segunda-feira, 25 de junho de 2007

Registro 113: O que pensa Grotowski.

Quando confrontamos a tradição geral da Grande Reforma do teatro, de Stanislavski a Dullin e de Meyerhold a Artaud, verificamos que não partimos da estaca zero e que nos movimentamos numa atmosfera especial e definida. Se nossa pesquisa revela e confirma o lampejo da intuição de outrem, curvamo-nos com humildade. Verificamos que o teatro tem certas leis objetivas e que sua realização só é possível quando respeitadas essas leis, ou – como disse Thomas Mann – através de uma espécie de “obediência superior”, à qual conferimos “atenção condigna”. Ocupo uma posição especial de liderança no Teatro- Laboratório polonês. Não sou simplesmente o diretor, ou o produtor, ou o “instrutor espiritual”. Em primeiro lugar, minha relação com o trabalho não é certamente unilateral ou didática. Se minhas sugestões se refletem nas posições espaciais do nosso arquiteto Gurawski, é de se compreender que minha visão foi formada ao longo de anos de colaboração com ele.

Existe algo de incomparavelmente íntimo e produtivo no trabalho com um ator que confia em mim. Ele deve ser atencioso, seguro e livre, pois nosso trabalho consiste em explorar ao máximo suas possibilidades. Seu desenvolvimento é atingido pela observação, pela perplexidade e pelo desejo de ajudar; o meu desenvolvimento comum transforma-se em revelação. Não se trata de instruir um aluno, mas de se abrir completamente para outra pessoa, na qual é possível o fenômeno de “nascimento duplo e partilhado”. O ator renasce – não somente como ator mas como homem – e, com ele, renasço eu. É uma maneira estranha de se dizer, mas o que se verifica, realmente, é a total aceitação de um ser humano por outro.
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GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Civilização Brasileira, 1987, p. 22.

sábado, 23 de junho de 2007

Registro 112; A fogueira está queimando em homenagem a São João



São João, Murillo


São João, Leonardo da Vinci
São João, Xangô menino
Caetano Veloso / Gilberto Gil

Ai, Xangô, Xangô menino da fogueira de São João Quero ser sempre o menino, Xangô, da fogueira de São João
Céu de estrela sem destino de beleza sem razão Tome conta do destino, Xangô, da beleza e da razão
Viva São João, viva o milho verde Viva São João, viva o brilho verde Viva São João das matas de Oxossi Viva São João
Olha pro céu, meu amor, veja como ele está lindo Noite tão fria de junho, Xangô, canto tanto canto lindo
Fogo, fogo de artifício, quero ser sempre o menino As estrelas deste mundo Xangô, ah, São João, Xangô Menino
Viva São João, viva o milho verde Viva São João, viva o brilho verde Viva São João das matas de Oxossi Viva São João


quarta-feira, 20 de junho de 2007

Registro 111: Aula inaugural

O ATOR E SEU OFÍCIO[1]

Fernanda Montenegro

Albert Camus, falando sobre o absurdo da existência humana observa: “O ator reina no domínio do mortal. De todas as glórias do mundo, sabemos que a sua é a mais efêmera. E é também o ator quem mais percebe, entre os homens, que tudo deve morrer um dia. E, para ele, não representar significa morrer cem vezes, com as cem personagens que ele teria animado ou ressuscitado”.

Percorrendo assim os séculos e os espíritos, imitando o homem tal como ele pode ser e tal como é, o ator confunde-se com outra figura absurda: o viajante. E como viajante, o ator esgota alguma coisa ao percorrer sem cessar. Ele é o viajante do tempo e, se é um grande ator, torna-se um ansioso viajante das almas.

Para pegar um copo, ele encontra novamente o gesto de Hamlet erguendo a taça. Por isso, não é assim tão grande a distância que o separa dos seres que ela faz viver. O ator ilustra, todos os dias, essa verdade tão fecunda: a de que não existem fronteiras entre aquilo que um homem “quer ser” e aquilo “que é”.

Quanto mais estreito é o limite que lhe é dado para criar sua personagem, tanto mais necessário que ele tenha talento. Afinal, ele vai morrer dentro de duas ou três horas sob um rosto que não é o seu. É preciso que nessas duas ou três horas ele sinta e exprima todo um destino excepcional, e isso tem um nome certo: é perder-se para se encontrar. Nessas duas ou três horas ela vai até o “fim do caminho sem saída” que o homem da platéia gasta a vida toda para percorrer.

No passado a Igreja repudiava, na arte do ator, a multiplicação herética das almas, o deboche das emoções, a pretensão escandalosa de um espírito que se recusa a viver apenas um destino e se precipita então em todas as intemperanças.

A atriz Adrienne Lecouvreur, no seu leito de morte, quis confessar-se e comungar, mas recusou-se a renegar sua profissão, conforme lhe exigiam. E, por causa disso, ela perdeu o benefício da extrema-unção. Isso significa que, entre Deus e a sua profissão, ela tomou o partido da sua paixão pelo teatro.

E essa mulher, na agonia, recusando-se a renegar aquilo que chamava “a sua arte”, mostrava, morrendo, uma grandeza que nunca atingira no palco. Foi o seu papel mais belo e também o mais difícil: escolher entre o céu e uma fidelidade irrisória.
E é esta finalmente a tragédia secular na qual temos que ocupar nosso lugar: “Entre nós e a eternidade, optar por nós”.

Se, como disse Camus, entre nós e a eternidade, nós, atores, optamos por nós, isso significa que temos uma identidade. Uma identidade própria, uma história específica, uma vida singular, com suas necessidades e razões. Muitas vezes as razões do jogo teatral do ator têm razões que própria racionalidade, melhor dizendo, que o próprio enquadramento da história dos homens e a história oficial do próprio teatro menosprezam. Ou mesmo desconhecem.
(...)
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[1] Palestra realizada no Centro de Artes Livres, em março de 1983. In: Cadernos de Teatro. Rio de Janeiro: Tablado / INACEN, abr. , mai. , jun. , 1983, n° 97.

terça-feira, 19 de junho de 2007

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Registro 109: Postais da minha coleção

1920
1917

s.d


Os postais fazem parte de uma pequena coleção. Eles estão classificados como "paisagens marítimas". São postais italianos e me foram dados por Arthur Coli, artista plástico e professor. Trabalhamos juntos na Secretaria do Menor - São Paulo, na equipe de responsável pela capacitação dos arte-educadadores que atuavam nos diversos programas da Secretaria.

domingo, 17 de junho de 2007

Registro 108: Uma introdução que gostaria de ter escrito

(...)
A primeira parte do livro – “A Terra de Cinzas e Diamantes “ – conta um segmento da história subterrânea do teatro e também uma história de amor.

