sábado, 7 de dezembro de 2013

Registro 447: Mais um texto sobre Fauzi Arap

FAUZI ERA UM ARTISTA PRECISO E TEMPERAMENTAL


Mário Bortolotto


São José do Rio Preto. 1991. Ele havia acabado de assistir ao nosso espetáculo. Era "Inimigos de Classe" do Nigel Williams, uma peça punk sobre um grupo de garotos que expulsam o professor da sala de aula.
Fauzi Arap me encontrou no saguão e disse que um dia ia querer trabalhar comigo.

Ele não precisava se apresentar. Eu sabia quem ele era. Balbuciei timidamente que era só ele chamar. Ele sorriu. E cinco anos depois ele realmente me chamou.

Vim a fazer "Frida Kahlo" sob sua direção, mas ele tinha planos maiores.

Fauzi queria mesmo era que eu interpretasse o Arthur de "Santidade", texto inédito do Zé Vicente que ele deveria ter feito como ator na época que foi censurado.

Ele me escolheu para interpretar o personagem que o impediram de fazer. E, para um ator, ser escolhido pelo Fauzi era mais que um prêmio, era uma espécie de dádiva.

Eu devo a ele o pouco que sei sobre a arte de dirigir atores. Ele era preciso e exato.

Vê-lo dirigindo e entrando no palco e fazendo a cena (ele era um ator formidável que desistiu por não gostar de ficar em evidência como a profissão exige), para que você entendesse como devia ser feita, é algo que eu teria que viver mais cinco vidas para pensar em ter de novo algo parecido.

Ele ficava possuído quando tentava explicar algo que queria para a cena e não estava conseguindo que o entendessem, se impacientava, saía irritado e ameaçava não voltar mais.

A gente sabia que devia sentar e esperar. Meia hora depois ele voltava e nos chamava pra tomar um café e era extremamente delicado com todos.

Era sempre assim. Era o seu amor incondicional pela sua arte e pelos afortunados que elegia.

FURACÃO
Quem o via extremamente gentil no trato diário não conseguia conceber o furacão que ele era.

Era um artista meticuloso e perfeccionista, amoroso e parceiro, o que não o eximia de ser explosivo e temperamental quando sentia que era necessário.

Depois de dirigir a cena, ele costumava me dizer: "Tá ótimo, Mário, mas agora suja um pouquinho a marca pra não parecer que é marca".

Nunca haverá outro diretor como o Fauzi.

Quando ele nos propôs um workshop no Festival de Teatro de São José do Rio Preto, ocasião em que nos conheceu, Ademar Guerra (outro diretor genial e lendário) saiu falando alto enquanto se despedia do nosso grupo: "Vocês não sabem o que estão ganhando".

Com o meu amigo Fauzi, eu ganhei muito mais do que merecia.

Mário Bortolotto é ator, dramaturgo e diretor. Seu texto foi publicado na edição de 7 de dezembro,do jornal Folha de S. paulo.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Registro 446: FAUZI ARAP



Aos 75 anos falece em São Paulo 
o dramaturgo e encenador Fauzi Arap


Os deuses do teatro estão indóceis, levando os nossos grandes artistas. Mas os que têm memória guardarão para sempre seus trabalhos na cena. É o que acontecerá com Fauzi Arap. 

Fauzi Arap fará muita falta, não somente como ator que foi, mas como encenador e autor, funções que exercia com grandeza estética e humana. Tive o prazer e a felicidade de conviver com Fauzi Arap e com seu companheiro de vários trabalhos, Flávio Império. Que bela dupla. Vão se encontrar no infinito para fazer teatro.

O dramaturgo nos deixa um legado. Suas peças são profundamente humanas. "Pano de Boca" é a dramatização de uma crise do teatro, crise dos que fizeram teatro entre os anos 60 e 70. Um belo texto sobre o teatro e sua gente. 

Seu livro "Mare Nostrum" é de profunda sinceridade e sabedoria. 

Arap viveu longe dos holofotes e os que viram o ator em cena confirmam: ele era de uma intensidade monstruosa. Sensível, este homem formado pela Escola Politécnica enveredou pelo teatro e aí encontrou seu destino. 

Os que tiveram a felicidade de ver o show "Rosa dos Ventos", o deslumbrante momento da cantora Maria Bethânia sentiram a potência estética do encenador que nos deixa. Estou profundamente triste. Fauzi Arap guiou muitos atores pelos caminhos da vida no teatro e fez deles artistas iluminados em cena, a exemplo da atriz Célia Helena em "Pano de Boca".

Meu aplauso e uma lágrima para meu querido Fauzi Arap.

sábado, 30 de novembro de 2013

Registro 445: Olhar sobre um espetáculo


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE
LONGA JORNADA NOITE ADENTRO

