segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Registro 226: Retirado da gaveta

A CENA PARA ALÉM DOS CONCEITOS
TEATRO DRAMÁTICO E PÓS-DRAMÁTICO

Foi puro prazer assistir aos dois espetáculos apresentados pelo grupo CLOWNS DE SHAKESPEARE, do Rio Grande do Norte, no Festival Latino Americano de Teatro da Bahia, acontecimento artístico-cultural que se deu na primeira quinzena de setembro em Salvador, evento realizado por Oco Teatro Laboratório.

O grupo potiguar trouxe dois espetáculos para o Festival. Fábulas, uma especial adaptação para o palco das fábulas de Esopo e La Fontaine, selecionadas por Monteiro Lobato. Os Clows Marco França, Nara Kelly e Rogério Ferraz, dirigidos por Fernando Yamamoto, encarregam-se com grande maestria dos diversos personagens (animais), sem que precisem utilizar de disfarces ou figurinos ilustrativos para presentificá-los na cena. Espetáculo destinado às crianças, não se deixa prender na classificação caduca de teatro infantil.

O segundo espetáculo, a encenação de Muito Barulho Por Quase Nada, de W. Shakespeare, comprova mais uma vez a qualidade do grupo. Tanto um trabalho quanto o outro são pistas para uma dimensão da cena teatral brasileira atual. Apreciar as duas montagens é perceber o diálogo entre o regional, o nacional e as pontes lançadas para fora do nosso quintal. Por essas vias de mão dupla correm idéias e práticas vivificadoras.

Leitura cênica muito oportuna, os dois espetáculos demonstram a qualidade do teatro fora dos eixos – como sugere Cleise Mendes –, eixos compreendidos aqui como territórios hegemônicos do fazer teatral no Brasil, lugares por onde passa uma suposta supremacia da invenção e qualidade da produção cênica. Essa suposta superioridade do eixo Rio/São Paulo é quantitativa, não qualitativa, como demonstra as duas encenações aplaudidas longamente pela platéia, gratificada pela engenhosidade das concepções cênicas e, sobretudo, pela presença dos atores e atrizes.

Os espetáculos criados em Natal são comprovadamente realizações estéticas bem acabadas, produzidas fora do circuito do teatro profissional dos centros economicamente hegemônicos do país, mas ainda assim altamente profissionais.

É certo que identificamos nos dois espetáculos elementos teatrais colhidos aqui e ali, mas trabalhados de forma criativa pelos integrantes dessa trupe vivaz e comunicativa. No entanto, a essência do seu trabalho indica um conhecimento de suas raízes, da tradição e do “novo”, tomados de maneira consciente e reelaborados no palco, de forma que as encenações vistas no espaço do Teatro Vila Velha cumprem os seus propósitos diante de um público cativado, não pelas facilidades e modismos, mas por perceber a somatória de informações que o teatro sem fronteiras mostra.

O diálogo que se dá entre o clássico e o popular, nos variados gêneros incluídos nesses universos, tomam forma na maneira como as fábulas de Esopo e La Fontaine são transpostas para o palco, na abordagem que se dá ao texto de Shakespeare, nas interpretações sob multíplice registros, no intenso lirismo e no domínio dos códigos que regem o teatro, sem que se dê o aprisionamento aos ditames de uma cartilha. Juntam-se a esses elementos os figurinos precisos, bem idealizados e confeccionados, sem preocupação realista, histórica ou arqueológica. Ainda que em suas linhas se encontrem resquícios dos excessos deslumbrantes do barroco e das indumentárias características de certos folguedos populares, a concepção não trilha o caminho da verossimilhança. Nota-se em seus traços a influência do desenho de Gabriel Vilela, sem que se note cópia, mas releitura de uma estética marcadamente brasileira. As indumentárias são confeccionadas em tons claros, uma opção que faz ressaltar o uso das cores quentes a animar a palheta em que predomina o branco.

Com relação ao tratamento dado ao texto, comprova-se a sua força e sua eficácia enquanto signo no interior de outros signos, os da representação. Essa comunhão entre a palavra e o gesto, entre a palavra, a luz, os figurinos e o espaço cenográfico, mostra-se bem articulada por Fernando Yamamoto, em Fábula, e por ele e Eduardo Moreira, em Muito Barulho Por Quase Nada. Suas opções geram significados e sentidos no interior do palco e da platéia, frutos de uma pesquisa para encontrar modos de dizer e se fazer compreender, uma das finalidades do teatro em sua constante re-invenção estética e cultural.

Se a montagem da comédia de Shakespeare é relevante no sentido de confirmar a sua indiscutível feitura para o palco, a encenação de textos não dramáticos, como as fábulas, autoriza a afirmativa de que o palco está aberto para variadas experiências sem que uma anule a outra. Ver as encenações realizadas pelos Clowns de Shakespeare é apreciar um resultado profícuo do teatro construído sobre a emancipação dos seus elementos, combinados de maneira que se imbriquem e se mantenham também visíveis em sua unicidade. Da mesma forma, percebe-se na cena os hibridismos, atestados de que o pensar-fazer teatro segue por veredas às vezes planas e às vezes tortas, mas sempre surpreendentes.

A vitalidade das montagens em pauta e de outras que estão sendo realizadas, tanto em Salvador quanto em outras praças, pode colocar em discussão questões relativas às hierarquias e seus rompimentos na cena. Por essa via, defende-se o princípio do não regulamento estético da cena, evitando a dicotomia entre os conceitos teatro dramático ou pós-dramático para atestar ou não a sua qualidade e atualidade de comunicação. Parece-me que essa oposição pretende considerar o teatro dramático tendencialmente conservador e o pós-dramático como o top de linha. Portanto, os espetáculos fora dessa tendência estariam condenados à obliqüidade do olhar.