Eu a escrevi com a intenção de dar um testemunho sobre alguns anos que foram cruciais para o teatro da segunda metade do século XX, anos que viram a incubação e a afirmação da revolta teatral de Jerzy Grotóvski, Ludwik Flaszen, Jerzy Gurawski e daquele minúsculo grupo de atores ao redor deles. . O contexto é a Polônia socialista, em um período histórico marcado pela mediocridade de um regime policial violento e pelo ardor de uma vida intelectual e artística que era, ao mesmo tempo grito de libertação e trabalhoso artesanato de liberdade.

Parece que hoje foram perdidos todos os rastro do saber daque4les anos, no fundo nem tão distantes. E como sempre, quando desaparecem os rastros deixados sobre um terreno, a história corre o risco de se tornar retilínea, ou seja, sutilmente falsa, apesar da veracidade dos fatos que ela põe em conexão.

É possível, por exemplo, traçar uma linha que liga o teatro de Grotóvski às reformas e às buscas teatrais eslavas da primeira metade deste século: Stanislávski – Vakhtângov – Meierhold – Eisenstein – Grotóvski. Ou então uma linha menos usual, atenta ao trabalho do ator e do diretor dentro do texto e contra o texto: meierhold – Brecht – Grotóvski; ou ainda, uma linha que vai além do horizonte do espetáculo como único fim do trabalho teatral: Stanislávski – Sulerjízki – Copeau – Osterwa – Grotóvski. Todas estas conexões são corretas. Mas serve, sobretudo. Àqueles que se deram a tarefa de encontrar uma sentido e uma direção para acontecimentos do passado.

Entretanto, essas conexões são inúteis para atores e diretores que hoje se encontram a lutar contra as circunstâncias adversas, contra a indiferença e a solidão, tendo a necessidade de inventar uma casa – um teatro – na própria medida. A essas pessoas não interessa somente a grande corrente da história teatral do século XX, o relatório dos desafios vitoriosos que parecem, à distância de tempo, revoluções estéticas e descobertas fundamentais. Nas aventuras de seus predecessores, também procuram exemplos e inspirações para resolver as numerosas dificuldades cotidianas e os árduos problemas que nascem das próprias escolhas. Procuram estratagemas, técnicas, princípios e ideais para superar os obstáculos que os superam. Para os que ainda não possuem um nome, mas que tentam conquistá-lo e descobri-lo, é útil conhecer as prosaicas condições materiais em que se desenrolou a história dos sem nome.
(...)
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BARBA, Eugenio. A terra de cinzas e diamantes. São Paulo: Perspectiva, 2006.

sábado, 16 de junho de 2007

Registro 107: Um texto instigante

TEATRO NA EDUCAÇÃO
(O QUE É, AFINAL?
)[1]


Fanny Abramovich

Mistério! Dúvida! Inquietação! Afinal de contas, o que é esta matéria nova, repentinamente incluída na programação escolar, com o nome mutável de teatro, artes cênicas, improvisação teatral, expressão dramática? Em que consiste? De que se trata? Hipótese 1: São festinhas ligadas a temas cívicos (Dia da Pátria), familiares (Dia das Mães), comemorações e efemérides em geral (Semana do Índio), etc. Nada disso. Essas “festinhas” onde se pretende organizar, segundo a ótica e visão adultas, uma comemoração que nada tem a ver com a criança e/ou o adolescente, são meros pretextos para um falso exibicionismo, nem por um momento ligado a uma atividade espontânea, lúdica, solta, do aluno. Querer determinar uma data, um dia, onde a criança possa se expressar é um pouco autoritário. E, se acrescentarmos que nessas ocasiões não há nenhuma atividade expressiva (a não ser da professora), além do clima histérico que as precede, fica a pedagogia a perguntar muito sobre o porquê dessas realizações... O fato de se revestirem de um aparato solene (tirando todo o caráter de jogo) e o fato de se levarem as crianças a meras repetições estereotipadas têm demonstrado, de maneira inequívoca, que são antipedagógicas e que o caminho não é esse. Hipótese 2: É a constituição de um grupo dramático na escola. Nada disso, também. Se a expressão é um direito de qualquer indivíduo, a formação de um grupo selecionado com critérios do “tem jeito para” só leva à formação de vedetes (em geral insuportáveis). E estrelismo nunca foi objetivo educacional. Além do mais, encarada dessa maneira, passa a ser uma atividade marginalizante. E, se está integrada no currículo, não pode ser marginalizante. Se a própria escola não separa os alunos que fala francês dos que fazem ginástica, por que separá-los em uma atividade tão essencial quanto as demais? Sabe-se que a expressão não é um dom divino, mas uma forma de contato humano. Então, por que voltar ao monte Olimpo? Não, este caminho é muito pouco pedagógico, muito elitista e fundamentado em falsos critérios.
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[1] Publicado originalmente em Teatro na educação: subsídios para seu estudo, uma publicação do Ministério da Educação e Cultura, Serviço Nacional de Teatro, Rio de Janeiro, 1976, na Coleção Cartilhas de Teatro.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Registro 105: Para ler ouvindo música e...silenciar para ouvir o tempo

"Todos os homens devem morrer"

A NOTÍCIA DA MORTE voa rápido, ignorando o espaço. Chega dura como golpe de ferro que esmigalha o tempo. As agendas, mensageiras do tempo, dissolvem-se no ar. Aquele dia não lhes pertence. Naquele dia somente uma coisa faz sentido: chorar.

O poeta W.H. Auden chorou: "Que os relógios sejam parados, que os telefones sejam desligados, que se jogue um osso ao cão para que não ladre mais, que o piano fique mudo e o tambor anuncie a vinda do caixão e seu cortejo atrás. Que os aviões, gemendo acima em alvoroço, escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu. Que as pombas guardem luto - um laço no pescoço - e os guardas usem finas luvas cor de breu. É hora de apagar as estrelas - são molestas -, hora de guardar a lua, desmontar o sol brilhante, de despejar o mar e jogar fora as florestas..."

A notícia chegou e me faz chorar. O Waldo César morreu. A morte há muito já se anunciara. Não sei os detalhes. Sei que há cerca de três anos ele se recolheu em um lugar que muito amava, na companhia de árvores, riachos e bichos.

Será que ele já sabia?

Os que ainda não sabem que vão morrer falam sobre as banalidades do cotidiano. Mas aqueles que sabem que vão morrer vêem as coisas do cotidiano como "brumas e espumas". Por isso preferem a solidão. Não querem que o seu mistério seja profanado pela tagarelice daqueles que ainda não sabem.

