sábado, 20 de outubro de 2007

Registro 121: Em Memória

PRESENÇA DE PAULO AUTRAN

Raimundo Matos de Leão

Doutor e Mestre em Artes Cênicas – UFBA.
Escritor, arte-educador, coordenador e
professor do Curso de Artes Cênicas – FSBA.



“Sempre fui sempre serei um homem de teatro”, com essas palavras Paulo Autran iniciava o espetáculo Liberdade, Liberdade, num tempo em que a liberdade andava bem escassa entre nós. Mesmo assim, os artistas mantinham-se firmes, garantindo seu espaço e a sobrevivência de sua arte. Apesar da censura, as vozes de Paulo Autran, Thereza Rachel, Oduvaldo Vianna Filho e Nara Leão, entre outros, se uniam em comunhão com as do público para cantar: “E, no entanto é preciso cantar. Mais que nunca é preciso cantar e alegrar a cidade”. Desde o palco do Teatro Opinião, e por todas as ribaltas brasileiras que receberam o espetáculo dirigido por Flávio Rangel, ecoava o protesto, a denúncia, o incômodo por ver o regime de exceção de 31 de março de 64 tomar corpo e se infiltrar no cotidiano.

O governo civil-militar militar aquartelado no Planalto ainda não havia mostrado a sua face mais cruel, fato que vai se dar com a evolução das suas constituintes, quando da decretação do Ato Institucional Número 5 – AI5. Mesmo assim, impediam-se a livre manifestação de pensamento e a organização das entidades; prendiam-se e exilavam-se lideranças intelectuais e políticas significativas do cenário cultural e político do País. Os artistas passam a sofrer um processo de vigilância e perseguição acirradas, fator que coloca em risco o exercício da profissão. A situação beco sem saída vai levar Paulo Autran, ator identificado com o “teatrão”, aquele oriundo do Teatro Brasileiro de Comédia, do qual foi cria, a ingressar em uma produção cuja coloração estética e ideológica dos seus participantes – Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Oduvaldo Vianna Filho, Pichim Plá, João das Neves, Tereza Aragão – não condizia com sua postura enquanto homem de teatro. Ator distante das propostas do paulistano Teatro de Arena e do carioca Grupo Opinião, Autran sobe ao palco para defender um princípio e afirmar a sua filiação maior, o fazer teatral, e por tabela, a liberdade de expressão.

Não assisti a montagem de Liberdade, Liberdade, mas fui um dos que adquiriu a edição do texto e o long-play com a gravação do espetáculo. A primeira vez que vi Paulo Autran foi em Édipo Rei, de Sófocles, quando de sua passagem por Salvador, em 1967. Convidado por Francisco Barreto, crítico teatral do jornal A Tarde, meti-me num terno, traje obrigatório para ir ao Teatro Castro Alves para apreciar a elogiada encenação.

Para um jovem que fazia teatro amador em Feira de Santana, ver a encenação protagonizada por Autran, aquele que ficou conhecido nos meios teatrais “como o nosso primeiro ator”, distinção de peso em meio a muitos primeiros atores, significou a determinação pelo palco, decisão que se concretiza com o meu ingresso na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Ainda em Salvador, assisti Paulo Autran em O Burguês Fidalgo, de Molière, sob a direção de Ademar Guerra, e na remontagem da histórica encenação de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, criação de Silnei Siqueira.

Em curto espaço de tempo, o ator mostrou seu talento e sua maneira de encarar papéis diversos. Em Édipo Rei e no Burguês Fidalgo, Autran encarregava-se dos protagonistas e desempenhava com versatilidade os gêneros trágico e cômico, com a marca de quem sabe os segredos do palco, de quem reteve as lições dos mestres italianos que aperfeiçoaram suas qualidades interpretativas. Tais atributos foram demonstrados na estréia de Um Deus Dormiu Lá em Casa, de Guilherme Figueiredo, quando dividiu o palco com Tônia Carrero, responsável por subverter a carreira do jovem advogado até então indeciso entre os tribunais e a tribuna do palco, esses metros de tablado onde a vida é representada simbolicamente. Já em Morte e Vida Severina, o ator entrava nos momentos finais do espetáculo para interpretar o papel de Seu José, o Mestre Carpina.