Para senhor Epifânio
In memoriam 

                   O texto e a encenação
           A encenação de Longa Jornada Noite Adentro encontra-se em cartaz no Teatro Martim Gonçalves, Escola de Teatro, até 15 de dezembro. O texto é do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill (1888 – 1935) e a tradução de Helena Pessoa. A direção é do ator-diretor e professor Harildo Déda, uma Produção da Companhia de Teatro da UFBA.
           O público soteropolitano tem a oportunidade de apreciar um texto que, por sua envergadura e importância capital para o teatro, não é levado à cena com a regularidade que merece. A Companhia de Teatro da UFBA, com todas as dificuldades que enfrenta, preenche uma lacuna. Estamos diante de uma encenação que cumpre seus objetivos, pois dá conta da importância e complexidade do texto.
            A peça conta sobre a família Tyrone. O’Neill mergulha no passado de sua família no momento em que vive a crise desencadeada por situações trágicas que envolvem todos os membros,  sobretudo a mãe Mary Tyrone, e Edmund, o filho mais novo. Revolvendo o passado de sua família, sem reduzir o texto somente a uma autobiografia, o autor mostra-nos o dilaceramento dos personagens, todos eles enlaçados pelo amor. Mas este afeto não consegue aplacar o sofrimento que marca a vida familiar. Confinados em uma casa isolada, atravessam o dia e a noite perscrutando a si e principalmente ao outro, de forma a expor seus sonhos e suas frustrações. Diante de seus dramas, não conseguem perdoar-se uns aos outros, embora o amor entrelace estes seres, tornando o conflito ainda maior.
           Através das amargas críticas, o passado emerge de maneira crua. No entanto, paira no ar alguma coisa que se quer esconder. Movidos por uma autointerdição, os personagens usam das meias palavras para não revelar o que de fato fragiliza a todos: a tuberculose de Edmund e o vício morfinômano da mãe. Acrescente-se a este quadro a avareza paterna e a embriaguez de Jamie Tyrone, o filho mais velho: o problema de um afeta ao outro, numa teia de situações melodramáticas que talvez fossem apressadamente consideradas hoje em dia como piegas ou "teatro de segunda", mas que em nada afetam a grandeza do texto. Um travo melancólico perpassa cada cena do longo texto finalizado por Eugene O’Neill, em 1941.
           Ao concluir sua obra, o autor decidiu que ela seria encenada vinte e cinco anos após sua morte, visto que um dos personagens ainda vivia. Ainda assim, o texto não pode ser lido ao pé da letra como uma autobiografia. Melhor seria vê-lo como uma bioficção. O que transborda das páginas e do palco é criação. A imaginação do autor entra em ação para dar vida aos acontecimentos da peça, mesclando o seu mundo particular com dados da realidade. Isso é fruto de sua capacidade criadora, inventiva, que torna as particularidades de Longa Jornada Noite Adentro amplas, universais. Estas qualidades fazem com que o texto continue atual, visto sua atemporalidade.
           Na peça, o dia avança ensolarado para declinar na neblina de uma noite escura, iluminada pela luz de um farol que surge em diversos momentos da ação. Paradoxalmente, é nas sombras da noite que o interdito é revelado de maneira clara. Nem mesmo o efeito da morfina que anestesia Mary Tyrone impede que ela complete o círculo e retorne como um ouroboros, ao início de tudo. Aí se dá o eterno retorno. O passado resurge em sua potência e a personagem revela o momento em que, deixando uma pretendida vida de religiosa, se apaixona pelo famoso ator James Tyrone, marco inicial desta família que vem a ser solitária e debate-se entre a acusação e o afeto.  
           O texto em quatro longos atos é reduzido para dois, de maneira sábia e oportuna por Harildo Déda. Diante da aceleração do tempo presente, levar à cena Longa Jornada Noite a Dentro  sem os cortes necessários, afastaria o espectador desacostumado a apreciar eventos deste porte.
           Sabedor do realismo do texto, o encenador não se prende a uma fórmula, quebrando algumas regras da estética convencional: não está em cena o realismo histórico. O que se vê no palco é uma encenação apoiada no texto, sem se escravizar a ele. Marcando com rigor e dinamismo, Déda faz a sua leitura de Longa Jornada Noite a Dentro sem cair na facilidade amenizadora do drama que se desenrola passo a passo. Considerando seus momentos de alta e de baixa intensidade, o encenador colore a cena apoiando-se numa partitura em que as pausas e os silêncios completam o dialogar constante dos personagens. Precisam falar, precisam ser ouvidas. Precisam dizer de suas angústias.
           A encenação revela uma segura direção de atores. A cena é desenhada com marcas objetivas e de grande efeito, fazendo os atores se deslocarem em função das dinâmicas da ação. São visíveis, mas não óbvias, a construção a partir da análise ativa, um princípio stanislavskiano e uma escolha adequada para o universo da peça. Este caminho não congela as interpretações em maneirismos; ao contrário, aprofunda a dimensão física de cada ator na relação com o espaço e com os objetos. Gestos, pausas, deslocamentos ampliam a intersubjetividade do drama, mantendo os espectadores como observadores atentos. Ao mesmo tempo, Déda impõem estratégias que rompem com o fechamento do palco, trazendo os personagens para mais perto da plateia.
           Contando com cenário e luz de Eduardo Tudella, lembrando ambientes do pintor Edward Hooper, o encenador orquestra com bastante segurança os elementos constitutivos do seu espetáculo. Preocupa-se com a tensão e a investigação interior, muito mais do que com a história, pois o foco de Eugene O’Neill está no confessionalismo: isso faz com que o passado seja escavado intensamente. Ainda que mostre o domínio criativo e técnico, a cenografia poderia valer-se de alguns recursos que expressassem a decadência do lar. A decadência não está somente nas relações da família Tyrone, mas na própria casa. Contudo, isso não diminui a qualidade do que se vê em cena: somente que estes elementos faltantes proporcionariam ao espectador mais um dado a ser lido como um signo relevante.
           É notável o controle das emoções, mantidas esticadas ao longo do tempo ficcional, sem extrapolar os limites dramáticos. O que poderia tornar-se melodramático ou mesmo piegas é evitado ao longo dos acontecimentos.
           Cercado por uma equipe técnica de eficiência comprovada pelos detalhes da produção, um único senão salta aos olhos: o vestido rosa de Mary Tyron no segundo ato, assim como a gravata brilhante da empregada Cathleen. Nos demais figurinos, Claudete Eloy acerta com bastante sobriedade, pois compreende o universo onde transitam os personagens, bem como a época em que se passa a ação. O corte das roupas femininas e masculinas, bem como a paleta de cores, harmoniza-se com o sóbrio e criativo cenário.
           A luz recorta o cenário, marcando os climas exigidos pela densidade dramática, colaborando para a atmosfera das cenas. O efeito final, com a luz do farol entrando pelas janelas, adéqua-se à situação na qual, sob o efeito da morfina, a mãe surge na sala como um fantasma, calando marido e filhos. Densa e bela, a cena, intensificada pelo Adágio para Cordas, de Samuel Barber, sustenta o entrecho e dá suporte para o monologar de Mary Tyron. Com parcimônia, a sonoplastia contribui também para a profundidade emocional. A sirene de neblina que se ouve em alguns momentos corta os silêncios, aumentando a solidão dos que estão na casa. Solidão essa vivida pelo grupo familiar disfuncional. Este grupo se alterna em instantes de acusação e provocação, atitudes que escondem o que há de mais humano, o afeto. Sentimento que nutre pai, mãe e filhos, unindo-os, ainda que se avizinhe a derrocada final.
           Harildo Déda orquestra o canto fúnebre de Eugene O’Neill com grande segurança,  acerta nas suas escolhas.
           Retornando ao texto, focalizando o aspecto de biografia dramatizada, vemos que Edmund, o poeta persona do autor, se erguerá pela arte, como foi de fato a vida de Eugene O’Neill. O autor revive teatralmente o verão de 1912 como dramaturgo sabedor do seu ofício, e não se deixa prender somente pelos dados da realidade. O que se vê em cena é fruto de um processo de criação; dolorido é certo, mas profundamente humano, e é por isso que ecoa em nós, ainda que vivamos noutro tempo. No entanto, se olharmos atentamente para o drama de cada um dos personagens, veremos que eles não estão assim tão longe das nossas vidas, pois nos debatemos, de uma maneira ou de outra, com os mesmo problemas enfrentados por James, Mary Jamie e Edmund: o entorpecimento pelas drogas, a sovinice, os projetos não realizados e as demais doenças do corpo-espírito. No entanto, assim como os personagens de Longa Jornada Noite Adentro, ainda somos capazes de amar, pois somos humanos, contrariando o discurso da pós-humanidade defendido por certas correntes do pensamento pós-moderno.

           O elenco
           Uma encenação de qualidade, na qual os signos se organizam esteticamente, não deve prescindir de um elenco com capacidade para sustentar os personagens, ainda mais em um texto de envergadura como Longa Jornada Noite Adentro. Déda, não só diretor, mas ator de longa experiência e conhecida competência como professor de atores, soube escolher cinco intérpretes que se responsabilizam por dar vida às criações de Eugene O’Neill. E, seguindo suas orientações, o fazem com competência e unidade.
           Joana Schnitman (Mary Tyrone), Antonio Fábio (James Tyrone), Wanderley Meira (Jamie Tyrone), Vinicius Martins (Edmund Tyrone) e Patrícia Oliveira (a criada Cathleen) conseguem exteriorizar a densidade psicológica, mantendo as interpretações na justa medida esperada para personagens bem estruturados pelo autor, ainda que ele não tenha se debruçado com mais atenção no papel da criada.  O texto traza poética realista que necessita de uma construção espelhada na vida, mas o que vemos na cena e nas interpretações não é uma fatia da vida, mas uma elaboração por métodos que remetem aos princípios stanislavskianos.
           Compreendendo os personagens passo a passo, desde a análise até a vivência, os intérpretes revelam a maturidade e as variadas qualidades adquiridas com as experiências individuais ao longo de suas carreiras. Por eles, o encenador fala e se oculta, de modo que os exercícios formais estão sempre a serviço dos que estão em cena durante as duas horas em que decorre o espetáculo. Cabe aos atores, muito bem conduzidos pr Harildo Déda, modular o tempo ficcional à medida que este decorre da manhã à meia-noite, momento em que os demônios internos estão expostos. E é neste tempo que cada intérprete faz aparecer a sua construção, como se desenrolasse um novelo gradativamente, prendendo pela emoção a atenção do espectador. É notável o equilíbrio interpretativo, o que faz da encenação o lugar próprio do ator.
           Joana Schnitman constrói Mary Tyrone com sensibilidade aguçada: modula as emoções exigidas pelo papel. A atriz demonstra suas qualidades de intérprete numa estatura que somente as grandes atrizes são capazes de trazer para a cena. Sutilmente, a intérprete revela-nos os problemas que afligem a personagem, sua fixação em algo que se descobre na medida em que a ação se desenrola. Sua atuação é magistral, culminando com o monólogo final.
           Sobre a interpretação de Antonio Fábio, no papel de James Tyrone, o que se pode dizer é que o ator cresce superando os limites físicos, já que imaginamos o personagem como uma figura imponente, ídolo das plateias.  James é um ator que abre mão dos personagens grandiosos para encantar com sua beleza as mocinhas que iam ao teatro quando ele era o astro. Ator expressivo, Antonio Fábio caracteriza o personagem, mostrando sua arrogância e, principalmente, sua avareza. Em alguns momentos, o ator deixa entrever a humanidade escondida por trás da carapaça conservadora, mas volta a escondê-la, principalmente nas cenas com Jamie, personagem que Wanderley Meira faz de maneira vibrante. Nas cenas com Joana Schnitman, Antonio Fábio alterna afeto, mostrando-se inseguro, mas defendendo-se sempre das acusações desferidas por ela. A contracena entre eles é bom teatro.
           Como disse anteriormente, Wanderley Meira mostra seu personagem de maneira intensa, mostrando-se um ator de extensão interpretativa. Na perigosa cena da bebedeira, o ator transita de maneira precisa. Fugindo do clichê, assenta sua atuação variando os estados psicológicos que passam pela culpa, pela zombaria, resvalando pela inveja, para em seguida mostrar sua fragilidade diante do drama materno e da situação do irmão caçula. Representando um ator cuja carreira, imposta pelo pai, não deu certo, o Jamie de Meira  é um farrapo humano sem perspectiva. Wanderley Meira se encarrega de fazer com que estes estados anímicos tornem-se visíveis ao longo da ação.
           Vinicius Martins, o mais jovem entre os quatro intérpretes, encarrega-se de levar para a cena Edmund, o alterego de Eugene O´Neill. Aluno do Bacharelado em Direção Teatral da Escola de Teatro, Martins vem experimentando o palco como ator e vem crescendo a cada peça que faz. Quem o viu em Fala Baixo Senão Eu Grito, sob a direção do aluno-ator Georgenes Isaac, pode ter esta medida. O personagem criado por Vinícius Martins deixa transparecer o papel que ele exerce na peça, ou seja, Edmundo, ao mesmo tempo em que é participante, é espectador desse mesmo drama.
          Coube a Patrícia Oliveira o papel da criada Cathleen, um personagem que O’Neill não construiu como os outros. A atriz recém formada soube conduzir de maneira muito especial a figura da criada, injetando-lhe doses de ingenuidade e, ao mesmo tempo, sagacidade. Sua participação na ação proporciona o alívio cômico em meio à densa atmosfera que perpassa a peça.  Sua conduta na cena com Mary Tyrone tem um ar brejeiro e ao mesmo tempo safado, quando se serve da bebida do patrão. Vejo que Patrícia Oliveira valoriza e tira partido de um personagem posto na peça pelo autor para alinhavar o enredo. Sai-se bem a jovem atriz.

