domingo, 22 de julho de 2012

Registro 399: Enquanto escuto Erasmo Carlos e amigos...


     1- De uma maneira geral, e com raras exceções, os críticos cinematográficos resolveram detestar Na Estrada, o filme de Walter Salles Junior a partir de On The Road, a bíblia beat de Jack Kerouac. Penso que se deixaram influenciar por opiniões desencadeadas apressadamente em Cannes quando na estreia do filme no Festival.
     Boa parte dos críticos não respeitam a leitura que o cineasta brasileiro, um dos melhores, fez do livro, quase cinquenta anos depois da viagem que o autor empreendeu pelos Estados Unidos da América na companhia de amigos. Está viagem emblemática se dá em dois níveis: o exterior, marcado pelos encontros e desencontros, a paisagem e os embates que aí se dão. O outro nível, mais profundo, porque mexe com a interioridade do Eu, este que absorve o que vê, ouve e escuta e se transforma.
     A viagem é sempre transformadora, mesmo que indique uma parada no final da estrada, ou o retorno ao mesmo, ao conhecido. A literatura de ontem e de hoje está repleta de viagens. Mesmo assim, o sujeito que parte e retorna não é o mesmo que partiu, ainda que guarde em si o que de fato é, mergulhando então na nostalgia de ter deixando algo por fazer.
        Octavio Ianni, no belo texto A viagem como metáfora, nos diz que a história dos povos está marcada pela viagem. Para ele, a humanidade trabalha "a viagem, seja como modo de descobrir o 'outro', seja como modo de descobri o 'eu'. É como se a viagem, o viajante  e a sua narrativa revelassem todo o tempo o que se sabe e o que não se sabe, o conhecido e o desconhecido, o próximo e o remoto,  o real e o virtual.
    A experiência da viagem realizada por Sal Paradise e Dean Moriarty acompanhados por Marylou mexe com as nossas certezas e figura a ultrapassagem de fronteiras, ao mesmo tempo dissolvendo-as ou recriando-as, Ianni novamente. 
      Ao ver na tela, a viagem movida sexo, drogas e jazz, na perspectiva do cineasta, um ser sempre fascinado pelos deslocamentos advindos da estrada, o filme traz as lembranças de um tempo em que eu, já passado da adolescência, buscava formar em mim um sujeito de espírito livre.
        Mesmo condicionado por uma formação católica repressiva eu encontrava acolhida nas páginas do livro que agora apreciei na tela. Os desregramentos vividos pelos personagens calavam fundo e mesmo sem ultrapassar a medida, eu sabia que era possível botar o pé na estrada, mesmo que a estrada fosse imaginária. E foi por ela que caminhei sempre. Vez em quando, ela se tornava real e eu caía nela desrespeitando os condicionamentos ditados pelo social.  
        Se não há tanta loucura como acusam faltar no filme, ainda há inquietação e muita. E há também beleza! Diante de uma sociedade massificada pelo consumo e pela necessidade, o livro e o filme são um tapa na cara de quem se acha muito louco nos dias de hoje. A moçada de hoje, a que se diz pra frente e libertária,  já encontrou estradas e picadas abertas por jovens que nos anos quarenta pularam fora dos condicionamentos e escreveram sua história com liberdade invejável. E pensar que eu nem era nascido! Mas fui bafejado por este fluxo libertário que vem de longe...
      Se há um erro em Na Estrada, ele está na escolha de Sam Riley, o ator que interpreta Sal Paradise, que na verdade é Kerouac. Que ator mais sem graça. Fora Riley, os outros atores e atrizes são ótimos e intensos como são os personagens que representam. 
        Veja o filme sem preconceitos.