É certo que o teatro mudou. E seus contornos ainda difusos não podem ser amarrados em camisas-de-força, visto que as antinomias ainda se fazem ver no terreno prescritivo que envolve as duas tendências, ainda que, historicamente, o teatro dramático apresente uma somatória de questões já absorvidas pela cena. Por outro lado, a historicidade não esgotou o potencial inventivo do teatro dramático, ainda que a cena a partir dos anos setenta tenha desconstruído o fabular, mas não a ação dramática, essência do teatro a alimentar de poesia o palco aberto e os espectadores ávidos de emoções estéticas ou de outra natureza. Não me refiro aqui ao “teatro de distração”, aquele preocupado apenas com o entretenimento.

A crise da dramaturgia, e não um mero acomodamento, prefigura novos experimentos e novos procedimentos cênicos revitalizadores da prática teatral, fato confirmado pelas diversas encenações postas em movimento no palco do Teatro Vila Velha. Os aspectos expressivos que reverberam nos dois espetáculos motivadores dessa reflexão, já que não nos foi possível ver a totalidade do programa ofertado, potencializam as soluções encontradas pela via processual que a pesquisa requer. Esse caminho revela-se na cena e faz com que os significantes tornem-se presentes, conformando caráter, ilusão e representação para além do mimético, quando entendido como cópia, rebaixamento da mímesis, o que não é o caso, visto que a minha compreensão de mímesis passa por outro filtro, o aristotélico e também o benjaminiano. Para os interessados, recomenda-se o texto de Jeanne Marie Gagnebin, Do Conceito de Mímesis no Pensamento de Adorno e Benjamin, em Sete Aulas Sobre Linguagem, Memória e História (Imago, 1997, p. 81-104)

Uma postura menos triunfalista com relação ao pós-dramático e menos finca-pé no teatro dramático nos salvará dos hermetismos que rondam a cena, constituindo-a de produtos que estão “mais para gato do que para lebre”. Não é o caso, em se tratando dos espetáculos comentados.

A proposta formal de a Fábula e de Muito Barulho Por Quase Nada se constitui de invenção alicerçada por elementos reconhecidos pelos espectadores, sem que esse reconhecer implique no fechamento das encenações em uma fórmula gasta pela intromissão dos esquemas midiáticos. A tendência pós-moderna de atrelamento da arte teatral aos ditames pasteurizados da cultura midiática não prevalece nas duas encenações. Não posso me arrogar o direito de falar pelos espectadores, mas observo que as reações no interior da sala atestam a receptividade da experiência, configurada pela cumplicidade partilhada. A presença do intérprete como detentor dessa mediação não rebaixa o compartilhamento, mas provoca uma relação extra-cotidiana: palco e platéia mesclam energia.

Tanto em Fábula quanto em Muito Barulho Por Quase Nada, o exercício dos intérpretes se dá em múltiplos registros; aglutinam-se estilos conforme pede a situação armada pelo autor e pelo encenador. Essa riqueza possibilita, por parte do atores, a exploração dos recursos corporais e vocais assentados sobre matrizes reconhecíveis e reelaborados no jogo cênico. César Ferrário, Marco França, Nara Kelly, Eduardo Galvão, Helena Cantidio, Renata Kaiser e Rogério Ferraz, que constituem o elenco da comédia shakespeareana, cumprem muito bem o que se propõem. A presença cênica desses intérpretes revela a “essência do clown (...) desde os elementos técnicos, de tempo e olhar, de relação com a platéia, até a forma ‘pessoal e intransferível’ de ver o mundo, sempre distorcida pela lente do lirismo”, conforme o texto do programa. As personagens elaboradas com desenvoltura e presentificadas na cena ganham força e articulam-se à poética do texto e à poética da encenação, como indica Anne Ubersfeld em Para Ler o Teatro (Perspectiva, 2005): “não mais como a cópia-substância de um ser”, mas como lugar, como mediação. A essência do clown liberta os atores da estereotipia e do efeito fácil que a especificidade pode acarretar.

A somatória de pontos positivos que as duas encenações apresentam provoca reflexões para além daquilo que os conceitos prescrevem, ainda que eles ajudem na decodificação do objeto estético. Nem por isso, a apreciação das encenações de Fábula e de Muito Barulho Por Quase Nada se deu munida de uma lupa para achar as digitais dos que se mantém aferrados ao teatro dramático, com a intenção de condená-los. Da mesma maneira, não se rastrearam as premissas do pós-dramático para se atestar as qualidades das encenações postas em movimento pela liberdade e experimentação necessárias para que o teatro se mantenha como expressão do seu tempo, “nos quais o espectador pode ensaiar como viver a experiência da instabilidade e da fragilidade da identidade de forma produtiva e prazerosa”, como indica Erika Fisher-Lichte em Transformações texto publicado na revista Urdimento (2007).

Acontecimentos como este Festival servem para estabelecer encontros. No caso do Latino Americano, possibilitou a confluência de encenações realizadas em Cuba, Equador, México, Peru, Recife, Porto Alegre, Salvador, São Paulo e Natal. O pensar-fazer teatro se alimenta desse intercâmbio, e a cultura daqui e de fora é vista como um veículo de informações transmitidas. Não apenas isso, eventos dessa natureza proporcionam a produção de informações realmente transformadora.

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O texto foi escrito quando da apresentação dos espetáculos. Fiquei aguardando sua publicação em um jornal local. Por motivos alheios à minha vontade, o texto não foi publicado ficando na gaveta - expressão mais antiga, não?! Resolvi publicá-lo em virtude da qualidade do grupo Clowns de Shakespeare e registrar sua passagem por Salvador.