              Equipe Técnica
           A equipe mostra sua competência. Com seu empenho, o acontecimento chega ao espectador da maneira como foi concebido. Por ser um espetáculo da Companhia de Teatro da UFBA, é de estranhar a pouca participação de alunos nestas funções, mas vale registrar a presença de Pedro Souza na operação de som, João Saraiva e João Guizande como assistentes de produção. A ausência de outros alunos faz lembrar um fato muito importante quando da constituição da Escola de Teatro como espaço artístico-pedagógico. Nos espetáculos de A Barca, grupo criado por Martim Gonçalves, os alunos revezavam-se no palco, ora em papéis principais, ora em papéis secundários. Quando não estavam em cena, desempenhavam outras funções necessárias para o fazer teatral: eram assistentes de cenografia, de figurino, faziam a contra regragem,  recepcionavam o público. Este procedimento era parte da pedagogia do teatro. Suprimindo-o desequilibra-se uma processo de aprendizagem. 
          Finalizando, cabe ressaltar o cuidado com o material de divulgação de Longa Jornada Noite a Dentro, tanto os registros do processo em vídeo e fotos, quanto os cartazes, programa e marcadores de livros, todos muito bem concebidos e realizados.


Raimundo Matos de Leão

domingo, 17 de novembro de 2013

Registro 444: Quero ficar no teu corpo como TATUAGEM





     Tatuagem, o filme e não a canção, chega às telas e nos pega de corpo e alma. Ah, como se existisse tal divisão. Divisão que cientificismo criou e o filme desconstrói sabiamente ao contar de maneira visceral a história de um grupo de teatro no Brasil de 1978, ainda no período do (des)governo militar. Mas o foco central é a relação afetiva-sexual entre Clécio (Irandhir Santos), o cabeça do grupo, e Fininha (Jesuíta Barbosa), um jovem recruta, que fugindo à rigidez do quartel se envolve com Clécio, integrando-se à trupe e desbundando junto com ela.



     Impregnado de elementos da contracultura, aquela localizada entre os anos 60 e 70, o filme expõe de maneira contundente, sem discursos engajados, a necessidade do indivíduo viver a sua liberdade sendo parte de um grupo, ou melhor, da comunidade que se aglutina em um velho casarão do Recife e mostra em seu teatro, happenings, desabusadamente escrachados, uma indireta e gostosa referência aos Diz Croquettes, trupe teatral que energizou o palco com sensualidade e deboche. 
       Assim, os artistas enfrentam a rigidez imposta pelos valores do establishment operante naquele tempo de tantas contradições, mas de afirmação de uma nova ordem, enaltecedora da desrepressão, da reinvenção da família, da afirmação da sexualidade hétero ou homo e de tudo o que foi até então abafado pelos sistemas políticos, econômicos e sociais.
        Hilton Lacerda vai a fundo sem perder a delicadeza, contando com precisão este universo impregnado de hipismo, sonho e desejo de mudança.  Habilidosamente, o diretor cativa ao mergulhar por inteiro na relação de amizade entre os membros do grupo e principalmente no triângulo amoroso quando da introdução de Fininha. Ao entrar na história do grupo, o recruta interfere na relação de Clécio com Paulette, situação que se resolve numa bela cena entre os dois. A sinceridade com que se tratam permite que o envolvimento entre os amantes e as tensões causadas no que se sente rejeitado, não desestabilizem o convívio, nem os ensaios e  as apresentações no Chão de Estrelas, local de festa, misto de teatro e boate. Nem mesmo as presenças da ex-mulher de Clécio e do filho do casal, entrando na adolescência, impedem que ele ame Fininha e exerça o seu papel junto ao grupo de artistas underground.
   Tatuagem deixa marcas emocionais em seus personagens e literalmente em Fininha. Não contarei a cena para não estragar a bela e cativante surpresa. Além disso, o filme afirma-se como um lugar em que os “jovens mais violentos, que rapidamente chegam à conclusão de que o antídoto para a ‘racionalidade louca’ de nossa sociedade está em se entregar de corpo e alma a loucas paixões”, como afirma Roszak (1972, p.75) em Para uma contracultura
   A violência é ação questionadora dos sistemas que impedem o individuo assumir-se enquanto sujeito, pois as normas determinam padrões de comportamento que cindem os homens/mulheres tornando-os neuróticos, autoritários deprimidos, destituídos de imaginação. Impossibilitados de reconciliar-se com o todo – razão, beleza, sensualidade – os sujeitos se afastam de Orfeu e Narciso, de Dionísio e Apolo. 
    Ao terminar seu filme ao som de Dalva de Oliveira cantando Bandeira branca, Hilton Lacerda aponta para aquilo que Baudelaire (segundo Marcuse, 1981, p. 150) pensou: “Tudo seria ordem e beleza, luxo, calma e voluptuosidade.” Com esta afirmativa, eu não quero dizer que o filme se encerra resolvendo tudo pelo final feliz, mas a beleza e a comicidade instalada em cada cena nos dizem que a vida com suas tensões e distensões é possível de ser vivida, ainda que as condições sejam de amargar.
    No filme, a desarmonia não encontra eco no interior da comunidade. A crise, se há, é decorrente do regime militar, sua rigidez e sua censura, perseguidoras dos artistas, proibindo sua ação e em seguida invadindo o teatrinho com um contingente de viaturas e soldados desproporcional ao que é a vida e a arte do grupo. Este princípio, vida e arte, posto a girar no casarão desestrutura a rigidez do mundo, pois o que se quer é viver em harmonia com a natureza, abrindo espaços para a imaginação, a fantasia, a utopia.
        Tatuagem exalta Eros. Exalta também o talento de Irandhir Santos, Jesuíta Barbosa (Prêmio de Melhor Ator em Gramado) e Rodrigo Garcia e conta também com a participação de Sérgio Restiffe.  
     Amor e sexo, afeto e cumplicidade marcam o encontro entre Clécio e Fininha. E tudo é exercido sem culpa. Tudo entre eles se dá como na  cena em que dançam ao som de Dolores Duran. Veja a cena em http://www.youtube.com/watch?v=0vCfFaMzTlw

MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
ROSZAK, Thedore. Para uma contracultura. Petrópolis, RJ: Vozes, 1972.

sábado, 19 de outubro de 2013

Registro 441: Lembrando Vinicius de Moraes



Ao poeta

Tinha como propósito escrever sobre a decisão da Comissão de Direitos Humanos de proibir a presença de homossexuais em templos evangélicos e católicos. Mais uma insanidade comandada pela tropa nazifundamentalista encastelada na Comissão, por uma conluio entre as forças progressistas (?) e direita mais xiita deste país sem jeito. Um descuido, e a qualquer hora vão obrigar o uso do triângulo rosa na lapela. Assim fica mais fácil apedrejar os indesejados. Mas não vou dar trela a essa gente estúpida que anda com vontade de poder. Vade retro!