Além disso, essas realizações mostravam também suas qualidades de produtor bem sucedido. Ao cercar-se dos melhores profissionais, atores, atrizes, encenadores, cenógrafos, figurinistas e demais técnicos para levantar espetáculos, Paulo Autran preservou por muito tempo a função de ator-empresário que cuidava não apenas do seu lugar no palco, mas sabia que o sucesso da encenação devia-se ao conjunto de realizadores.

A necessidade de manter o empreendimento fazia com que seus espetáculos chegassem a diversas praças, não se restringindo aos palcos do eixo Rio-São Paulo. As viagens pelo Brasil afora, iniciativa da qual se orgulhou sempre, possibilitou que tomássemos contato com encenações de nível, embora, em sua maioria, concebidas para um intérprete que se mostrou distante das vanguardas e das experimentações cênicas mais arrojadas. A afirmação não diminui a contribuição de Paulo Autran como ator, produtor e também como diretor, já que concebeu espetáculos para si e para outros atores e atrizes. É sua a direção de O Homem Elefante, com Ewerton de Castro no papel principal. Mesmo sem aventurar-se nos experimentos teatrais que invadiram a cena nas décadas de 60 e 70, principalmente, o ator se aproximou de Celso Nunes, considerado como um dos primeiros encenadores a trabalhar com as propostas grotowskianas entre nós.

O lado empresarial de Paulo Autran toma corpo desde a Companhia Tônia-Celi-Autran, empreendimento que se dá quando da saída dos artistas do TBC acompanhados por Adolfo Celi, o primeiro dos diretores italianos que formataram artisticamente a empresa de Franco Zampari, marco da profissionalização dos amadores em 1948.

Anos mais tarde, já formado pela Escola de Teatro e iniciando a minha carreira como ator em São Paulo, partilhei, ainda que de maneira restrita e respeitosa, o convívio com esse ator paradigmático, referência para gerações de artistas de teatro. Através de amigos comuns, estive em reuniões na residência da atriz Miriam Muniz. Em várias delas, Paulo Autran deliciava os presentes com suas histórias e observações sobre a vida, o teatro e as pessoas. Entre os amigos que circulavam no apartamento da memorável atriz, Paulo Autran e Miriam Muniz centralizavam as atenções da platéia cativa, e, generosos, abriam espaços para que tosos se manifestassem. Ver o grande ator despido de sua grandiosidade de intérprete e contando piada, falando sobre assuntos diversos, dos mais profundos aos mais banais, era um encanto a que eu calado me rendia, desejoso de um dia de subir ao palco com ele para aprender os segredos de quem sabia lidar com a palavra, dominando-a inigualavelmente. Não tive esse privilégio, mas hoje, diante do que vi na sala desse apartamento e no palco, tenho certeza de que os ensinamentos foram dados sem que eu pedisse, sem que ele conscientemente oferecesse.

O amor pelo teatro, sua postura ética, sua discrição e generosidade somavam-se a um espírito aguçado, irônico, enfático, atributos delineadores de sua personalidade. Nessas reuniões, ele expunha seu pensamento sobre o teatro e dizia sempre que não tinha certeza de nada. A única que tinha era o teatro e a defesa dessa arte. Por ela movia o mundo, por ela manifestava-se, por ela transpunha barreiras e impedimentos, para fazer valer o ritual sagrado do teatro. Por ela fazia desde o texto clássico de difícil apelo popular até a comédia mais leve onde podia se divertir divertindo o público.

Certa feita fui levado ao seu apartamento na manhã seguinte a estréia de Coriolano, de Shakespeare, direção de Celso Nunes. Para meu espanto, na época, Paulo Autran residia na Avenida Nove de Julho, em um daqueles prédios antigos, documentos do tempo em que o centro de São Paulo espelhava o refinamento da cidade rica e globalizada, mas que na década de setenta estava em processo de degradação, sendo a avenida um fumarento e barulhento corredor de ônibus. Ao entrar no edifício e em seguida no apartamento, configurou-se outra atmosfera. A sala decorada com móveis e objetos antigos exibia o mais belo jarro de rosas, flores recebidas por Madame Morineau, atriz que fazia a mãe de Coriolano e que se hospedava na casa do seu companheiro de elenco. O amigo que me acompanhava e que também fazia parte do elenco apresentou-me, e ele, delicadamente, disse que me conhecia das reuniões da casa de Miriam Muniz e do palco. Eu só tinha feito três espetáculos até aquele momento em São Paulo.