O corpo de um morto: presença de uma ausência. Mário Quintana brincou com sua própria morte dizendo o epitáfio que deveria ser escrito no seu túmulo: "Eu não estou aqui..."Se não está ali, por onde andará? Essa foi a pergunta que Cecília Meireles fez à sua avó morta: "Onde ficou o teu outro corpo? Na parede? Nos móveis? No teto? Inclinei-me sobre o teu rosto, absoluta como um espelho. E tristemente te procurava. Mas também isso foi inútil, como tudo o mais".

Também o olhar, para onde foi? O velho Bachelard também procurava sem encontrar a resposta: "A luz de um olhar, para onde ela vai quando a morte coloca seu dedo frio sobre os olhos de um morto?".

Por não saberem a resposta, os amigos conversam. Falam sobre memórias de alegria que um dia foram a substância de uma amizade. Falam procurando o sentido da ausência. Para exorcizar o medo...

O Waldo amava a vida. Amava a vida porque conhecia a morte. Já a experimentara na morte trágica da Ana Cristina, sua filha poeta, e de sua companheira Maria Luiza. Mas ele triunfava sobre o horror da morte pela magia da música. Assentava-se ao órgão e tocava seu coral favorito: "Todos os homens devem morrer", de Bach.

De todas as artes, a música é a que mais se parece conosco. Para existir, ela tem de estar sempre a morrer. Nesse preciso momento fez-se silêncio no meu apartamento. Antes havia música, a "Sonata ao Luar". Mas, uma vez realizada a sua perfeição, Beethoven a matou com dois acordes definitivos. Tudo o que é perfeito precisa morrer. Creio que foi dessa proximidade musical com a morte que o Waldo encontrou o seu desejo de viver intensamente.O corpo morto do meu amigo me fez pensar sobre a beleza da vida. Por isso, como ele, volto-me para Bach. E é isso o que vou fazer: vou ouvir o CD "Bach", que o Grupo Corpo dançou. Se o Waldo estiver por perto, ele parará para ouvi-lo e conversaremos em silêncio...
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ALVES. Rubem. Todos os homens devem morrer In: Folha de S.Paulo, Cotidiano, 12 de junho de 2007.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Registro 104: Festa popular



Em centenas e centenas de casas rezam-se as trezenas de Santo Antônio, do dia primeiro ao dia treze. Um altar improvisado na sala de visita, duas velas aos pés do santo, a mulher puxa a ladainha. Moças pobres, vestidas modestamente, rapazes brechando. Trocam olhares durante a reza. Mas os músicos amigos da casa já se encontram por ali perto esperando que a devoção termine. Depois da reza aparecem o violão e o cavaquinho, a flauta e a harmônica, e diante do altar os pares dançam, os namorados riem. Cálices de licor de jenipapo são servidos.

Junho é o mês das festas íntimas, muitas festas, que se sucedem no correr das ruas, quase que em todas as casas, nos bairros pobres. É o mês mais alegre da cidade

No dia treze é a festa de Santo Antônio. As rezas são mais longas, a sala mais enfeitada (quase sempre bandeirolas de papel), o baile também dura a noite toda. Corre o jenipapo, come-se a canjica, soltam-se os primeiro fogos. Nos candomblés, festeja-se Ogum.
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AMADO, Jorge. Mês de junho. In: Bahia de todos os santos: guia de ruas e mistérios. Rio de Janeiro: Record, 1977, p. 138.
Bandeirolas, foto de Adenor Gondim

terça-feira, 12 de junho de 2007

Registro 103: Dia dos namorados

QUE O DIA DOS NAMORADOS SEJA LEVE, LIVRE, SOLTO




QUE O DIA DOS NAMORADOS SEJA LEVE,
LINDO, SOLTO, DIVERSO

Registro 102: A História vista a contrapelo

WALTER BENJAMIN E AS LIÇÕES DE UMA HISTÓRIA VISTA A “CONTRAPELO”
Não existe documento de cultura que não seja também um documento de barbárie... portanto, na medida do possível o materialismo histórico se distancia dela. Considera que sua missão é escovar a história a contrapelo (Walter Benjamin, Sobre o conceito de história, tese VII, c. 1940).

Walter Benjamin, que viveu entre 1892 e 1940, na Alemanha e na Europa nos agitados e transformadores tempos dos finais do século XIX e da primeira metade do século XX, foi sem dúvida um dos mais importantes intelectuais europeus em sua época. Intelectual imprescindível para uma adequada compreensão da história e da cultura européia do principio do século XX, Benjamin captou, com excepcional perspicácia crítica e concepção extremamente refinadas, várias das mais importantes lições derivadas de complicados acontecimentos históricos, e das profundas transformações sociais e culturais desta Europa já mencionada. Uma Europa que foi sacudida, sucessivamente, pela ascensão de potentes movimentos dos trabalhadores e pelos audazes intentos das revoluções socialistas finalmente falidas, pela absurda primeira grande guerra européia de 1914-1918, pela crise econômica de 1929 e posterior ascensão do nazismo, do fascismo e do franquismo e, finalmente, pela irrupção também cruel e irracional da segunda guerra mundial, configurando, a partir de todos estes processos, o claro cenário de uma autêntica e profunda crisis, tanto do projeto civilizatório global europeu, quanto do conjunto dos fundamentos da razão européia moderna.

Porque em sintonia como todos estes choques e sacudidas mencionadas, que constituem o “meio” e a “época” da trajetória biográfica de Walter Benjamin, é que vão florescer e difundir-se amplamente todos esses questionamentos intelectuais, sistemáticos e profundamente críticos, relativos a todos e a cada um dos fundamentos da moderna razão burguesa, impugnada igualmente pela psicanálise freudiana, pela antropologia crítica inglesa e igualmente pela nova historiografia francesas e pelos círculos lingüísticos austríacos, além dos marxistas italianos, russos, alemães, húngaros, polacos e holandeses, junto aos sociólogos germânicos e aos poetas, escritores e artistas de praticamente toda Europa.

Uma crise total da razão burguesa moderna, – anunciada pioneira e inicialmente, várias décadas atrás, no projeto crítico de Marx –, que ao alimentar todas estas expressões críticas e contraculturais do período entre as duas guerras mundiais, vai abrir espaço para o desenvolvimento de uma perspectiva e de uma obra original e tão aguda, como a que tem sua origem no pensamento e na escrita de Walter Benjamin.