Quero falar mesmo é do poeta que faria 100 anos no dia de hoje, o poetinha Vinicius de Moraes, de quem guardo uma lembrança inestimável. O que relato aqui faz parte das minhas memórias, mas contá-lo ele se torna história.

Corria o ano de 1974. Por volta de novembro, fui convidado pelo diretor baiano Álvaro Guimarães para compor o elenco de As Feras, texto de Vinicius de Moraes a ser produzido por sua mulher na época, a atriz Gesse Gessy. Eu acabara de fazer Titus Andronicus, a tragédia de Shakespeare encenada na Escola de Teatro da UFBA sob a direção de José Possi Neto e com planos de residir em São Paulo para fazer carreira como ator. Um sonho acalentado desde criança, quando vi os primeiro filmes no Cine Teatro Cliper em Ipirá, propriedade de meu pai.   

Ainda que o papel em As Feras fosse pequeno, eu desejava trabalhar sob a orientação de Álvaro Guimarães e em companhia de um elenco de atores baianos experientes, Jurandir Ferreira, Mário Gadelha, Waldemar Nobre, Fernando Lona, Armindo Bião, entre outros. O elenco feminino contava com Gesse Gessy como protagonista e a competentíssima Sônia dos Humildes. Completavam o elenco, a jovem Hebe Alves, Carlos Nascimento e eu.

A ação de As Feras se passa no Rio de Janeiro num canteiro em construção reunindo operários nordestinos divididos em dois grupos rivais. Por um flashback, o público toma conhecimento dos motivos do desentendimento entre os grupos, causa de desfecho trágico.

 Começamos os ensaios, com estreia prevista para meados de janeiro estendendo-se por algumas semanas de fevereiro, num espaço cenográfico criado por Calazans Neto, em uma garagem situada à Rua dos Ingleses. Fizemos as primeiras leituras sem que houvesse o ator para o personagem Isaías Grande, o protagonista.  O elenco sugeriu nomes, o diretor buscava outros e duas semanas depois, Vinicius de Moraes foi ao ensaio. Ouviu a leitura e ao final, a conversa sobre a falta do ator retornou. Depois de escutar uns e outros, Vinicius surpreende todos nós dizendo que havia um ator para o papel. Fez-se silêncio expectante e ele apontou para mim afirmando que eu faria Isaías Grande.

Se para mim o impacto foi transtornante, para os meus colegas foi como se uma bomba estourasse na sala. Ninguém disse nada, até que eu aleguei não ter a idade para o personagem, um homem de 50 anos, responsável por um clã; que eu era um ator recém-saído da Escola. Usei de outros argumentos, mas não houve jeito.  Aceitei a escolha do autor. Terminado o ensaio, tentei convencer Álvaro Guimarães de esquecer tal empreitada. Em vão. Fui para casa. Durante o trajeto, mesmo tempo temeroso, eu me sentia envaidecido. Mas a pergunta fatal rondava. E se eu não desse conta do papel? Conciliar o sono foi uma barra. Ao acordar disse para mim mesmo que agarraria a oportunidade com unhas e dentes. Claide Morgan me foi de grande valia como preparador corporal.

Na estreia, ao findar o espetáculo, o poeta veio até mim e me abraçou afetivamente elogiando a minha atuação. Soube então que eu dera conta do recado. Ao escrever sobre As Feras, Sostrátes Gentil não poupou elogios ao meu trabalho e aproveitou para comentar o meu desempenho em Titus. Logo depois, passando férias em Salvador, o diretor paulista Emílio Di Biasi comentou meu desempenho para Possi e este revelou que eu estava de viagem marcada para São Paulo com o intuito de fazer teatro. Pronto, ganhei meu passaporte. No final de fevereiro desembarquei em Sampa e tive o maior apoio de Emílio. Ele veio a ser um dos grandes amigos paulistanos.

Sou devedor do poeta. A ele, minha homenagem e gratidão no dia de seu aniversário. Cito Vinicius “Mesmo que as pessoas mudem e suas vidas se reorganizem, os amigos devem ser amigos para sempre, mesmo que não tenham nada em comum, somente compartilhar as mesmas recordações, pois boas lembranças, são marcantes, e o que é marcante nunca se esquece! Uma grande amizade mesmo com o passar do tempo é cultivada assim!’’

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Registro 440: O que corre por aí.

*A Folha de S. Paulo lançou a coleção Grandes Pintores Brasileiros  uma iniciativa das mais elogiáveis, não fosse a falta de nome que gravitam ou gravitaram no eixo Rio-São Paulo. Não sabemos quais os critérios para a escolha dos que estão sendo publicados. É inegável o valor de todos eles, mas vale uma pergunta: por  que deixar fora uma artista da grandeza de Guignard, João Câmara, Siron Franco? Deixaram de fora o trabalho expressivo de Emanoel Araújo e também de Caribé, da mesma forma que ignoraram Renina Katz e Maria Bonomi. São tantos os que não foram contemplados... Fico intrigado e pergunto-me sempre sobre as escolhas. Por que não contemplar um grande artista de cada Estado. Esse poderia ser um critério. Questionável é certo, mas não seria tão tendencioso. De qualquer maneira, venho adquirindo os exemplares que estão em algumas bancas de jornais e revistas. Aqui na Bahia chegam sempre atrasados fazendo com que percamos tempo para ir comprá-los sem que encontremos o exemplar que sai aos domingos. Aí, temos que encomendar ao jornaleiro e esperar a segunda ou até mesmo o meio da semana.

*Sei que a minha opinião a respeito da polêmica desencadeada pelos artistas que desejam a proibição de biografia não autorizadas não será levada em conta, visto que não sou uma personalidade pública ou do show business. Mas sou defensor incondicional da liberdade de expressão. Os argumentos até então apresentados não me convenceram a mudar de opinião. O que salta de tudo isso é somente a força da grana. Todos sabem que a Constituição possibilita o exercício da livre expressão da mesma forma que fornece os mecanismos para que se proíba biografias mentirosas ou que degradem a figura do biografado. Mas uma coisa é patente, todos os reclamantes são pessoas que agem publicamente e as revistas estão cheias de reportagens e notas sobre as vidas de todos eles. Alguns gostam e precisam desta divulgação, pois é uma forma de mantê-los em evidência. Vivemos num país de pouca memória e se não podemos mais contar a vida de alguém o seu legado ficará na sombra. 

*Soube que o Balé Stagium foi pressionado a pagar direitos autorais para a herdeira de Tarsila do Amaral para poder usar um reprodução do famoso quadro O Abapuru eme seu espetáculo sobre a Semana de Arte Moderna. Num gesto grandioso, os dirigentes do Stagium Márika Gidali e Décio Otero pagaram o exigido pela "sensível e culta" herdeira e retiraram a reprodução do quadro que, se não me engano, nem pertence mais ao Brasil, pois vendido foi para um colecionador portenho.

Se a coisa anda assim, é bem capaz dos autores começarem a exigir pagamento para as citações em teses, dissertações e artigos. Poupe-me! êta país complicado. 

Eu, que vivi a minha adolescência e juventude debaixo da opressora e castradora Censura, fico estarrecido ao ver os meus ídolos, que não são mais os mesmos, defenderem tal bandeira.

*Outra coisa que me deixa de cabelo em pé, uma metáfora, pois não os tenho mais, é saber que a Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados aprovou uma resolução proibindo a entrada de gays, bichas mesmo, em templos. Que templos? Os católicos, os neopentecostais, os budistas, os espíritas, os terreiros. Outro absurdo!!! E ninguém faz nada? É preciso reagir a estes desmandos de quem se acha dono da verdade. A história está cheia de gente que se arvorou em paladino da verdade e desencadeou horrores. Mas a gente esquece...

Um fato me intriga, pois ainda não tenho dados suficientes para fazer uma avaliação ditada pela emoção. Por tal motivo, gostaria de saber qual a motivação dos rapazes e moças e rapazes mascarados depredando tudo o que encontram pela frente. O que querem? Qual a proposta para ocupar a destruição e o vazio que deixam ao longo das ruas? Lutar contra os sistema? Mas eles todos, ou quase todos, estão inseridos no sistema. Quantos não desfrutam dos benefícios produzidos pelo sistema? Não acho que vivemos em um país justo, mas não creio que o caminho seja a barbárie. Em junho, quando os protesto começaram, acreditei no poder construtivo das manifestações. Mas agora a minha perplexidade aumenta a cada dia. 