2 - A companhia italiana de Fondazione Pontendera de Teatro esteve em Salvador com dois espetáculo: Abito e Lisboa. Como não conhecia o trabalho de Roberto Bacci, animador e encenador da Fondazione, corri apressado para ver Abito que dirigiu com Anna Stigsgaard. 
      Que decepção!
     Inspirado no Livro do Desassossego do poeta Fernando Pessoa na pessoa de Bernardo Soares, seu semi-heterônimo, o espetáculo promete muito nos vinte minutos iniciais e depois se repete numa chatisse infindável. Um fórmula pós-dramática que se repete e nada acrescenta. Não emociona. Nem esteticamente. Seus efeitos impressionam aos desavisados. Fui embora antes de terminar. No dia seguinte, conversando com colegas de trabalho, descubro que não perdi nada, pois nada mudou nem surpreendeu.
       Em meio ao texto retirado do Livro do Desassossego, inseriram poesias de Pessoa, de seus Outros (Caeiro, Reis, Campos) que lhe habitam. Uma delas, a que fala do menino Jesus e de um poeta, despertou em mim a vontade de ouvir o CD Rosa dos Ventos, aquele mágico show de Maria Bethânia dirigido por Fauzi Arap. E foi o que fiz ao chegar em casa. A cantora diz o texto como ninguém.
    O registro sobre a passagem do Pontendera por Salvador sai superatrasado. Eu andava travado pela preguiça...

3 - Um amigo de infância e juventude, muito querido, a quem não vejo faz muitos e muitos anos, comunicou-me o nascimento do seu segundo neto. Desejo-lhes o melhor dos mundos! Eu que só tenho sobrinhos, queridos, não serei avô. Serei somente tio-avô, mas não é a mesma coisa. Não lamento. 

4 -  Leia e sinta o prazer que senti. Mas leia com calma. 

RUBÁYÁT

OMAR KHAYYÁM
TRADUÇÃO LUIZ ANTÔNIO De FIGUEIREDO

VII
Enche a Taça de Vinho, e tua roupa severa
atira ao fogo acolhedor da Primavera!
Chega de contrição! O Pássaro do Tempo
abriu as asas rumo ao Fim que nos espera!

XII
Um Livro de Poesia sob a Rama Florida,
o Vinho e o Pão, ao lado a Mulher preferida,
cantando no deserto uma Canção singela,
fariam deste areal a Terra Prometida!

XXI
Amada, enche-me a Taça, vou deixar de lado
os medos de Amanhã e a mágoa do Passado!
Amanhã! Poderei considerar-me o mesmo,
com meus sete mil anos, sem estar cansado?

XXIV
Vamos gozar, Amor, cada breve Momento!
Logo seremos Pó, levado pelo Vento!
Pó jazendo no Pó, e sob o Pó da tumba,
sem Vinho, sem Cantor, sem Música ou lamento!

XXXV
Meu lábio degustou a sagrada Bebida
num Caneco de Argila, para entender a Vida.
Argila aconselhou: - "Contente-se em Beber,
não haverá mais Vinho após a Despedida!"

XLI
Sem mais interrogar o humano e o divino,
às mãos do Vento errante entrega teu Destino,
e teus dedos enlaça nas tranças do esbelto
jovem que oferta o Vinho - e viva o desatino!

XLII
Se o Vinho que bebes e os beijos de tua boca
têm Princípio e têm Fim, e tudo que nos toca,
morre, lembra que és Hoje o mesmo ser de Outrora,
e o mesmo de Amanhã nesta Existência louca!

SOBRE O TEXTO O matemático e astrônomo persa Umar Ibn Ibráhim Al Khayyámi, ou apenas Omar Khayyám (1048-1131), escreveu o "Rubáyát" -101 quadras (rubái) "de rara limpidez de forma e profundidade de pensamento", nas palavras de Manuel Bandeira-, que ganha edição integral no Brasil. Marcada por descrença e desencanto, sua filosofia preconiza o prazer que se pode extrair de uma taça de vinho, da companhia da mulher amada, de uma flor. Traduzido do persa para o inglês por Edward FitzGerald (1809-83), trabalho que deu origem à presente tradução, o "Rubáyát" influenciou o budismo e autores modernos como Jorge Luis Borges e Fernando Pessoa. O livro sai em agosto pela Editora Unesp (164 págs., R$ 35). Publicado em Ilustríssima, Folha de S. Paulo, 22 de julho de 2012)