Somente uma consideração atenta deste contexto global, de destruição e de perda total de legitimidade da civilização, da razão e da cultura européias [1] é que permite compreender, tanto o agudo corte crítico das visões de Benjamin sobre o cinema, a imprensa, o teatro e a cultura dos seus contemporâneos – e os que ele analisou e diagnosticou de maneira singularmente profunda – quanto seu original olhar a respeito do drama barroco alemão, as obras de Baudelaire e de Goethe, o inacabado estudo sobre as passagens de Paris, entre os vários temas que abordou ao largo da sua relativamente curta vida.

Assim como ele nos mostra como o cinema recém inventado vai substituir as capacidades e habilidades do verdadeiro ator de teatro, pelos truques e possibilidades derivados da aplicação das câmeras e dos instrumentos da técnica cinematográfica, quando se entusiasma com a novidade e o caráter revolucionário do “teatro de situações” de Bertolt Brecht frente ao teatro tradicional e, igualmente, quando pensa sobre o “princípio construtivo” que permite organizar e dar conta da especificidade global de uma época, desde a caracterização do barroco ao exame das passagens e da nova configuração espacial e arquitetônica de Paris que é a “capital do século XIX”, Walter Benjamin coloca sempre em ação esse olhar crítico e distanciado, derivado da observação das realidades que estuda, sempre a contrapelo. Um olhar que transpassando o aparente significado evidente das coisas e dos assuntos estudados, vai se localizar sempre desde novos desafios, de espaços pouco freqüentados, para ser capaz de marchar em direções e caminhos que interrogam os seus objetos num sentido inverso dos raciocínios rotineiros e habituais, sempre na linha de “desfamiliarizar-nos” frente a essas realidades investigadas, para descobrir nelas, mediante o raciocínio crítico e dialético, seus significados mais profundos e essenciais.

Inserindo-se então, dentro das mais genuínas tradições do pensamento crítico contemporâneo, que começa desde Marx e se prolonga até os dias de hoje, Benjamin dá curso também a manifestação deste espaço privilegiado para a crítica que se constitui na Europa convulsionada entre as duas guerras mundiais desse século XX cronologicamente por terminar [2].
(....)
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ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. Walter Benjamin y las lecciones de una historia vista a “contrapelo”. In. Diálogos, v. 5, n. 01, p. 89-105. Maringá: Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá, 2001. Disponível http:// www.uem.br/~dialogos/ Acesso em: 19 jul. 2006. Tradução de Raimundo Matos de Leão
NOTAS

[1] Esta crise da civilização, da sociedade e da cultura européia nos anos de 1914-1945 é, em nossa opinião, um marco obrigatório de referências para a explicação da extraordinária ebulição cultural da consciência crítica que se manifesta em todas as perspectivas e correntes antes referidas. Sobre os impactos mais específicos desta crise no caso francês, temos tentado mostrar, respeito da nova historiografia francesa da mal chamada “escola” dos Annales, em nosso livro L’histoire conquérenate. Um regard sur l’historiographie francais, Ed. L’Hermattan, Paris, 2000 e também no livro Os Annales e a historiografía francesa. Tradições críticas, de Marc Bloch a Michel Foucault, Ed.Universidad Estadual da Maringa, Maringa, 2000.

[2] Para se ter uma idéia geral dos temas abordados por Walter Benjamin, cujos livros são, felizmente, traduzidos em sua maioria para o espanhol apesar, por exemplo, das ausências importantes dos fragmentos que deixou inconcluso dos estudos sobre as passagens de Paris, que já foram traduzidos para o francês, podemos ver por exemplo os livros de Pierre Missac, Walter Benjamin de um siglo a otro, Ed. Edisa, Barcelona, 19988 e Concha Fernández Martorell, Walter Benjamin. Crónica de um pensador, Ed. Montesinos, Barcelona, 1992. Sobre a obra inconclusa das ‘Passagens’ ver o livro de Susan Buck-Morss, Dialéctica de la mirada. Walter Benjamin y projecto de los Pasajes, Ed. Visor, Madrid, 1995.

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Registro 101: Influências do realismo socialista



Operários

Tarsila do Amaral

1933

Óleo sobre tela,

150 x 230 cm.

Acervo do Palácio Boa Vista

Governo do Estado de São Paulo

sábado, 9 de junho de 2007

Registro 101: Exposição























SIMILITUDE – SEGUNDO ENCONTRO
Exposição coletiva realizada no
Centro Universitário Maria Antonia, São Paulo, 1997
Cláudio Barros
Mônica Colucci
Raimundo Matos de Leão
Stela Maris Sanmartin

Pinturas/Desenhos/Objetos

Trabalhos de Raimundo Matos de Leão

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Registro 100: Lembandro Célia Helena, uma Magra inesquecível

MAGRA – Eu aceito. Você me quer como personagem... pra mim está bem. Eu gosto de me encontrar com você, eu não me sinto é capaz de representar outra vez. Mas falar é do que eu estou mais precisando.(Pausa) Por que é que eu não tento voltar ao convívio dos outros? É que eu não entendo mais nada. Eu, atualmente, tenho necessidade de falar do que me aconteceu. E eu só consigo falar quando eu sinto que estão me compreendendo de verdade, um mínimo. E isso é raro. Na verdade, com exceção de você, eu não tenho tido com quem falar. Eu não tenho com quem. E depois, as pessoas têm muito medo. E o medo delas me dá medo. Você é diferente. Você me ouve e não se assusta com o que eu digo. (Pausa) Sabe, existe alguma coisa que eu não te contei. Eu... eu... estou esperando um filho dele... de Pedro. Ele está totalmente mudo, você sabe... não diz palavra. Eu, no fundo também tenho medo de falar. Parece uma covardia, principalmente ao lado do silêncio dele, tão forte, tão terrível. O silêncio dele é tão forte, ou mais, que a palavra. A palavra é uma coisa igualmente forte, eu sei, ela é como fogo, eu acho estranho as pessoas não temerem a palavra. Ela é uma coisa mágica, eu acho até que é a coisa mágica. Eu não sabia o que queria dizer invocar. Mas eu aprendi com eles. O poder contido nas palavras é uma coisa esquecida e sepultada no fundo de nossa memória. Eu estou falando de uma coisa difícil?... Não, não me interrompa, tente compreender, não me peça fatos... você me quer como personagem, está bem... mas por enquanto eu sou um personagem que fala demais e você tem que aceitar... Em teatro a gente chama de clima, alguma coisa como uma aura que envolve uma peça ou um personagem, é sobre isso que eu estou falando. Mais: as palavras têm a força de uma granada ou de uma bomba, elas têm um poder equivalente ao de uma arma atômica, mas também quando elas são ditas, pronunciadas sem fé, sem verdade, com ignorância, aí então, elas não têm força alguma quando são ditas sem convicção. É dessa força que o silêncio dele me atrai. O silêncio dele revela uma mentira de nós todos. Nós temos usado as palavras para nos atordoarmos, nós as temos usado a esmo, nós nos confundimos com elas, elas nos justificam o tempo todo da nossa inação. Sabe, outro dia eu li em algum lugar que personagem quer dizer aquele ou aquilo através do que o som se faz: per-son-agem, persona, personalidade... O silêncio dele é a recusa do personagem, qualquer que ele seja. Eu não estou defendendo aquilo que as pessoas chama de loucura ou sei lá o quê. Eu estou dizendo que eu não posso fingir que eu não compreendo ele. Os ciganos foram embora, mas estão presentes ainda em nós. E será que eles não estiveram presentes desde sempre em todos nós? E será que eles não foram simplesmente o catalisador de alguma coisa que estava para explodir? Eu sinto uma espécie de remorso de abandoná-lo. Eu sinto uma necessidade grande de compreender tudo isso, embora eu percebe que é uma tarefa além das minhas forças... Ele foi além de mim... e isso é a loucura? Eu mesma, estou louca? Em certos momentos eu me pergunto porque é que eu estou falando ainda. O que falar? Pra quem e pra quê? Como se eu vivesse em carne viva num mundo de robôs que me machucam sem se preocuparem, a toda hora esbarrando em mim, porque eles nunca poderiam compreender o que significa esse estado. Mas eu sei que por dentro deles, existe a mesma matéria, a mesma carne e o mesmo sangue que em mim estão visíveis e neles oculto por trás de uma armadura. Eu vou menos longe do que ele. Por isso eu falo e tento explicar... é o que me prende. Essa vontade de explicar. É como se eu estivesse entre dois mundos, mas os dois coexistem, eu sei e você sabe. (Pausa). Mas eu não tenho nenhuma vontade de representar, entende? Eu não posso ter. Não me importa o que as pessoas pensem. Eu não posso esquecer. É uma espécie de fidelidade que eu devo a ele.
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ARAP, Fauzi. Pano de boca. Texto mimeografado, s.d.
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CÉLIA CAMARGO SILVA (Célia Helena)

