sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Registro 328: Caça à Pedrinho

Visitando Cenadiária, Fanny Abramovich ficou perplexa por não encontrar nenhum texto de minha autoria sobre a proibição do Conselho Nacional de Educação ao livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato. Ela reclamou por e-mail e enviou-me um texto de Marisa Lajolo sobre a questão. Concordei com Fanny, uma lobatiana por excelência, uma encarnação de Emília entre nós. Por conta da minha desatenção, registro o que penso sobre o assunto.

É isso aí, meu camarada! Em nome do politicamente correto, atitude sustentada na hipocrisia, paraceristas resolveram censurar um dos livros de Monteiro Lobato, Caçadas de Pedrinho. Os tais zelosos censores prestaram um desserviço ao Ministério da Educação, pois o Conselho Nacional de Educação - CNE, acolheu a recomendação de não distribuição do livro para as bibliotecas do Brasil varonil. Alegam os pareceristas, com o aval do Conselho, que o livro tem conteúdo ofensivo aos negros, portanto veicula um conteúdo racista. Além disso, argumentam que os nossos professores não são competentes para lidar com o assunto junto aos seus alunos. Um absurdo atrás do outro e vamos em frente tendo que engolir mais uma do "festival de besteiras" que assola o país.

Lembro-me de ter lindo os livros para criança de Monteiro Lobato indicados e oferecidos por uma tia professora, que embora crítica de Lobato não proibiu que eu descobrisse as maravilhas de sua escrita, o jogo imaginativo e inventivo de suas narrativas, uma fabulação que me fazia preso às páginas de cada aventura. Após leituras tão agradáveis e educativas, sem a chatice, que muitas vezes envolve a educação, eu não me vi menosprezando negros, nem achando que eles são seres de segunda. Longe de mim. Em minha família e em minha casa sempre foram tratados como qualquer outra pessoa. Se eram amigos, recebiam o tratamento que se dispensa a amigos, se trabalhavam para nós, eram reconhecidos como trabalhadores e respeitados, assim como os brancos. Se eram desconhecidos, eram tratados educadamente.  Assim, não fui deformado pela escrita de Lobato nem por outra qualquer. Os livros foram e são aulas de prazer e me disseram da imensidão e do ínfimo que existe em mim, no outro e no mundo. Portanto,sinto-me confortável para dizer que tantos os pareceristas quanto os doutos do Conselho não estão certos ao censurar Caçadas de Pedrinho. Bola fora! Uma constante...

Ao 18 anos, passou pela porta de casa um vendedor de livros oferecendo a colação de Monteiro Lobato, com todos os livros encadernados em vermelho e com as primeiras ilustrações da obra. Para espanto do meu pai, que não entendia como um jovem na idade em  que eu estava tinha interesse por livros destinado às crianças, pedi que ele adquirisse a coleção. Com certa arrogância, natural em jovens que se acham sabedores de tudo, disse-lhe da importância de ter tais livros em casa. Mais ou menos convencido pelo filho que estudava em Salvador, ele comprou a caixa com todas as obras. Que alegria... e reli cada um durante os três meses de férias em Ipirá, sob o calor do verão, espichado em uma rede, ou deitado na esteira. Inesquecíveis  férias. Inesquecível Lobato. Ah, e naquele tempo, eu andava meio aborrecido com ele, por conta da crítica azeda que fez ao trabalho de Anita Malfati. Críticas que a minha professora de Português no Colégio Central não perdoava e destilava suas inteligentes farpas contra o escritor.

Essas são lembranças de um tempo não politicamente correto ou politicamente certo na correção de deixar que o outro pense por si e faça suas escolhas

Parece-me estranho e não me entra pela cabeça os argumentos dos pareceristas. Afirmam eles que Tia Nastácia é chamada de negra, bem como a África é mencionada como uma lugar de origem de animais ferozes. Não vejo aí nenhuma deformação, nem inverdade, nem preconceito. Tia Nastácia, uma grande e valorosa criação de Lobato, é negra. Preconceito seria chamá-la de branca, amarela, vermelha, na tentativa de dizer uma coisa por outra. Quanto à África ser um lugar de bichos ferozes, não vejo motivo para tanto alvoroço. Nas histórias que li passadas no Continente, o que me fascinava também era o fato de ele ter em suas florestas e savanas bichos que eu só conhecia de revista ou no cinema. E não são ferozes seus leões, tigre, panteras?

Na minha mente de criança, nunca associei animais ferozes da África com seus humanos habitantes. Nem chamei negros de urubu, macaco ou outra coisa qualquer. Nem matei passarinho, nem atirei o pau no gato. Não arreliei nem velho nem gordo. E embora sem entender os motivos da loucura nunca fiz pouco dos loucos que andavam pelas ruas da cidade em que passei minha infância. E não conclua pela minha inocência e pureza. Fiz as minhas maldades, tive os meus desejos inconfessos e fui assustado com as advertências e ameaças do fogo do Inferno. Lembro-me bem de ter perdido um carnaval inteirinho, castigado que fui por ter escorraçado Radar, o cachorro de uma tia que apareceu no meu caminho na hora errada. Mereci o castigo. Ele foi educativo, esclarecedor...