Sinto-me impotente, mas não alienado.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Registro 439: Anúncios de espetáculos: decifra-me ou devoro-te

Conferindo no jornal A Tarde (27.09.2013) a programação do Festival Internacional de Artes Cênicas – FIAC, deparo-me com alguns textos no roteiro que divulga os espetáculos em cartaz em Salvador. Texto incompreensíveis para a maioria dos espectadores Dou-me ao trabalho de transcrevê-los, tal qual estão no jornal, para que leitor possa avaliar o quanto há de nonsense em cada um deles. Vejamos:

Autopoiese
“Exposição de fotografias e uma performance nas quais a composição das imagens e ações relacionam a organicidade do corpo e a materialidade dos cabelos, realizando uma metáfora à natureza circular da autoprodução como condição inerente do ser vivo”.

Vamos a outro

Big Bang Boom
“ O espetáculo é uma topologia instável, constituída  por uma sucessão de paisagens sobrepostas, portáteis e descartáveis, que nos faz refletir sobre limites e enquadramentos de espaço e tempo, do dentro e fora, do embaixo e acima, do vazio e cheio...”

Parecem-me textos de uma tese hermética, que não esclarece nada sobre o que se vai ver em cena. Não entro no mérito dos trabalhos, até porque não os vi. Mas colocando-me no lugar de um espectador mediano, não conseguiria decidir-me sobre ver os espetáculos. Os conteúdos dos textos, presumo, dirigem-se a um público especializado, fervorosos diante de enigmas. Tirando um ou outro texto dos anúncios escritos de maneira clara, situando o leitor para fazer a suas escolhas, a maioria não diz absolutamente nada sobre o espetáculo. O leitor precisa decifrar estranhos ao seu universo, pois tais códigos são mais afeitos a certas dissertações e teses, que fazem desparecer o objeto, mergulhado-os numa maré de conceitos. Tais recursos pirotécnicos tornam impenetráveis os discursos e tudo fica distante da vida.


Não defendo aqui a aniquilação de conceitos, longe de mim tal postura. Mas diante dos anúncios dos espetáculos, fico sem saber o qual a pretensão dos artistas. 

domingo, 22 de setembro de 2013

Registro 436: Comunicado

Aos leitores de Cenadiária, um comunicado. Como os acesso ao blog estão reduzidos, resolvi aderir ao facebook, mas não deixarei de postar novos registros. 

A entrada no facebook tem um propósito, divulgar meus livros de literatura infanto-juvenil, uma nomeação que não gosto, mas é a mais usual. Prefiro literatura para crianças e jovens. 

Seguindo a máxima do Chacrinha - será que ainda lembram do Velho Guerreiro - "quem não se comunica se estrumbica", resolvi  aderir a esta ferramenta cujo acesso é rápido e muito procurado, embora tenhamos que aguentar muita bobagem. Mas não adianta lamentar. Democraticamente defendo a liberdade de expressão, embora curta somente o que me interessa

No facebook, a página intitula-se Livros do Raimundo. Mas tenho outra Quadros do Raimundo. Convido a quem se interessar dá uma olhada nas duas.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Registro 435: Teatro para crianças e adultos


O espetáculo em cartaz no Teatro Martim Gonçalves, O menino detrás das nuvens, texto de Carlos Augusto Nazareth constitui-se como trabalho de conclusão de curso de Tacira Coelho, aluna do Bacharelado em Direção Teatral da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia.

Num primeiro momento, o que salta aos nossos olhos de apreciador é a delicadeza com que a diretora trata o material que tem em mãos. Sutil em seus achados, Tacira organiza a cena pondo em evidência o elenco e os músicos, de forma que a ação dramática se desenrole sem atropelos, embora deixe algumas lacunas em alguns trechos da dramaturgia de Carlos Augusto Nazareth. 

Se houve cortes no texto, eles prejudicaram a história que se conta, mas isso não impede que a dramaturgia cênica se faça de maneira criativa, com bons resultados. Não há gritaria, nem exagero na interpretação do elenco nem apelos fáceis à plateia. Cada um dos intérpretes compreende o universo onde está inserido e foge dos estereótipos que ainda rondam o teatro para criança e juventude. Assim, a história de Zezinho, um garoto que deseja expandir-se para além dos morros que circundam o lugar em que vive, chega até a plateia de forma muito direta, facilitando a compreensão dos tema. 

Movido pelo desejo da aventura e da descoberta, o menino assume com determinação o que almeja. O jogo entre o real e o imaginário se faz de maneira muito objetiva sem deixar a magia de lado. Os elementos mágicos são produzidos pelo querer da criança e por ele atinge as nuvens e a si mesmo. Para tanto, ele conta com ajuda da Cigana e do Palhaço, personagens que instauram o circo em sua vida.

A diretora sabe construir a magia cênica e conta com um cenário muito bem concebido por Zuarte Jr., autor também dos belíssimos figurinos, muito bem trabalhados e bem confeccionados. É notável a riqueza dos materiais, a gama de cores bem como os traços que remetem às vestimentas de alguns folguedos da tradição popular. 

Outro ponto significativo para que a encenação aconteça em sua dinâmica é a música, adequada ao espetáculo, sensível e muito bem cantada. Percebe-se a qualidade musical desde o cortejo que abre o espetáculo e vem ao encontro dos espectadores na sala de espera, conduzindo-os para o interior do teatro. Um belo momento que se soma a outros no decorrer da ação. Bem iluminado por Fernanda Paquelet, o espetáculo exibe um desenho da luz criador de efeitos e atmosferas adequadas ao que se conta no palco. Coube a Renata Cardoso a maquiagem, ressaltando-se a inventividade com que caracteriza o grupo musical. Maquiagem que remete a elementos da comédia dell'arte, como a meia máscara de alguns dos seus personagens.

Cabe ao elenco (Fábio Araújo, Gabys Lima, Lion Guimarães, Nayara Homem e Pedro Souza), bem como aos músicos que participam ativamente do espetáculo, conduzir o espectador para o interior da ação, pois a comunicação que se dá entre o palco e a platéia é mediada não somente pela boas interpretações, mas pela delicadeza com que tratam os personagens e cantam as canções, orientados pela direção musical de Amanda Mattos e Josah Costa, tendo Isaias Pinho na percussão.

Não fossem alguns desajustes no desenrolar da ação, que acredito não decorram do texto, mas das opções de Tacira Coelho, o espetáculo alcançaria uma justa medida. A morte do Tio é anunciada num clima adequado, mas para criança fica um buraco, pois não se explica os motivos da morte. O personagem do Narrador, talvez pelos cortes, se faz desnecessário. O espetáculo termina repentinamente, faltando algo para fazer a transição até o final.

É certo que a avaliação dessa medida passa pelo filtro da subjetividade, mas a apreciação é pautada também pela objetividade que procura ler o que está em cena para realçar os aspectos positivos da montagem, bem como as suas lacunas.

O espetáculo  O menino detrás das nuvens, realiza-se muito mais pelos aspectos positivos da dramaturgia cênica, com pequenos tropeços no tratamento do material dramatúrgico, fator que não diminui o meu interesse por ele.

Desejo que a diretora estreante faça uma bela carreira.

terça-feira, 30 de julho de 2013

Registro 434: Ideias para melhorar o mundo.


O texto que se segue, de autoria de Frei Betto, não é parte de um lobby. Se tem uma coisa que me irrita profundamente é a prática de lobby, seja ele qual for. Portanto, não posso ser acusado de proselitismo, até porque não acredito que ser homossexual deriva de uma campanha. Resolvi copiar e colar o texto para contribuir com a melhora do mundo, da convivência entre opostos. 

Aproveito a oportunidade para divulgar um livro recém lançado, A Civilização do Espetáculo do peruano Mário Vargas Llosa. De uma maneira lúcida e sem firulas,  o escritor trata de temas atuais. Vale a pena dar uma olhada. Alguns irão considerá-lo conservador. Llosa não esconde sua filiação liberal. De certa maneira, o livro é demolidor, mas ao destruir pontos de vistas, mitos, preconceitos, não deixa a terra arrasada , pois apresenta ideias que podem melhorar o mundo.



"CURA GAY”
MODESTA CONTRIBUIÇÃO

Frei Betto

"Se uma pessoa é gay, procura Deus e tem boa vontade, quem sou eu, por caridade, para julgá-la? O catecismo da Igreja Católica explica isso muito bem. Diz que eles não devem ser discriminados, mas integrados à sociedade. O problema não é ter essa tendência. Não! Devemos ser como irmãos. O problema é fazer lobby."