Nascimento: 1936, São Paulo, SP, Brasil. Casamento: Raul Cortez (divórcio): filha Lygia Cortez; Ruy Ohtake: filha Elisa. Falecimento: 29/03/1997, São Paulo. Atriz de cinema (estréia em "Fatalidade", 1953), teatro (sucesso nos anos 1960 e 1970) e TV (estréia na novela "O Décimo Mandamento", 1968); destaca-se em telenovelas da Rede Globo como "Brilhante" (1982), "Mandala" (1988), etc.; Prêmio Moliére de Atriz por "Pano de Boca" (1976).



terça-feira, 5 de junho de 2007

Registro 98: O viajante retorna ao lar


NO PALÁCIO DE ULISSES

CORO DAS SERVAS

Ai ausência de Ulisses: já seu vinho bebido vinha a vinha
já seu leito apetecido.
Todo o tempo é de orgia e de banquete
e já nenhum oráculo o anuncia.

No palácio de Ulisses só a rainha
confia
de noite desfiando em seu tapete
o que fiou de dia.

PENÉLOPE

No tempo bordarei a minha a minha dor
no tempo (esse tapete) bordarei
o tempo que não passa e que passei
fiando e desfiando por amor.
No tempo estas perguntas: onde e quando?
No tempo que se vai e não me leva
àquele por quem sou rainha e serva
fiando por amor e desfiando.

No tempo que se vai e se repete
no tempo bordarei o meu tapete
num fazer-desfazer que me desfaz.

Enquanto o tempo vai e não me leva
enquanto o tempo passa e não me traz
aquele por quem sou rainha e serva

MENSAGEIRO

Dizem que um velho desembarcou em Ítaca
dizem que um velho desembarcou.
Dizem que é cego mas vê. Dizem que sabe o porquê.

E a quem lhe pergunta pelo rei
a quem lhe pergunta responde:
o rei somos nós.
Disse que o rei somos nós.

E a quem lhe pergunta por Ítaca
a quem quem lhe pergunta responde:
Ítaca está dentro de nós.

CORO DOS HOMENS DO POVO

Ítaca está dentro de nós

MENSAGEIRO

E a quem lhe pergunta o que sabe
a quem lhe pergunta responde:

VOZ

Eu nada sei que não se saiba
Ulisses está onde está
dentro de ti dentro de nós
no que não foi no que não há
ele é a voz deste silêncio
e este silêncio que tem voz.
Este silêncio somos nós
este silêncio que tem voz.

MENSAGEIRO

E a quem lhe pergunta quem é
a quem lhe pergunta reponde:

Entra o
VELHO

Quem somos donde vimos para onde vamos?
Há muito já que moro no porquê.
Nada sabemos senão que passamos.
E há sempre um homem que já foi.
Há um homeme que ainda não é.
É esse que me dói.

PENÉLOPE

Quem és tu ó estrangeiro? Quem és e donde vens?

VELHO

Pode o homem ter muitos nomes e não ter nenhum
pode ter um só nome tendo muitos.
Pode ter uma pátria e já não ter nenhuma
ou tendo muitas ter uma só.
Pode ter uma pátria que nunca teve
e pode ter uma pátria que não há.

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ALEGRE, Manuel. Um barco para Ítaca. Lisboa: Nosso Tempo, 1971, pp. 56-57

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Registro 97: Sobre vida e atores

VIDAS BEM VIVIDAS
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NA SEMANA passada, o teatro da Federação do Comércio do Estado de São Paulo mudou de nome. Chama-se agora teatro Raul Cortez.

Na realidade, a mudança já tinha acontecido na estréia da peça que está atualmente em cartaz no teatro, "Às Favas com os Escrúpulos", uma comédia de Juca de Oliveira, com a direção de Jô Soares e uma imperdível Bibi Ferreira. Ninguém melhor que um ator como Jô Soares para dirigir uma grande atriz, para deixá-la livre de dizer tanto (e de ser irresistivelmente engraçada) com uma atuação quase pudica. (Aparte. Atua também na peça Adriane Galisteu, que é sempre julgada como se o fato de ser apresentadora e modelo fosse um handicap; pois é, ela está ótima).
Enfim, na estréia da peça, na sexta retrasada, antes que começasse o espetáculo, foi projetado um breve filme de lembranças de Raul Cortez, que morreu há pouco menos de um ano, aos 73. No fim do filme, a gente aplaudiu longamente. Logo depois, aplaudimos a entrada em cena de Bibi Ferreira.

