureza e Graça" e "Confissões", são essenciais para entendermos este problema. 

O novo filme do misterioso cineasta americano Terrence Malick (que despreza o glamour da indústria do cinema e das festas da mídia) se abre com esta questão. "Árvore da Vida" foi o vencedor da palma de ouro de Cannes deste ano. 

Malick é um cineasta que faz da espiritualidade a matéria-prima de seu cinema, como, por exemplo, o russo Tarkovski fazia.

Já em "Além da Linha Vermelha", de 1998, com a espiritualidade na guerra, e "O Novo Mundo", de 2005, com a espiritualidade do encontro com o "outro", Malick faz da voz em "off" de seus personagens um apelo desesperado da espécie humana em busca do sentido de nossa aventura na Terra. Em Malick, cada agonia do indivíduo (cada "voz") é arquetípica do humano.

Por favor, não entenda "espiritualidade" aqui como essas bobagens de sofás que você muda de lugar para melhorar a energia da sua casa ou uma palavra para você falar de suas manias com cristais ou expectativas reencarnacionistas. 

"Espiritualidade" aqui significa a indagação essencial se a vida é fruto de uma força cega ou fruto de uma intenção bela, confrontada cotidianamente com o sofrimento inquestionável da vida.

Segundo a personagem feminina principal, a mãe dos três filhos (um deles, quando adulto, será Sean Penn) e esposa de Brad Pitt no filme, interpretada pela belíssima ruiva Jessica Chastain, há duas formas de viver: "The way of grace or the way of nature" (segundo a graça ou segundo a natureza). Podemos também traduzir "way" aqui por caminho, modo, forma ou maneira.

Esta é a chave para o entendimento mais profundo deste filme. Sem ela, você poderá ficar rodando em círculos ao redor do encontro, no enredo, entre a origem do universo e da vida na Terra (narrada em maravilhosas imagens cósmicas e paleontológicas) e a história da família que tem essa "mística" como mãe e que nos primeiros minutos recebe a notícia da morte de um de seus filhos na guerra do Vietnã (o "filho mais doce e generoso" dos três).

Eu, que sou uma pessoa essencialmente atormentada pela melancolia (como dizia semana passada ao comentar outra recente pérola do cinema, o filme "Melancolia" de Lars von Trier), considero esse conceito de "graça" do cristianismo uma das maiores criações da filosofia ocidental, além do conceito de Deus, claro. A graça sempre me encanta e, no cristianismo, ela é o "modo" de Deus criar as coisas. 

Toda vez que o mundo (e nós nele) surpreende, saindo de sua constante miséria interesseira, vaidosa, traiçoeira, monotonamente previsível, eu sinto o cheiro da graça. 

Tivesse eu que definir o modo como vivo, diria, entre a melancolia e a graça. Para mim, não há nada entre elas, só abismo.

Peço aos inteligentinhos que me poupem o blá-blá-blá do jardim da infância sobre as críticas ao cristianismo ou ao conceito de Deus. Proponho que hoje vão brincar no parque.

A graça é generosa, não pensa em si mesma, pode ser humilhada, ignorada, desprezada, mas ainda assim ela dá vida. A natureza só pensa em si mesma, submete todos a ela, é escrava de sua fisiologia, ao fim, vira pedra. 

É mais ou menos assim que a mãe "mística" define a diferença entre viver segundo a graça ou segundo a natureza.

Se a vida é fruto da graça, ela é dádiva de beleza e de bondade, se ela é apenas natureza, ela é cega e sem sentido.
 
O adulto Sean Penn será o herdeiro agoniado desta questão: a vida é graça ou mera natureza? "Devo ser competitivo", como o pai o ensinou a ser (a natureza), ou "generoso", como a mãe lhe dizia (a graça)? A morte prematura do irmão será intransponível? Como amar a vida diante da morte? Seria ela a derrota da graça? A vitória da natureza cega?