São palavras do papa Francisco ao deixar o Brasil, no voo entre Rio e Roma. A mensagem é esperançosa, mas, ao contrário do que o papa diz, o problema no Brasil é o lobby antigay, liderado pelo deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara.

Deputados que consideram a homossexualidade uma doença propõem a "cura gay". Querem alterar a resolução do Conselho Federal de Psicologia que impede seus profissionais de tratar homossexuais como doentes. O que é um gay? Como diz a palavra inglesa, é uma pessoa alegre. Se os homossexuais são felizes, por que submetê-los à terapia?

Terapia é própria para obsessivos, como é o caso de quem odeia constatar que homossexual é uma pessoa feliz. Isto sim é doença: a homofobia, aliás, como toda fobia. E há inúmeras: desde a eleuterofobia, o medo da liberdade que, com certeza, caracteriza os fundamentalistas, até a malaxofobia, o medo de amar sobretudo quem de nós difere.

Sugiro aos deputados cortar o mal pela raiz: proibir a promíscua narrativa de "Branca de Neve e os Sete Anões", a relação pedófila entre o lobo mau e a Chapeuzinho Vermelho e, na Bíblia, o relato da íntima ligação entre Jônatas e Davi, aquele que "ele amava como a sua própria alma". (1 Livro de Samuel, 18).

Segundo censo do IBGE, há no Brasil 60 mil casais assumidamente gays. São pelo menos 120 mil pessoas que, em princípio, deveriam ser "submetidas a tratamento". Considerando que a Parada de Orgulho LGBT reúne, em São Paulo, cerca de 4 milhões de pessoas, haveria que construir uma clínica do tamanho de 50 Maracanãs para abrigar toda essa gente.

O processo terapêutico certamente teria início com uma sessão de exorcismo, já que, no fundo, a obsessão fundamentalista considera a homossexualidade muito mais coisa do demônio do que doença.

Outra sugestão é comprar um armário para cada gay e obrigá-lo a ficar lá dentro. Dizem os moralistas que qualquer um tem direito de ser gay, não deve é sair do armário.

Imagino que, terminado o processo de "cura gay", haverá uma grande Parada de Ex-Gays subindo a rampa da Câmara em Brasília para agradecer aos deputados que, iluminados, aprovaram a medida.

Ainda que todos os gays sejam confinados na clínica dos deputados, de uma coisa não poderão se queixar: será divertido contar ali com shows de Daniela Mercury e sir Elton Hercules John.

Saiba Feliciano que Alan Chambers, ex-presidente da associação Exodus International, destinada a curar gays, declarou em junho deste ano que também é gay, pediu perdão pelos sofrimentos causados a homossexuais e fechou a entidade.

Publicado originalmente no jornal  Folha de S. Paulo, na edição de 30 de julho de 2013.

sábado, 20 de julho de 2013

Registro 433: Aplausos para Armindo Bião


O tempo vai agindo e em seus movimentos nos traz conhecidos, amigos e gente que nos atravanca o caminho. Armindo Bião está na categoria dos amigos. Na década de 70, quando desbundavamos pelas ruas, praias - Porto da Barra - e palcos de Salvador, Bião se mostrou um jovem antenado com seu tempo e de lá para cá construiu uma agenda para si. Uma agenda rica, pois atuou não apenas como ator, mas como jornalista, foi um dos criadores do jornal alternativo O Verbo Encantado, professor e gestor cultural. Defendeu animadamente seus projetos e a vida de muitos.

Passei muito anos sem manter contato com Armindo Bião, mas ele sabia por onde eu andava. Ao me encontrar, fazia-me recordar de momentos que não imaginava que ele soubesse. Ao me acolher com seu rigor, quando me submeti ao processo para a ingressar na Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, do qual foi fundador, Bião mostrou perspicácia ao me entrevistar. Sem facilitar em nada, abriu espaço para que eu expusesse o meu anteprojeto, bem como o meu desconforto por estar quase trinta anos longe da acadêmia, já que a minha vida profissional encaminhara-se para o palco.

Armindo Bião nos deixa para brilhar noutra esfera. 

domingo, 16 de junho de 2013

Registro 432: Uma lágrima para Tatiana Belinky




Tatiana Belinky
(1919-2013)

    Desde que cheguei à São Paulo fui me aproximando de Tatiana Belinky, mas não como amigo e sim como admirador. Esta aproximação se deu primeiro pelo fato de trabalhar em um colégio israelita-brasileiro, o Scholem, de boas memórias. Depois, por pertencer à classe teatral. Ao sair da Bahia para ser ator em São Paulo, logo me senti acolhido ao ingressar no elenco de A Perseguição, texto de Timochenko Webbi, sob a direção de Márcio Aurélio. Além disso, tornei-me amigo da minha querida Fanny Abramovich, escritora como Belinky. Estas circunstâncias foram aproximativas.
     Tatiana Belink, judia-russa, escritora, dramaturga, exerceu a crítica teatral destinando seu olhar para o teatro que se fazia para crianças e jovens em São Paulo. Por um bom tempo dirigiu uma coleção de textos de teatro, Cadernos da Juventude, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Logo, eu tomei conhecimento das adaptações que fizera dos livros de Monteiro Lobato para a televisão (Tupi), trabalho realizado com seu marido Julio Gouveia, no começo da década de 50. Não vi nenhum dos programas e nem sei se eles foram exibidos na Bahia. Não havia aparelhos de televisão na cidade onde residi e passei uma parte da minha infância, mas desde cedo fui leitor da obra para criança do paulista Monteiro Lobato. Um tempo de descoberta. Depois acompanhei a segunda versão para televisão do Sítio do Pica-pau Amarelo, a primeira e mais bonita e bem adaptada da Globo. Depois virou um mixórdio.
    Fui leitor dos livros de Tatiana Belinky e quando passei a escrever literatura para crianças e jovens, a escritora foi sempre uma iluminação para as minhas dúvida a respeito de temas e formas de abordá-los. Quando me tornei dramaturgo, as minha peças foram criticadas pela escritora, que aos 94 nos deixa. 
      Lembro-me bem do que ela escreveu sobre Brincadeiras e sobre Quem Conta Um Conto Aumenta Um Ponto, quando das estreias em Sampa. Sua opinião calou fundo e serviu para que eu corrigisse os desvios ou então para incentivá-los, já que ela era uma escritora muito livre e transgressora de muitas normas. Um incentivadora, está senhora vivaz, risonha e culta. Esta última qualidade era exibida sem a arrogância do saber, um traço que marca um certo tipo de intelectual que nos ronda, principalmente aqueles que transitam pela Academia.
        Tenho comigo o texto que escreveu sobre o meu primeiro livro Um Muro no Meio do Caminho. A crítica elogiosa apontava as qualidades do texto, o inusitado do tema. Mas ela puxou-me a orelha por eu ter denominado estrangeiros de "cucarachas". O puxão de orelhas foi sentido, tanto que na segunda edição do livro, tratei de suprimir o meu preconceito, pois o que parecia engraçado revelava uma visão desprezível. E olha que não sou politicamente correto o tempo todo. Tatiana estava correta.
      Anos mais tarde, participando de uma seminário sobre literatura destinada crianças e jovens e estando em crise em virtude de não conseguir publicar meus livros, ao queixar-me do desânimo, ela foi direta e objetiva. "Escreva! Continue escrevendo"
     Foi a salvação! Ainda que a salvação esteja tão difícil nos tempos de agora. 
               E como esquecer as traduções que Belinky fez do meu russo preferido Anton Tchekhov. Preferido entre tantos outros. Autora de mais de 200 títulos, escreveu Transplante de Menina - Da Rua dos Navios à Rua Jaguaribe, autobiográfico, Limeriques do Bípede Apaixonado, Coral dos Bichos, A Operação do Tio Onofre, O Grande Rabanete, Aparências Enganam, entre outros divertidos livros.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Registro 431 Um texto que dá o que pensar



PEC 37: um desserviço à nação brasileira

Filipe Leão *

As investigações de crimes contra a administração pública, lavagem de dinheiro e sonegação fiscal devem ser prerrogativas de órgãos e carreiras, em regime colaborativo. A exclusividade do inquérito policial para persecução penal desses casos, como prevê a PEC 37/2011, só fragiliza a punição de culpados, além de favorecer nulidades processuais nas investigações em curso.

Atualmente, inúmeras investigações estão em andamento no Brasil. De igual modo, outros sem número de inquéritos são abertos diariamente, ficando muitos sem conclusão ou até mesmo prescritos. Isso ocorre porque o dia-a-dia das delegacias (roubos, furtos, lesões corporais, homicídios e tráfico de drogas) já consome todo o aparato e efetivo policial.