No meu caso (e imagino que fosse assim para muitos outros na platéia), não se tratava apenas do aplauso elogioso pela maestria da atriz -esse, obviamente, veio no fim da peça. As palmas iniciais me lembraram as que talvez ainda acolham, a cada noite, a aparição de Paulo Autran na cena do "Avarento": um aplauso que parece ser de agradecimento. Pelo quê? Não sei se Diderot (no "Paradoxo sobre o Comediante") tinha razão ou não. Pode ser que, como ele propunha, o ator seja um intelectual frio que silencia e controla suas paixões para estudar as expressões do sentimento humano a fim de reproduzi-lo. Pode ser que, ao contrário, o ator se esgote a cada vez, vivendo intensamente emoções que ele não imita, mas das quais ele se apropria.

Tanto faz. É provável que não haja regra, e a coisa dependa do ator, do papel e do momento. De qualquer forma, o ator se esgota ou se controla para nos oferecer o espetáculo da diversidade e da complexidade de paixões que são as nossas e que, sem o ator, não saberíamos reconhecer. O ator, de uma maneira ou de outra, revela-nos a nós mesmos. E podemos lhe ser gratos por isso.
Mas há mais. Talvez, o aplauso suscitado pelo breve filme sobre Raul Cortez tivesse também outra significação, igualmente presente no aplauso da entrada em cena de Bibi Ferreira ou de Paulo Autran -os quais, claro, estão bem vivos entre nós (e se espera que assim continuem por muito tempo), mas numa idade que encoraja a avaliação do caminho que eles percorreram. Talvez trate-se, nesses casos, do aplauso por uma vida bem vivida.

Por que, às vezes, estou a fim de aplaudir uma vida? Esse tipo de aplauso não expressa apenas a gratidão e o elogio reservados a quem se dedicou generosamente aos outros nem o encômio destinado a quem deixou no mundo uma obra ou uma marca duradouras. Tampouco estou a fim de aplaudir porque uma vida me parece ter alcançado uma forma qualquer de bom êxito material ou espiritual.

Tudo isso, claro, pode alimentar minha admiração, mas o aplauso, justamente por seu caráter teatral, é desencadeado por algo mais, algo que aparecia no pequeno filme sobre Raul Cortez e que poderia ser resumido assim: aquela vida vale a pena ser contada.

Não é fácil definir o que faz que uma vida tenha essa qualidade estética ou poética que lhe dá, por assim dizer, a grandeza e a dignidade de um romance. Não é a felicidade nem o sucesso, nem o caráter extraordinário dos eventos; uma vida pode ser uma série de fracassos, mancadas e tristezas, pode também ser trivial e, no entanto, valer a pena ser contada.

Talvez a qualidade poética de uma vida que desperta o aplauso esteja na sensação de que seu protagonista foi animado por uma obstinada fidelidade ao desejo: seja qual for a distribuição das cartas pelo acaso ou pelo destino, ele jogou bem porque jogou sem medo de jogar. Na hora de nos despedir de alguém que nos é querido, choramos nossa perda, e é normal que seja assim. Mas deveríamos festejar, quando der, a "beleza" de sua vida. E chorar, quando for o caso, as vidas que se perdem não pela morte, mas pela morte-em-vida -as vidas, em suma, dos que não conseguiram ser atores de suas próprias vidas.

Esta coluna é escrita em homenagem a Octavio Frias de Oliveira, com quem, infelizmente, ao longo destes anos, apenas cruzei. Mas fiquei um tempo lendo a história de sua vida.
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CALLIGARIS, Contardo. Vidas bem vividas. IN: Folha de S.Paulo, Ilustrada, 31 de maio de 2007

domingo, 3 de junho de 2007

Registro 96: Crítica


AS DESGRAÇAS DE UMA CRIANÇA
DE MARTINS PENA E CELSO JÚNIOR


Raimundo Matos de Leão
Doutorando e Mestre em Artes Cênicas


Está em cartaz no Teatro ISBA o espetáculo As Desgraças de uma Criança, texto de nosso primeiro grande comediógrafo, Luís Carlos Martins Pena. A encenação é mais uma produção da Cia. Experimental de Teatro do Curso de Artes Cênicas da Faculdade Social da Bahia – FSBA, e permanece em cartaz até 17 de junho, de sexta a domingo, às 20h. É uma curta temporada para um trabalho cênico que merece mais tempo em cartaz para que o público tome ciência e divirta-se com a interpretação dos alunos-atores sob a direção de Celso Júnior, também professor do referido curso.

O texto, levado à cena pela primeira vez em 13 de março de 1846, época em que o teatro brasileiro se constitui de fato com seus elementos fundantes: dramaturgos, atores reunidos por um empresário e público numeroso, inscreve-se na linhagem da comédia de costumes da qual o autor é criador entre nós. Ainda que distante no tempo de sua feitura, permanece vivo para as platéias pós-modernas. Vivo porque possibilita leituras, interferências, atualizações e encenações ágeis, além de fornecer aos atores bons personagens para uma criação segura. Quando de seu primeiro teste no palco, a comédia de Pena sofreu vários cortes determinados pelo Conservatório Dramático Brasileiro, órgão que na época encarregava-se não só de censurar os temas, mas principalmente de cuidar da qualidade literária do texto. Ainda bem que nos livramos de tal instituição, embora outras restrições se dêem no presente pela ordem econômica, que determina, via patrocínio incentivado pelas leis, um certo tipo de espetáculo.

Retomando recursos explorados em diversas de suas comédias, Martins Pena traz para a cena os casais enamorados enfrentando dificuldades para concretização da sua relação amorosa. O travestimento de personagens e o erro de pessoa são outros elementos evidenciados comicamente nos entrechos da peça, cuja ação se passa na noite de Natal. Enquanto os patrões Abel (Newton Olivieri) e sua filha Ritinha (Iriane Santana) vão à Missa do Galo, Madalena (Ava Catarina) toma conta do filho da viuvinha, lamentando-se por não poder ir á festa. Enquanto cuida da criança de forma muito pouco pedagógica e humana, ela recebe a visita do namorado, o soldado Pacífico (Alexandre Moreira). Depois de muita recusa, Pacífico concorda em tomar conta da criança para que Madalena vá à Igreja. Em seguida, o soldado vê-se em apuros porque a criança chora esganiçadamente, proporcionando ações engraçadíssimas que aumentam quando entra o sacristão Manoel Igreja (Ricardo Fariah), que já estivera na casa no começo da peça, pedindo a Madalena para entregar uma carta de amor para Ritinha. Pacífico, travestido de Madalena, recurso que usa para acalmar o bebê, sabedor do conteúdo da carta que descobrira debaixo do travesseiro da sua amada, acha que está sendo traído, atritando-se então com o sacristão. Esclarecida a confusão entre os dois, os donos da casa retornam. Pacífico e Manoel tratam de esconder-se. A bagunça aumenta, visto que Abel deseja Madalena e investe sobre ela sem saber que é Pacífico travestido. Por fim, Madalena retorna e Abel acha que em sua casa, trancado num quarto, encontra-se um ladrão. Sai para chamar polícia. Enquanto isso, Madalena e Ritinha dão fuga para os namorados. Tempo depois retornam, acompanhando Abel. Irrompe-se outra série de qüiproquós, com a criança passando de mão em mão, mais uma justificativa para o título. Finalmente os personagens entram em acordo, assim que o mal-entendido se esclarece. Tudo termina bem.

