quinta-feira, 7 de junho de 2007

Registro 100: Lembandro Célia Helena, uma Magra inesquecível

MAGRA – Eu aceito. Você me quer como personagem... pra mim está bem. Eu gosto de me encontrar com você, eu não me sinto é capaz de representar outra vez. Mas falar é do que eu estou mais precisando.(Pausa) Por que é que eu não tento voltar ao convívio dos outros? É que eu não entendo mais nada. Eu, atualmente, tenho necessidade de falar do que me aconteceu. E eu só consigo falar quando eu sinto que estão me compreendendo de verdade, um mínimo. E isso é raro. Na verdade, com exceção de você, eu não tenho tido com quem falar. Eu não tenho com quem. E depois, as pessoas têm muito medo. E o medo delas me dá medo. Você é diferente. Você me ouve e não se assusta com o que eu digo. (Pausa) Sabe, existe alguma coisa que eu não te contei. Eu... eu... estou esperando um filho dele... de Pedro. Ele está totalmente mudo, você sabe... não diz palavra. Eu, no fundo também tenho medo de falar. Parece uma covardia, principalmente ao lado do silêncio dele, tão forte, tão terrível. O silêncio dele é tão forte, ou mais, que a palavra. A palavra é uma coisa igualmente forte, eu sei, ela é como fogo, eu acho estranho as pessoas não temerem a palavra. Ela é uma coisa mágica, eu acho até que é a coisa mágica. Eu não sabia o que queria dizer invocar. Mas eu aprendi com eles. O poder contido nas palavras é uma coisa esquecida e sepultada no fundo de nossa memória. Eu estou falando de uma coisa difícil?... Não, não me interrompa, tente compreender, não me peça fatos... você me quer como personagem, está bem... mas por enquanto eu sou um personagem que fala demais e você tem que aceitar... Em teatro a gente chama de clima, alguma coisa como uma aura que envolve uma peça ou um personagem, é sobre isso que eu estou falando. Mais: as palavras têm a força de uma granada ou de uma bomba, elas têm um poder equivalente ao de uma arma atômica, mas também quando elas são ditas, pronunciadas sem fé, sem verdade, com ignorância, aí então, elas não têm força alguma quando são ditas sem convicção. É dessa força que o silêncio dele me atrai. O silêncio dele revela uma mentira de nós todos. Nós temos usado as palavras para nos atordoarmos, nós as temos usado a esmo, nós nos confundimos com elas, elas nos justificam o tempo todo da nossa inação. Sabe, outro dia eu li em algum lugar que personagem quer dizer aquele ou aquilo através do que o som se faz: per-son-agem, persona, personalidade... O silêncio dele é a recusa do personagem, qualquer que ele seja. Eu não estou defendendo aquilo que as pessoas chama de loucura ou sei lá o quê. Eu estou dizendo que eu não posso fingir que eu não compreendo ele. Os ciganos foram embora, mas estão presentes ainda em nós. E será que eles não estiveram presentes desde sempre em todos nós? E será que eles não foram simplesmente o catalisador de alguma coisa que estava para explodir? Eu sinto uma espécie de remorso de abandoná-lo. Eu sinto uma necessidade grande de compreender tudo isso, embora eu percebe que é uma tarefa além das minhas forças... Ele foi além de mim... e isso é a loucura? Eu mesma, estou louca? Em certos momentos eu me pergunto porque é que eu estou falando ainda. O que falar? Pra quem e pra quê? Como se eu vivesse em carne viva num mundo de robôs que me machucam sem se preocuparem, a toda hora esbarrando em mim, porque eles nunca poderiam compreender o que significa esse estado. Mas eu sei que por dentro deles, existe a mesma matéria, a mesma carne e o mesmo sangue que em mim estão visíveis e neles oculto por trás de uma armadura. Eu vou menos longe do que ele. Por isso eu falo e tento explicar... é o que me prende. Essa vontade de explicar. É como se eu estivesse entre dois mundos, mas os dois coexistem, eu sei e você sabe. (Pausa). Mas eu não tenho nenhuma vontade de representar, entende? Eu não posso ter. Não me importa o que as pessoas pensem. Eu não posso esquecer. É uma espécie de fidelidade que eu devo a ele.
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ARAP, Fauzi. Pano de boca. Texto mimeografado, s.d.
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CÉLIA CAMARGO SILVA (Célia Helena)

Nascimento: 1936, São Paulo, SP, Brasil. Casamento: Raul Cortez (divórcio): filha Lygia Cortez; Ruy Ohtake: filha Elisa. Falecimento: 29/03/1997, São Paulo. Atriz de cinema (estréia em "Fatalidade", 1953), teatro (sucesso nos anos 1960 e 1970) e TV (estréia na novela "O Décimo Mandamento", 1968); destaca-se em telenovelas da Rede Globo como "Brilhante" (1982), "Mandala" (1988), etc.; Prêmio Moliére de Atriz por "Pano de Boca" (1976).



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