Considerando as características sociais do país, a extensão territorial e das fronteiras, a população e o rol de crimes elencados no Código Penal, não é razoável acreditar que somente uma organização (de modo exclusivo) dará cabo de todas investigações – comuns ou especiais.

Por conta da especialização, crimes contra a administração pública, lavagem de dinheiro e sonegação, por exemplo, muitas vezes são detectados por órgãos e carreiras do Estado que lidam diretamente com esses assuntos.

Nesse sentido, órgãos como a Controladoria-Geral da União (CGU), a Receita Federal e o Banco Central, quando detectam indícios de crimes, em geral, produzem relatórios com elementos conclusivos de autoria e materialidade. Embora não sejam considerados “inquéritos policiais”, formalmente, esses documentos respaldam propositura de ações pelos Ministérios Públicos ou aprofundamento das investigações pelas polícias.

Considerando condutas criminosas cada vez mais sofisticadas, é retrocesso atribuir exclusividade nas investigações que respaldam as ações penais, pois o resultado em nada contribui para a sociedade. No limite, as demandas sobre casos de corrupção, lavagem de dinheiro e sonegação podem entrar na vala comum dos inquéritos, abrindo margens inaceitáveis para prescrições e favorecendo a impunidade.

No século XXI, precisamos fortalecer os instrumentos e a colaboração do aparelho de Estado, não o inverso. A burocracia deve reafirmar seu papel indutor do desenvolvimento e não atuar como apenas mais um instrumento de blindagem da corrupção política no país.

*Diretor do Sindicato Nacional dos Analistas e Técnicos de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União (Unacon Sindical) e da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e vice-presidente do Instituto de Fiscalização e Controle (IFC).

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Registro 430: MUST - Fala Baixo Senão Eu Grito



Idealizada e realizada pela Kalik Produções Artísticas, a 3a. Mostra Universitária de Teatro - MUST, acontece na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, contando com 13 espetáculos: Anti-Nelson Rodrigues - UESB, Quê Onde - UFG, Só Não Viu Quem Não Quis - UFRJ, Fala Baixo Senão Eu Grito - UFBA, Um Lugar Para Ficar em Pé - UFC, As Pererecas - Com o Se Tornar Uma Besta - UFMG, A Rampa - UFBA, Lumus - UFBA, Amnésis - UFBA, Propriedade Condenada - UFBA, Trançados de Memória de Uma Atriz-Brincante - UFBA,  Estilhaços e Algo Assim, PAP, O Rio, UNESP. A programação incluí a leitura dramática do texto de Diego Pinheiro, O Sol de Dezembro. Atividades formativas completam o quadro deste evento em sua terceira edição.

O valor do acontecimento é inegável, visto que seu objetivo principal é mostrar ao público interessado os espetáculos produzidos no âmbito das universidades brasileiras. 

É presente na programação a diversidade de temas e formas. Não foi possível ver os espetáculo na sua totalidade. De qualquer maneira, não posso deixar de registrar as minhas impressões sobre Fala Baixo Senão Eu Grito, espetáculo apresentado na Sala 5 da Escola de Teatro.

O primeiro aspecto que aponto sobre Fala Baixo Senão Eu Grito, primeiro texto da dramaturga paulista Leilah Assumpção, é a sua atualidade. Estreado em 1969, a dramaturgia permanece inteira, tanto na forma quanto no seu tema, as fantasias de Mariazinha Mendonça de Morais, uma funcionária pública solteira e infantilizada, mas poderia ser outra profissional qualquer. O que importa é a sua vida interior.

A personagem vive enclausurada em seu quarto de pensionato e confronta-se com um Homem que se diz ladrão. Este personagem surge não se sabe de onde. No encontro de mundos tão diversos, o da moça de classe média criada dentro dos valores tradicionais e do homem, um ser marginal, provoca momentos de intenso lirismo ao mesmo tempo que preenche a cena de manifesta dramaticidade quando o choque se concretiza. 

À medida que a situação se desenrola, percebe-se que, tanto Mariazinha quanto o invasor são seres solitários, vítimas de sua classe e da cidade que os engole. No entanto, o ladrão desencadeia um processo de desconstrução do mundo organizado da mulher, preocupada em trabalhar para pagar as prestações do apartamento A  dramaturga tira partido do jogo que se estabelece entre os dois. Das provocações do ladrão emergem o sufocado mundo da protagonista que se desestrutura ao limite da exaustão. Tentando fazer com que Mariazinha compreenda o vazio de sua existência, o Homem provoca-a de maneira assustadoramente invasiva, fazendo com que a personagem se dê conta da solidão em que vive e a partir da constatação de "não caber mais nas coisas" possa tomar as rédeas de sua vida de uma maneira libertadora. É o que se espera

Com seu texto, Leilah Assumpção insere-se no ciclo denominado de Nova Dramaturgia que sinaliza a estreia de jovens autores que passam a escrever para o palco no final da década de sessenta. Em seu texto, pode-se notar rompimentos com a estrutura tradicional da arquitetura do drama para dar conta da dramatização do eu uma questão de difícil solução em term os cênicos e mesmo dramático, mas não irrealizável como demonstra o texto objeto desta apreciação e também de outros que formam o quadro da dramaturgia moderna. 

Ainda que as regras de ação, tempo e lugar estejam presentes na estrutura do texto, percebe-se outros recursos utilizados pela autora para dar conta da interioridade da personagem. Interessante é o jogo imaginário que se faz presente no mundo real de Mariazinha. Ao ser instigada pela energia vital do Homem, proponente do jogo-do-faz-conta, a personagem presa às convenções de seu mundo, responde às fantasias, imprimindo um caráter onírico no desenrolar da ação. 

A encenação creditada ao aluno-diretor Georgenes Isaac oferece ao espectador momentos de intensa poesia, irresistíveis doses de comicidade alternando-se com a dramaticidade que toma conta da cena. Compreendendo muito bem a dramaturgia de Leilah Assumpção, o aluno-diretor prestes a concluir seu curso de Direção Teatral na Escola de Teatro, mostra habilidade na condução dos atores e na maneira como estrutura a relação entre eles. Dinamizando o diálogo, Issac imprime um ritmo que se acelera em função do jogo, da situação e do conflito. Cria marcações precisas para evidenciar este encontro inusitado. 

Sabemos que as condições para um espetáculo caracterizado como de pré-formatura não conta com os recursos necessários para o bom acabamento da encenação, ou seja cenografia, figurino, objetos de cena. Fala Baixo Senão Eu Grito padece desta limitação. Mas Georgenes Isaac e sua equipe consegue dar conta do mínimo para fazer com que os elementos que compõem o espaço - quarto de Mariazinha - resulte aceitável, visto que os elementos visuais estão inseridos no universo da encenação. Ainda que simples e sem muita invenção, servem aos propósitos da direção. A utilização de projeção é coerente com a sua concepção, deixando de ser um efeito plástico para tornar-se uma signo em meio a outros. Utilizando-se de uma  trilha sonora coerente e criadora da atmosfera - a cena do aparecimento do ladrão, por exemplo - por vezes extrapola no volume, encobrindo o diálogo. Outro elemento necessitando de melhor concepção e realização é a luz. Sanado tais problemas, o espetáculo pode fazer carreira em qualquer teatro de Salvador. Uma pena que a equipe não consiga contatar com a autora para negociar os direitos autorais para que possa se aventurar pela ribaltas além do muro da Escola.

Ponto alto do espetáculo são os dois atores. Patrícia Oliveira e Vinícius Martins dão conta do recado e mostram de maneira intensa  o desenho das personagens. Desenho feito com tintas fortes, mas que não deixa de mostrar as nuances exigidas pelos papéis que "vivem". As interpretações cativam os espectadores pela maneira, pois os atores expressam o texto de maneira precisa, todo ele encarnado nos corpos que se deslocam no espaço, cumprindo o desenho proposto pelo encenador de uma maneira orgânica. 

É visível o domínio dos recursos expressivos dos dois intérpretes. Domínio do tempo-ritmo, compreensão do sentido de cada frase, expressões faciais reveladoras de uma interpretação interiorizada que se exterioriza nos gestos, nos movimentos de um corpo que se manifesta inteiro no interior da ação dramática. Não lhes falta folego, nem técnica nem emoção e sobretudo, compreensão das personagens, da proposta da autora e principalmente do jovem diretor.