Desse entrecho simples e muito bem construído pelo autor, o diretor-professor Celso Júnior cria um espetáculo divertido, ágil entre doses de ingenuidade e deboche. Sem cair na vulgaridade do humor televisivo, Celso Júnior explora os elementos que o texto fornece optando pela chanchada, mas sem abrir mão de referências que estão em O Gordo e o Magro, Os Três Patetas e Os Trapalhões; mistura tudo isso com uma pitada maliciosa, fato que torna o espetáculo palatável e bem realizado, já que esses componentes são utilizados de maneira precisa e coerente com o gênero encenado. Sua concepção ressalta os elementos constitutivos da comédia de costume, atualizando-a.

Conduzindo os alunos-atores com segurança, o diretor possibilita a necessária estrutura para que eles se lancem no delineamento seguro das personagens, marcadamente tipos, explorados com graça e firmeza por todo elenco, ainda carente da experiência plasmada pela vivência do palco nos intérpretes. Por isso mesmo o trabalho dos alunos-atores é valorizado. Com sensibilidade cômica e sem apelações fáceis para sujeitar a platéia, eles cumprem e pontuam a ação com suas criações muito bem definidas. Desenhando marcações engraçadas e brincando com a gestualidade e os exageros do melodrama, a direção mantém o ritmo do espetáculo sem os exageros do teatro “besteirol”, gênero que ocupou o lugar da alta comédia e da comédia de costumes em nossos palcos.

Para emoldurar a cena, Celso Júnior contou com a ajuda do cenógrafo-iluminador e também professor do curso Eduardo Tudella, e da figurinista e professora Karina Alatta. Ao abrir-se o pano de boca, a platéia é envolvida pelo cenário simples e preciso. Concebido para situar a ação, serve como uma moldura leve, bem ao gosto do espetáculo. Através de estruturas vazadas, três portas que dão para o interior da casa e uma para o exterior, Tudella estabelece os limites da sala sem as paredes, usando como solução para evidenciá-las apenas o roda-pé. O cenário chama a atenção por essa solução. A sala se completa com os móveis – a mesa merecia mais atenção, visto que seu tampo não está fixado, ocasionando sobre-saltos na platéia – e uma árvore de Natal. O conjunto cenográfico destaca-se, mas se mantém orgânico no todo do espetáculo. Sua concepção realista não ilude o espectador. A teatralidade se instala e a convenção é aceita como parte do jogo do teatro. Os figurinos, ainda que bem concebidos, carecem de maior determinação quanto às características dos personagens. Ainda que tipos, eles definem-se socialmente diferentes, e isso poderia ser mais bem explorado, principalmente na escolha dos tecidos e na cor da roupa do senhor Abel.

A trilha sonora proporciona surpresa com a utilização de canções do conjunto Swing Singers, de grande sucesso nos dos sessenta, começo dos setenta. As músicas escolhidas harmonizam-se com o clima da comédia, tornando-se brejeiras a pontuar momentos do espetáculo com muita propriedade.

Por esses atributos, recomendamos uma ida até o Teatro ISBA para ver As Desgraças de uma Criança, mais uma realização da Cia. Experimental de Teatro, que objetiva colocar em cena os alunos do Bacharelado em Interpretação Teatral e também os de Licenciatura em Artes Cênicas, para que eles possam exercitar o que aprenderam na relação com a platéia. Esse jogo comunicativo está presente na encenação e ambos, intérpretes e espectadores, saem ganhando. Da mesma forma, os alunos que compõem a equipe técnica habilitam-se em outras funções necessárias para que o acontecimento teatral se realize. Cabe notar-lhes os nomes: Andressa Manso e Marília Sá (Assistentes de Iluminação), Luiz Ailton Santos Filho (Assistente de Direção), Paulo Sérgio Cerqueira (Assistente de Produção). Completam a equipe de criação, as professoras Juliana Rangel (Orientação de corpo e voz) e Marilda Santana (Produção Executiva).

Registro 95: Trabalho de um artista criativo

Uma litrografia de Flávio Império

sábado, 2 de junho de 2007

Registro 94: Fragmento de um conto para criança

DONA ROSITA E SEU GATO MIAU

Raimundo Matos de Leão.

Era uma vez...

Na cidade do Esquecimento, vivia dona Rosita bordando lenços, laços, lençóis e vendo o tempo passar. Nada mais fazia além de fiar e bordar.

Rosita não tinha alegria e tristemente vivia a suspirar. Passava os dias num suspiro de dar dó. E no eterno suspirar deixava o tempo passar

- Ai...ui...ai! Uf! Uf! Uf! Ai, que estas horas não passam! Parece que o relógio não anda!
E assim passava o tempo, amanhecendo, anoitecendo e Rosita a reclamar. Olhava sempre o relógio e querendo brigar com ele, como se o tic-tac da máquina fosse o culpado de tudo.

Rosita tinha um gato que se chamava Miau. O gato, acostumado, seguia a sua dona naquele ritmo de vida, parado, sem novidades.

- Miau, miiiiaaauuuu! - o gato bocejava: - Anda tudo tão parado!

- Não acontece nada hoje em dia! Completava Rosita.

E os dois voltavam a suspirar.Uns suspiros tão fininhos de cortar o coração.

Todo mundo que pela casa passava, via pela janela, Rosita no seu fiar e o gato no ronronar.

Às vezes, o gato e sua dona amanheciam reclamando um do outro, e com isso a casa ficava entregue às pulgas, baratas e ratos.

Havia um rato que fazia a festa. Roía o queijo, o papel que embrulhava o queijo e tudo que cheirasse a queijo. Não contente com isso, metia o dente nas linhas e novelos na cesta de costura.

Rosita vivia implorando ao gato pra ele pegasse o rato, mas de tanta preguiça, acomodado que estava, o gato não saía do lugar. E pela sua cabeça passava: - “Deixa o bichinho comer, ele não pode morrer de fome!”

