quinta-feira, 24 de maio de 2007

Registro 83: Sobre o teatro na Bahia

DA CENA AMADORA
AO
MODERNO PROJETO DA ESCOLA DE TEATRO (1)

Raimundo Matos de Leão

Escrever sobre o teatro na Bahia é abrir o pano para a cena que se constrói a partir da criação da Escola de Teatro da Universidade da Bahia (2), em 1956, um projeto creditado ao reitor Edgard Santos em sua visão modernizadora. Esse projeto configurou a Universidade como um pólo irradiador da cultura e da arte, dando-lhe, por essa via, uma identidade.

A ação do reitor traz para a Bahia nomes expressivos como de Hans J. Koellreutter ou Yanka Rudzka, o primeiro à frente dos Seminários Música e a segunda junto à Escola de Dança. Para completar o tripé, coube a Eros Martins Gonçalves a responsabilidade de dar forma à primeira escola de teatro no Brasil em nível universitário. Agregando-se ao trio, insere-se a figura de Lina Bo Bardi que, a convite do governador Juracy Magalhães, vem implantar o Museu de Arte Moderna da Bahia.

Em torno dessa figuras expressivas, gravitam outros nomes significativos (Pierre Verger, Agostinho da Silva, Carybé, Mário Cravo, Walter da Silveira, Clarival Valladares), contribuindo com a efervescência do cenário cultural da “província”. A ação desses artistas e intelectuais acontece num momento em que a vida brasileira, sob o governo de Juscelino Kubitschek, vive um processo de crescimento que se espraia pelos segmentos econômicos, políticos e sociais, refletindo-se nas linguagens artísticas de maneira generosa e fértil.

Os que aportaram na Bahia nos anos de 1950, atendendo ao chamamento do reitor Edgard Santos, contribuíram na formação de outra geração. Dela fazem parte Glauber Rocha, Caetano Veloso, Carlos Nelson Coutinho, Gilberto Gil, Tom Zé, Rogério Duarte, Fernando da Rocha Peres, Florisvaldo Mattos, João Ubaldo Ribeiro, espectadores que foram dos eventos artístico-culturais produzidos nas escolas de Arte criadas na gestão Edgard Santos.

Naquela época, com relação ao teatro brasileiro moderno, o que se pode afirmar é que seu processo, deslanchado por Os Comediantes com a encenação de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, dirigida por Zbigniew Ziembinski em 1943, já havia se consolidado. Através do bem sucedido empreendimento de Franco Zampari – o Teatro Brasileiro de Comédia – TBC – e das companhias e grupos teatrais que se formam a partir dessas realizações inovadoras, o teatro brasileiro insere-se nas correntes avançadas da cena mundial. No horizonte dessas duas realizações, uma carioca e outra paulista, encontra-se o instigante trabalho dos amadores.

Frente a um teatro profissional que mantinha convenções já questionadas e superadas pelas correntes estéticas dos começos do século XX e pelos movimentos surgidos no pós-guerra, os amadores brasileiros do eixo Rio-São Paulo procuraram um caminho para que o fazer teatral se designasse de uma outra maneira. A cena contemporânea não se coadunava mais com encenações centradas nas figuras do primeiro ator/atriz que ocupavam o centro do palco, e a partir dele determinavam as marcações sob a responsabilidade de uma ensaiador. Esta cena não se prestava mais a uma tipologia que divide os intérpretes dos elencos em um galã, uma ingênua, um cômico, uma dama-galã e uma caricata, entre outros.

Os espetáculos concebidos como obras de arte, fruto do aparecimento do encenador moderno nos longínquos meados do século XIX, não comportavam a figura do ponto a soprar o texto não memorizado, para os atores, nem o figurino e cenários elaborados a partir do que se tinha à mão. Além disso, pedia uma dramaturgia de qualidade fosse ela clássica ou moderna, que viesse responder ou refletir sobre questões de interesse para um público ávido por vivenciar aquele verniz cultural que as condições econômicas do país, naquele momento, possibilitavam.

Esse quadro, “provindo todo ele, enquanto estrutura, do século XIX”, segundo Décio de Almeida Prado (1996: 19), foi posto em cheque pelos amadores, seguindo os passos dos seus antecessores Álvaro Moreyra e Renato Vianna, precursores no Brasil de tentativas modernizadoras do nosso teatro. As iniciativas renovadoras não se restringem ao Sul do país. Afirmar, então, que a modernização do teatro no Brasil é fruto da inquietação dos amadores não é uma temeridade. A fortuna crítica em torno do assunto é considerável. Através dos estudos feitos por Almeida Prado, Sábato Magaldi, Gustavo Dórea, Nelson de Araújo, Mario Cacciaglia, Alberto Guzik, entre outros, pode-se constatar que a primazia por tal fato está nas mãos do grupo carioca Os Comediantes e na do paulista Grupo de Teatro Experimental e Grupo de Teatro Universitário.

Nas décadas de 1930 e 1940, o movimento de teatro amador no Brasil confirma-se de maneira singular. Em Recife, através do Teatro de Amadores de Pernambuco, dirigido por Waldemar Oliveira, acontece uma notável experiência no campo teatral, iniciativa surgida para comemorar o centenário da Sociedade de Medicina de Pernambuco. O grupo recifense, fundado em 1941, inscreve-se na história do teatro brasileiro como uma iniciativa das mais fecundas fora do eixo Rio-São Paulo. Sua contribuição para a renovação do teatro é inegável, tanto pelo repertório escolhido quanto pelo cuidado técnico e artístico que envolvia as suas produções. Suas encenações creditadas a Waldemar de Oliveira, foram realizadas também por Adacto Filho, Zygmunt Turkov e Ziembinski, os três com passagem pelo grupo Os Comediantes, confirmando-se uma prática de se trazer de fora pessoas competentes que pudessem dar conta das ambições artísticas e comerciais do grupo. Prática recorrente também no teatro baiano.