O entusiasmo com que a plateia acompanhou o espetáculo e os  aplausos calorosos no final é demonstração de sua eficaz capacidade de comunicação. Por conta das reações, pode-se afirmar que o texto  permanece com sua potência, não se perdendo na datação que pode lhe afetar. Por mais que o mundo feminino tenha se libertado de muitas amarras e que as mulheres tenham garantido conquistas, a situação de Mariazinha não nos escapa, ela é plauzível. Vista sob a ótica de Leilah Assumpção e de Georgenes Issac, a situação da personagem ainda é atual. 

domingo, 12 de maio de 2013

Registro 429: 13 de maio

A minha homenagem aos fizeram a Campanha da Abolição. Sem eles e sem Isabel, a prática da escravidão permaneceria como uma marca indelével. Ainda hoje, as formas de escravismo são visíveis, manifestando-se diariamente sob diversas formas, mas graças a brasileiros humanistas tornamo-nos mais dignos. A data, 13 de maio, não deve ser esquecida, apagada. Caso aconteça, estaremos traindo todos aqueles que lutaram para fazer as leis possibilitadoras da Lei Áurea. Querer diminuir tal acontecimento, reescrevendo a História doutra forma, é enganar-se e aos outros. 

É preciso lembrar.. Não esquecer. Uma mulher levada por muitos motivos, não importa quais, assinou um papel e garantiu a liberdade de muitos. Ainda que está liberdade tenha sido mal cumprida, ainda assim, eles, homens, mulheres e crianças deixaram de ser considerados animais para serem humanos.  

É certo que vivemos em um país preconceituoso, mas a escravidão hoje se traduz na péssima educação oferecida às crianças do ensino fundamental e aos jovens do ensino médio nas escolas públicas deste imenso território. Sem uma educação de qualidade como mudar as mentalidades?

Esta mulher, certo dia, num baile, ao ver um negro, político e intelectual importante do seu reinado, ter sido recusado por uma senhorita que convidara para valsar, a princesa ofereceu-lhe o braço e dançaram para espanto de muitos.

Não esquecer para lembrar os feitos de muitos. As atrocidades dos vencedores, o sofrimento dos vencidos, a determinação dos que lutaram por escrever uma outra página.

É certo que os libertos, não todos, ficaram desprotegidos. Aqueles que não tinham comprado a alforria e subido na escala social perambularam pelas estradas sem ter o que fazer. Eram milhares. Sem ter o que fazer, mas sabendo que podiam escolher seguiram os caminhos, marcando-os com suas vidas as nossas.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Registro 428: Mais um absurdo baiano

Pense num absurdo, na Bahia acontece. 

A frase de Otávio Mangabeira é conhecida ao extremo, não porque queiramos usá-la exaustivamente tornando-a lugar comum. Mas, a cada dia, na Bahia, nos deparamos com absurdos. No momento,  é o descabido projeto do vereador Marcell Moraes do Partido Verde. Ele propõe a proibição de sacrifícios de animais nos cultos religiosos, a saber candomblé e umbanda. 

Não sabe o dito vereador que os animais imolados além de ser oferenda, alimenta a comunidade, não só dos adeptos, mas dos convidados. Nas festas, costuma-se servir um prato aos que estão na casa de culto e esta comida alimenta muita gente. Por vezes gente carente.

Além do mais, numa sociedade que se alimenta basicamente de animais abatidos cotidianamente, o projeto torna-se um delírio de quem não tem o que fazer. 

Aliás, o Partido Verde deveria cuidar de outros projetos, por exemplo, arborizar a cidade, torná-la mais condizente com clima. Acredito que o vereador deve passar diariamente pela Avenida Sete, trecho da Vitória, e perceber que as árvores tornam o logradouro aprazível. Portanto, aí está uma boa ideia. 

Intrometer-se num ritual antigo e de grande força é não ter o que fazer. Ou então é querer aparecer, ter os cinco minutos de fama. Espero que os senhores vereadores não aprovem este projeto inoportuno, descabido e tonto. 

Chega de achar que animais tem direito. Não tem. Nós e que temos deveres para com eles. Mas levar ao extremo a proibição do sacrifício é uma ideia fora do lugar.

Diante de tantas atrocidades, ir de encontro a preceitos de uma religião me parece fobia. 

Gostaria de saber quais são os hábitos alimentares do vereador.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Registro 427: Aplausos e lágrimas para Cleyde Yáconis



CLEYDE YÁCONIS FOI MESTRA, NORTE E EXEMPLO


Marco Antônio Pâmio
Ator e diretor

"Foi para o céu a nossa Cleyde. Ela foi grande! Tristeza e uma saudade que não vai passar." Assim diz o e-mail que Naum Alves de Souza, diretor de "Longa Jornada de Um Dia Noite Adentro", acaba de me enviar.
Foi na montagem de 2002 dirigida por ele que a conheci e tive a honra de viver seu filho em cena. A caminho do Rio de Janeiro, para o primeiro dia de ensaios, o estômago me revirava, pois em pouco tempo estaria diante do "mito Cleyde Yáconis", da "irmã de Cacilda", da "grande dama do teatro nacional".
E deparei com uma das pessoas mais simples, íntegras e autênticas que já conheci na vida.
        Cleyde era de uma retidão e de uma coerência admiráveis.
Avessa ao glamour costumeiramente associado à profissão e à cultura de celebridade, Cleyde era obcecada única e exclusivamente por seu ofício. Orgulhosa de seu repertório, construído ao longo de décadas de trabalhos memoráveis, fazia questão de mantê-lo irretocável e ilibado.
A cada noite de apresentação, seu nervosismo antes de entrar em cena era comovente, tamanha a responsabilidade e a importância que dava ao ato de estar no palco.
A boca secava, os lábios tremiam e, muitas vezes, após uma expiração profunda e agoniada, desabafava: "Por que escolhi fazer isso da minha vida, meu Deus?".
Do alto de seus quase 80 anos na época, tinha a adrenalina de uma estreante. Compreendia a função do ofício do ator com lucidez, tenacidade, obstinação e verticalidade cada vez mais raras.
     Estudava dia e noite seu texto, preocupava-se com cada detalhe da personagem, não deixava um instante em cena sem ser preenchido com verdade e emoção genuínas, nem uma única sílaba sem ser cristalinamente compreendida pelo público.
Sua Mary Tyrone era tão genial que muitas vezes eu me pegava em cena assistindo a ela, admirando-a.
E, terminado o espetáculo, aquele "monstro sagrado" do nosso teatro saía dirigindo seu carro rodovia Anhanguera adentro, rumo a sua chácara em Jordanésia. Simples assim. Sem pompa, sem glamour, sem vaidade. Lá, finda a extenuante jornada física e emocional com o suor de seu rosto e a exposição de sua alma, reencontrava a natureza.
Naum tem razão: a saudade não vai passar. Cleyde foi mestra, foi norte, foi exemplo para quem pisa no palco.
Foi, e há de continuar sendo, referência indiscutível numa profissão cada vez mais banalizada pela sede de sucesso instantâneo e do consumo imediato.
Que ela esteja agora sendo recebida por todos os deuses, já ao lado de tantos que lhe foram tão queridos. E com a certeza plena de que nunca a esqueceremos.

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O texto de Pâmio é admirável por ser ele uma ator e diretor que não pertence à geração da atriz e grande dama do teatro brasileiro Cleyde Yáconis. A percepção que ele tem desta grande intérprete é notável e serve como exemplo para os atores e atrizes em início de carreira. Serve porque é uma lição de como aprender vendo uma atriz experiente lidar com seu ofício. Está experiência vivida ao longo da vida, desde que de costureira do Teatro Brasileiro de Comédia passou para o palco e mostrou suas qualidades de atriz. 

Vi Yáconis somente uma vez, sob a direção do meu amigo Emílio Di Biasi. Ela era um furação em cena, uma explosão de técnica e emoção o que fazia com que eu não desgrudasse os olhos de sua figura em cena. Os crítico registraram intensas interpretações de Cleyde Yáconis, entre elas a Geni de Toda Nudez Será Castigada e a dilacerante Medéia, entre outros trabalhos. 

Vivendo reclusa, atriz não se recusou estar no palco e na televisão e trabalhou até não poder mais. Assim são as grandes intérpretes. Vivem para o teatro e deixam marcas na cena. Estas marcas não serão esquecidas enquanto houver uma único espectador que tenha visto a atriz representar. 

PS: Vi Marco Antônio Pâmio estrear como Romeu sob a direção de Antunes Filho em Romeu e Julieta. Ele fazia par com Giulia Gam. Como era lindos e intensos na paixão.