Assim passava o tempo. A praia se enchia de gente, depois os quintais e jardins cobriam-se de folhas amareladas. Mais um pouco, tudo que era de lã saía das gavetas e, por fim, as flores pintavam o mundo com suas cores. E daí tudo recomeçava e o calor inundava as cidades. Mas não pense que tudo era assim tão arrumadinho. Às vezes o tempo se encarregava de embaralhar tudo. Chovia e fazia sol ao mesmo tempo e as crianças brincavam, cantando:

- É sol e chuva, casamento de viúva!
É chuva e sol, casamento de espanhol!

Mas pra Rosita e Miau, o tempo não parecia passar, nem se atrapalhar!

Um dia, Rosita estava bordando e o gato veio se enroscar nos seus pés. Distraída, ela jogava fiapos de linha em cima do bichano. Os fiapos, no começo faziam até uma cosquinha gostosa, mas depois caíram tantos que Miau se irritou. Rosita, não se dava conta do que fazia com seu bichano de estimação. Quando estava que era só fiapo colorido, o gato deu um pulo, espreguiçou-se, miou bem forte e foi dizendo:

- Miaaauuuuu... Sabe de uma coisa? Quem fica parado é poste, eu quero é rebolar. Por isso vou me mandar. Vou pular a janela, vou ver o mundo do lado de lá!
Pegou uma trouxinha, juntou as suas coisas, enfiou a trouxinha num velho guarda-chuva e se mandou.

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Registro 93: Escrito na Folha de S. Paulo

O pós-moderno

FRANCISCO DE OLIVEIRA
Ele deu um salto à frente, de enormes proporções, e se tornou o mais eminente dos pós-modernos. Lula é, agora, a vanguarda do atraso.
LUIZ INÁCIO Lula da Silva, o atual presidente, nunca disfarçou seu desprezo pelos intelectuais, sentimento ou perspectiva compartilhada, aliás, por não poucos dos seus camaradas. Houve até um ministro importante do primeiro mandato que, ao anunciar a criação de um núcleo de estudos estratégicos no governo, avisou imediatamente que nele não teriam assento intelectuais que discutem eternamente o "sexo dos anjos", o que deu para desconfiar que ele não entendia nada de sexo ou de anjos -ou dos dois. A ironia é que Lula entregou agora o Ipea e o tal núcleo de estudos exatamente a um intelectual, tão intelectual que fala português com sotaque norte-americano.
Intelectual, diga-se logo, não é garantia de coisa alguma, pois o predecessor de Lula era um intelectual consagrado, que aliás se pavoneava com certa desfaçatez, proporcional ao desprezo de Lula. Que o PT tenha incensado certos intelectuais não faz muita diferença, pois essa é uma tradição da esquerda, a instrumentalização dos intelectuais ou de seus prestígios. Por isso, não se lamenta muito o desprezo do presidente. Mas ele agora deu um salto à frente, de enormes proporções, e se tornou o mais eminente dos pós-modernos. Ainda que rejeitem a noção de vanguarda, é certo que Luiz Inácio é, agora, a vanguarda do atraso.
Fazendo tabula rasa da história dos trabalhadores sob o capitalismo, Lula se entregou a perigosos exercícios intelectuais: designou os usineiros de açúcar do Brasil como heróis, os mais importantes do Brasil moderno, vale dizer, do Brasil lulista. Logo ele, pernambucano, desconhecer a história dos trabalhadores da cana-de-açúcar.
Jogou na lata de lixo as vidas ceifadas e de qualquer modo amesquinhadas por uma das formas de exploração do trabalho mais brutais. Não, segundo o pós-modernismo do presidente, eles, os trabalhadores, não existiram, suas vidas não contaram, porque os usineiros sempre foram magnânimos e um viés preconceituoso da esquerda prejudicou o reconhecimento do papel e do lugar dessa primorosa classe social na história brasileira. Francisco Alves é um pesquisador e professor da Universidade Federal de São Carlos que, com José Roberto Novaes, este da federal do Rio de Janeiro, está publicando em livro os resultados de anos de investigação sobre o trabalho dos cortadores de cana na região eldorada do açúcar em São Paulo. Em recente seminário na Faculdade de Saúde Pública da USP, foi difícil conter a indignação de Chico Alves, pois os jornais noticiavam mais uma morte por exaustão de um trabalhador da cana. Quase ao mesmo tempo, a Folha atualizava a sinistra estatística: já são 19 trabalhadores que morrem por exaustão desde 2004.
A professora Maria Aparecida Moraes, que também comparece com excelente artigo na coletânea, esclarecia em entrevista o que provocava as mortes por exaustão, mas a encerrava com uma nota final esperançosa que, para os leitores, era completamente estapafúrdia diante do que ela mesma comentara.
Aos fatos, finalmente: a produtividade dos trabalhadores tem crescido de maneira exponencial. No período de dez anos estudado por Chico Alves, ela havia passado de seis para 12 toneladas diárias. Eles perdem cerca de dez litros de água por dia, percorrem distâncias -no campo de trabalho, nos metros que lhes são destinados para corte- de dez quilômetros diários, dão 66 mil foiçadas (com o podão, um facão especial) por dia para lograr as 12 toneladas diárias, trabalham no mínimo 12 horas por dia, numa jornada que tem, pelo menos, seis horas de intensa exposição ao sol.
São encontrados no fim do dia nos postos de saúde tomando soro na veia para recuperar um pouco dos sais que perdem. Morrem por esgotamento: câimbras que podem provocar paradas cardíacas. Têm hoje vida média inferior à dos escravos coloniais. Em reportagem da Folha, um deles relatou que quase foi picado por uma cobra, que exige que andem com perneiras de plástico e ferro para evitar os presentes da deusa do Paraíso e o repique do podão.
A ironia da história é que a mudança do critério de toneladas para metros foi uma vitória da célebre greve de Leme em 1986, aquela em que deputados do PT, entre eles José Genoino, foram acusados pelas autoridades, com apoio dos heróis usineiros, de disparar um tiro que matou uma trabalhadora rural. Mas essa vitória de Pirro exige que os trabalhadores saibam converter metros em toneladas para não serem logrados, e a história diária é a de um roubo descarado. Marx disse certa vez que o capitalismo não é roubo, é exploração. É necessário ressuscitar a princesa Isabel e Marx: a primeira para realizar a nova abolição, e o segundo, para reformular seus conceitos, ainda generosos, de mais-valia e exploração.
Ave, Lula! Os usineiros te saúdam, e o Brasil, transformado num imenso canavial, curva-se à tua sapiência!

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FRANCISCO DE OLIVEIRA, 73, é professor titular aposentado do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.