Estive na platéia para ver Paulo Autran muitas vezes. Emocionei-me e aplaudi sua intensa criação de Willy Loman em A Morte de Um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller. Impressionei-me com sua atuação em Equus, de Peter Shaffer, onde brilhava juntamente com o jovem ator Ewerton de Castro. Apreciei as ricas modulações vocais do ator em Traições, de Harold Pinter. Em todas essas peças, ao todo fez 90, o ator soube dominar a palavra, construiu seus personagens com inflexões precisas e por elas presentificou-os em cena, de forma a revelar sua interioridade, seus conflitos, sua graça.

Como grande intérprete, Autran soube brincar com o teatro, com o sagrado contido nele, sem desrespeitá-lo. Vivia para ele como se vive para um amante. Sua entrega total aos afazeres do palco tornava-o exemplar para os que partilhavam a cena fora e dentro dela. O respeito que tinha pelos profissionais de teatro, de camareiras a contra-regras e encenadores, fez dele um companheiro de ofício dos mais queridos na classe teatral.

O repertório que fez ao longo da carreira é assombroso, ainda que o número de autores nacionais seja desproporcional. Suas escolhas foram sempre guiadas por uma intuição oportuna de quem sabe o que pode e deve fazer no momento certo, se mantendo fiel a uma determinada estética. Granjeou com isso um público de admiradores fiéis. Mesmo quando se arriscou a empreitadas que não deram certo, manteve sempre a integridade de uma grande artista.
Ao cair o pano no ato final de sua vida, Paulo Autran, como todo verdadeiro artista, torna-se um encantado. Transfere-se para outra esfera, permanecendo na memória de quem o viu inteiro no teatro, no cinema e não na televisão, veículo que o aproximou da massa, mas não sugou-lhe a grandeza de intérprete. Em minhas retinas permanecem o Édipo-Autran vestido numa túnica branca e vermelha desenhada pelo superlativo cenógrafo e figurinista Flávio Império. Tal imagem permanece viva e se mistura a outras que ele deixou. Cabe a nós mantê-las vivas, retendo-as na memória e com isso tentar reter a efemeridade do ato teatral.