Evocar o Teatro de Amadores de Pernambuco se faz necessário, não só por sua contribuição ao fazer teatral fora dos dois maiores centros produtores de espetáculos do país, mas também por sua participação ativa junto aos grupos de amadores de Salvador. Nos anos de 1940 e 1950, verifica-se a presença de seus filiados, dirigindo peças e mantendo laços estreitos no sentido do fortalecimento da atividade teatral na Bahia.

Essa atividade desenvolveu-se sob a responsabilidade dos importantes grupos Teatro de Amadores de Fantoches e a Hora da Criança, fundados em meados dos anos de 1940, cabendo a Hora da Criança, iniciativa de Adroaldo Ribeiro Costa, a realização de espetáculos com elenco de crianças e adolescentes. Juntam-se a essas iniciativas o Teatro de Estudantes da Bahia, o Grupo Cênico do ICEIA, o Grêmio Lítero-Teatral Castro Alves e o Grupo Dramático Xisto Bahia, os dois últimos responsáveis por espetáculos realizados em residências, uma prática vista em vários momentos da história do teatro na Bahia. Segundo Chopin Junior, o assunto seria próprio para a crônica social ou teatral. Mesmo assim, esse jornalista registra em sua coluna a apresentação da peça O Homem da Flor na Boca, de Pirandello, interpretada por Othon Bastos na residência da família Cintra Monteiro, em 1956.

O Teatro de Amadores de Fantoches – TAF, também conhecido como “do Fantoches” por pertencer ao prestigioso clube social do mesmo nome, estréia em dezembro de 1945 com a opereta de Franz Lehar O Conde de Luxemburgo, continuando a mostrar esse gênero de teatro em outras temporadas, enquanto a Hora da Criança faz a sua estréia com a montagem da opereta Narizinho, a partir do clássico de Monteiro Lobato. Mas o grande acontecimento teatral a coroar década é a montagem, em 1949, do Auto da Graça e Glória da Bahia, de Godofredo Filho, dirigido por Chianca de Garcia, português radicado no Rio de Janeiro, que a convite da Secretaria de Educação e Saúde, se desloca para Salvador, no intuito de encenar o texto.

O Auto da Graça e Glória da Bahia tem sua estréia num desfile pelas ruas da cidade. Em seguida é encenado no auditório do Instituto Central de Educação Isaías Alves, reformado para receber espetáculos teatrais da cidade e companhias visitantes. O desfile levado a efeito em 29 de março de 1949, “ponto alto das comemorações festivas do quadri-centenário da nossa capital” segundo o jornal A Tarde (27.07.1949), vai para a ribalta dividido em doze quadros abarcando vários gêneros de teatro. Sua montagem exige numeroso elenco, formado entre rapazes e moças da sociedade local. Médicos, advogados, engenheiros, professores, comerciantes aderem ao chamado do diretor e, segundo ele, “comparecem com fidelidade” aos ensaios do espetáculo.
Mais de 400 pessoas estão envolvidas na montagem do Auto da Graça. Para Chianca de Garcia, a grande dificuldade é ensaiar o numeroso elenco em apenas três horas por dia, já que é esse o tempo que os participantes disponibilizam para o evento. Com profissionais, o diretor afirma que marcaria ensaios “desde as 13 horas e só terminaria às 2 da madrugada”.

O depoimento de Garcia atesta que o teatro amador feito na Bahia, mesmo depois do surgimento da Escola de Teatro, caracteriza-se por uma atividade diletante, feito por pessoas abnegadas, mas sem grande experiência, tornando a atividade como um encontro social, longe do sentido que o teatro requer. O Auto da Graça e Glória da Bahia estréia com grande sucesso, repercutindo no Rio de Janeiro. Em 12 de novembro do mesmo ano, o jornal A Tarde transcreve a crítica de Augusto Maurício, publicada pelo Jornal do Brasil, na qual afirma “que a representação (...) foi a melhor que se poderia desejar. No seu numeroso elenco não havia um só artista profissional, nem mesmo amador (...) Esse fato, porém, não diminuiu o êxito do trabalho, nem serviu de desculpa para qualquer deslize artístico”.

O esporádico acontecimento termina por ressaltar a continuidade do Teatro de Amadores de Fantoches, que em 1950 cria uma escola experimental de teatro. Ao inaugurar a escola, Renato Sampaio apresentar as suas diretrizes, considerando importância cultural da iniciativa: “uma das razões que o levam a crer no seu bom êxito (...) era o desusado interesse que despertava” e acrescenta: “por mais espetáculos que o teatro venha a realizar, jamais seguirá um que excede, em beleza, a este, da sociedade baiana, aqui reunida” (A Tarde 24.01.1950), indicando em que terreno se dá esse teatro. No entanto, por essa época, vamos encontrar, junto aos Amadores de Fantoches, Adacto Filho, encarregado das encenações da temporada, iniciada com peças curtas de Pirandello, Azarento, seguida de Um Pedido de Casamento, de Anton Tchecov, que tinha o objetivo de difundir a arte cênica no Estado e acostumar o público ao teatro. Registre-se a presença de Hidelgardes Cantolina Viana no elenco da peça de Tchecov, no papel de Natacha.
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(1) Artigo publicado originalmente na Revista da Bahia, v. 32, n. 37, 2003.1 - Semestral. ISSN 0103-2089