domingo, 7 de outubro de 2007

Registro 120: Lucidez

Nem tudo se perdeu: ainda há o cidadão comum

Jurandir Freire Costa*
Dois filmes brasileiros, O Ano em que meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger, e Tropa de Elite, de José Padilha, candidataram-se a representar o Brasil na competição pelo Oscar de melhor filme estrangeiro. O primeiro foi escolhido, dividindo as opiniões divulgadas pela mídia. Deixo a quem compete o trabalho de dizer qual deles dispõe das qualidades técnicas e artísticas com mais chances de premiação. De minha perspectiva, importante é discutir a imagem da cultura brasileira apresentada pelos dois.
Desse aspecto, julgo que ambos sejam extremamente bem-sucedidos. No filme de Cao Hamburger, o Brasil dos anos 70 é visto pelo olhar de um garoto, cujos pais são obrigados a fugir da repressão policial no período da ditadura militar. A criança deveria ser deixada com o avô, que, nesse entretempo, morre. Sozinho e sem ter a quem recorrer, o menino é cuidado pela comunidade judaica, à qual o avô pertencia. No final, a mãe retorna. O filme dá a entender que tanto ela quanto o marido haviam sido torturados e o último havia morrido. O menino é exilado com a mãe e, ao se despedir carinhosamente dos que o ajudaram - em especial do velho vizinho do avô, figura central no enredo -, pensa em off que "ser exilado é ter um pai que se atrasa tanto, tanto, que nunca chega".
Tropa de Elite, ao contrário, mostra o Brasil de hoje. Precisamente, o Rio de Janeiro de 1997, por ocasião da visita do papa João Paulo II. O pano de fundo é totalmente diverso: favelas, tráfico de drogas, corrupção policial e, por fim, as entranhas do Bope, a tropa policial de elite que dá título ao filme. Se o inferno tivesse alguma feição, com certeza seria algo semelhante ao que o diretor nos faz ver. Nos guetos marginais das favelas, miséria socioeconômica e miséria moral dão-se as mãos na corrida desenfreada de delinqüentes e policiais para provar quem consegue ser mais violento. Tortura, sanguinolência, delação, falta de escrúpulos, tudo fede à mais estúpida desumanidade. José Padilha não poupa talento e recursos dramatúrgicos para deixar-nos cara a cara com o que de mais macabro produzimos em matéria de desrespeito à vida e à dignidade da pessoa. Instituições falidas e indivíduos desencantados debatem-se como moscas tentando escapar da maligna teia de destruição que se contrai e os tritura de forma inexorável. É o lado do Brasil cronicamente inviável, fluindo num jorro de imagens que comovem, dão repulsa e fazem pensar.
A pergunta é inevitável: o que nos aconteceu entre 1970 e 2007? Várias hipóteses podem ser levantadas. A que mais facilmente vem à tona é de ordem político-econômica. Perdemos, afirmam alguns, as aspirações da geração 1968. Nosso destino histórico foi entregue à sede de lucros materiais e o resultado veio a galope: individualismo à outrance, consumismo, cinismo, evasão pelo entretenimento e adoração drogada do próprio corpo. A tese é discutível em alguns pontos, mas, certamente, há algo de verdade na explicação. A decadência da política - numericamente controlada por parlamentares que agem como mafiosos -, o endeusamento irracional da economia e a presença intrusiva da moral do espetáculo na vida cotidiana contribuíram, em muito, para o aparente aumento da insensibilidade em face do bem comum ou das carências do próximo.
José Padilha, entretanto, vai adiante. Quaisquer que tenham sido as causas da mudança, mostra ele, o efeito cultural foi além do imaginável. A desagregação da hierarquia dos valores éticos lesou o cerne da pessoa moral, ou seja, a capacidade que devemos ter de decidir entre o certo e o errado e dar sentido à própria vida. Em O Ano em que meus Pais Saíram de Férias, os rivais políticos sabiam por que matavam e morriam. Os defensores da ditadura achavam que torturar e assassinar dissidentes significava proteger o Brasil do perigo comunista; os partidários da democracia ou do socialismo, por seu turno, queriam restaurar o Estado de Direito democrático ou realizar a revolução. Na bela metáfora da ida para o exílio, posta na boca do garoto, isto fica patente. A esperança de um mundo melhor confundia-se com a expectativa do reencontro com o pai. O reencontro, embora indefinidamente adiado, já era presentemente vivido. Dizer que o exílio era a condição de quem esperava por um pai que nunca chegava era dizer que depois do exílio o pai e seus ideais poderiam vir a ser reabilitados.
Em Tropa de Elite, essa moral comum às utopias messiânicas dá lugar à mais desoladora desistência. Policiais corruptos ou justiceiros, marginais e estudantes usuários de drogas ilegais não sabem o que buscar, exceto sobreviver hoje e amanhã. Agem como sonâmbulos presos num pesadelo. Tudo que importa é abolir o tráfico ou manter o tráfico. Nenhum dos personagens parece sentir-se exilado, pois o deserto ético transformou-se no último horizonte de suas existências. No que dizem, palavras como violência e paz, justiça e injustiça, autoridade e obediência, soam vazias e apenas fazem eco a sentimentos de vingança, ressentimento, culpa ou autopunição. Criaturas supérfluas em um mundo supérfluo.
É aqui que o corte entre os dois filmes salta aos olhos. Visto com mais atenção, Tropa de Elite poderia ser grafado no plural, sem perda de conteúdo. Na verdade, as supostas elites retratadas no filme são duas: a policial e a universitária. O detalhe nada tem de irrelevante. Nele se repete um dos mais lastimáveis fenômenos da cultura brasileira, qual seja, a recalcitrante incapacidade de nossa autodeclarada elite de agir, de fato, como uma legítima elite. Elite - faça-se justiça à tradição lingüística - é o conjunto dos melhores. E os melhores, no credo democrático-humanitário, são os que mais contribuem para fortalecer os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. Ora, a pretensa elite nacional jamais se conduziu segundo esses princípios, donde a relação promíscua que sempre manteve com o que a polícia pode ter de mais abusivo e imoral.
Inicialmente, o retrógado senhoriato rural, candidato bastardo à elite, usou a polícia para confinar a realidade dos guetos pobres nas letras de samba e desfiles de carnaval. Foi a época de ouro das "anedotas, champanhotas" e do famigerado "sorry, periferia". Na atualidade, a sandice cultural mudou de tom, mas fundamentalmente continuou a mesma. A polícia foi, de novo, usada para deixar que os mesmos guetos se convertessem em entrepostos de drogas ilegais. Só que a criatura fugiu ao controle do criador. Os piores do andar de baixo - como reza o preconceito - se deram conta, rapidamente, de que podiam extorquir e explorar quanto quisessem os piores do andar de cima. Daí para a emancipação da tutela policial o passo foi curto. Em duas ou três décadas, os guetos marginais passaram de quitanda de drogas a centros de treinamento intensivo em sordidez moral para policiais. A leviandade político-social continuaria impune, não fosse um fato novo: o montante de dinheiro circulante com o comércio de drogas permitiu que a nata da delinqüência se armasse até os dentes para defender a prosperidade de seus negócios. Conclusão: a sociedade brasileira, uma vez mais, tem sua agenda de problemas comandada pela inconseqüência de uns poucos. O mesmo tipo de grupúsculo social, que outrora insistiu em negar a indecência humana das favelas, voltou a recorrer à truculência repressiva. Desta feita, para conter os excessos da aberração que pôs no mundo e acabou nos tornando reféns de bandidos e policiais corruptos.
Boa parte do desconforto provocado por Tropa de Elite vem do fato de percebermos que o odioso ciclo do crime não tem saída, posto que se alimenta da própria deterioração. Combater o comércio de drogas e armas com Bopes é querer extirpar a violência com mais violência, isto é, com mais da mesma coisa. Faz sentido discutir com seriedade se a legalização das drogas ilegais seria um antídoto possível para a situação; insensato é persistirmos vendo o problema pelas lentes dos habitantes desse submundo. Nesta guerra entre aspas, o inimigo não são os infelizes do lado de lá ou do lado de cá; o inimigo é a consciência degradada dos que consideram que, para o populacho, favela está de bom tamanho. Ou eliminamos essa mentalidade torpe de nossa vida cultural ou nos condenamos a suportar mais e mais carnificina.
Um dos maiores méritos de Tropa de Elite é deixar claro que a banda podre da polícia nada mais é do que o espelho da banda podre de elites que usurparam o direito a portar um nome ao qual jamais fizeram jus. Policiais corruptos e brutalizados, marginais guetificados e usuários irresponsáveis de drogas ilegais não nasceram da cabeça de Zeus. Eles são o refugo de uma ordem sociocultural que manteve o gozo dos direitos democráticos reservado a uma minoria civicamente analfabeta, moralmente míope e culturalmente descomprometida com a construção de uma nação brasileira digna deste nome.
Entretanto, se a "elite" perdeu a cabeça e alma, isso não quer dizer que tudo esteja perdido. Em uma espécie de contraponto à crua denúncia feita por José Padilha, Cao Hamburger assinala o contraste existente entre o Brasil dos restos humanos e o Brasil do cidadão comum. Este último cidadão, em 1970 como em 2007, apesar da pouca visibilidade social, não sucumbiu à moral da descrença. Sua vida, na superfície, é prosaica, mas, no fundo, é o que mantém este país de pé. Trata-se do indivíduo ordinário, que não é santo ou herói, mas, simplesmente, alguém capaz de agir com correção e honradez, se a urgência da questão o exigir. Sem rompante ou bravata, ele cultiva as virtudes cívicas elementares, como apreço pelo trabalho, pela honestidade e pela decência. Embora movido pelo egoísmo narcisista, pela tentação do oportunismo ou pela sedução do sucesso midiático, como qualquer um de nós, também sabe ser compassivo e solidário se assim for necessário. São esses brasileiros que no filme de Hamburger protegem o pequeno personagem, mesmo pondo em risco o próprio bem-estar. São eles a verdadeira tropa de elite dos ideais democráticos de homens como frei Caneca e Joaquim Nabuco; é apostando neles que traremos de volta os órfãos ainda exilados do sonho Brasil.
Para os desesperados, isso é idiotice sentimentalóide de quem não vê que "este país não presta"; para os cínicos, a súmula da mediocridade piedosa. Penso de modo diferente. Penso que esses cotidianos exercícios de respeito pelo outro e de crença no próprio poder de mudar são a quintessência da riqueza material, moral, intelectual e espiritual de um povo. Por meio deles, quem sabe, chegará o ano em que daremos férias às elites e às tropas que nos envergonham e nos privam de viver num país à altura da maioria de nós. Dois filmes a serem vistos e revistos; dois grandes cineastas, eles sim, exemplos da elite que queremos ter.
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* Jurandir Freire Costa, psicanalista, é professor do Instituto de Medicina Social da UERJ e autor, entre outros livros, de A Inocência e o Vício (Relume-Dumara, 2002) e O Vestígio e a Aura (Garamond, 2004)