Na minha santa ingenuidade, penso que se há gente feroz, elas se encontram em qualquer lugar do planeta, nas Américas, Europa, África e Ásia.  

O patrulhamento dos pareceristas e do Conselho ignora algo elementar: o leitor, seja ele adulto ou criança, tem a capacidade de interpretar e sua interpretação passa por muitos níveis. É o que diz Marisa Lajolo em texto sobre o assunto:

"É um grande avanço nos estudos literários esta noção mais aberta do que se passa na cabeça do leitor quando seus olhos estão num livro. Ela se fundamenta no pressuposto segundo o qual, dependendo da vida que teve e que tem, daquilo em que acredita ou desacredita, da situação na qual lê o que lê, cada um entende uma história de um jeito.  Mas essa liberdade do leitor vive sofrendo atropelamentos. De vez em quando, educadores de todas as instâncias – da sala de aula ao Ministério de Educação -   manifestam desconfiança da capacidade de os leitores se posicionarem de forma correta  face ao que lêem."

Além disso desacreditam na capacidade do professorado. Se não confiam nos professores é porque a educação no país está abaixo de uma linha aceitável. Os professores frequentaram escolas e se não foram bem formados a culpa recai em quem? Aí, caímos num círculo vicioso. E parece que ninguém no Ministério nem no Conselho está interessado em reverter esse quadro, romper o círculo. Os pequenos avanços não minimizam a questão. Estudantes saem da escola sem ter aprendido nada ou quase nada.E sem nada saber não saberão de Lobato.

Sem essa de censurar o que cada um quer e deve ler. Onde está o direito de escolher? Onde está o direito de a criança entrar em contato com o mundo de Lobato e forma um espírito crítico? A tal vigilância  está dirigida para o lugar errado. Um ideia fora do lugar.

QUERO MAIS E MAIS LIVROS DE LOBATO E VOU COMPRAR ALGUNS EXEMPLARES DE CAÇADAS DE PEDRINHO PARA PRESENTEAR CRIANÇAS. ELAS SÃO MUITO ESPERTAS E SABERÃO APRECIAR AS AVENTURAS E NÃO CONFUNDIR ALHOS COM BUGALHOS.

Segue abaixo o texto de Marisa Lajolo.


Quem paga a música escolhe a dança ?

Marisa Lajolo
Prof. Titular (aposentada) da UNICAMP; Prof. da Universidade Presbiteriana Mackenzie;  Pequisadora Senior do CNPq.; Organizadora ( com João Luís Ceccantini)  do livro  de Monteiro Lobato livro a livro (obra infantil) , obra que recebeu o Prêmio Jabuti 2010 como melhor livro de Não Ficção.


“Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, está em pauta e é bom que esteja, pois é um livro maravilhoso.

Narra as aventuras da turma do sítio de Dona Benta primeiro às voltas com a bicharada da floresta próxima e, depois, com uma comissão do governo encarregada de caçar um rinoceronte fugido de um circo. Nos dois episódios prevalecem o respeito ao leitor, a visão crítica da realidade, o humor fino e inteligente.

Na primeira narrativa, a da caçada da onça, as armas das crianças são improvisadas e na hora agá não funcionam. É apenas graças à esperteza e inventividade dos meninos que eles conseguem matar a onça e arrastá-la até a casa do sítio. A morte da onça provoca revolta nos bichos da floresta e eles planejam vingança numa assembléia muito divertida : felinos ferozes invadem o sítio e –de novo- é apenas graças à inventividade e esperteza das crianças ( particularmente de Emília) que as pessoas escapam de virar comida de onça.

Na segunda narrativa, a fuga de um rinoceronte de um circo e seu refúgio no sítio de dona Benta leva para lá a Comissão que o governo encarregou de lidar com a questão. Os moradores do sítio desmascaram a corrupção e o corpo mole da comissão, aliam-se ao animal cioso da liberdade conquistada e espantam seus proprietários. E, batizado Quindim, o rinoceronte fica para sempre incorporado às aventuras dos picapauzinhos.

Estas histórias constituem o enredo do livro que parecer recente do Conselho Nacional de Educação (CNE), a partir de denúncia recebida, quer proibir de integrar acervos com os quais programas governamentais compram livros para bibliotecas escolares . O CNE acredita que o livro veicula conteúdo racista e preconceituoso e que os professores não têm competência para lidar com tais questões. Os argumentos que fundamentam as acusações de racismo e preconceito são expressões pelas quais Tia Nastácia é referida no livro, bem como a menção à África como lugar de origem de animais ferozes.

Sabe-se hoje que diferentes leitores interpretam um mesmo texto de maneiras diferentes. Uns podem morrer de medo de uma cena que outros acham engraçada. Alguns podem sentir-se profundamente tocados por passagens que deixam outros impassíveis. Para ficar num exemplo brasileiro já clássico, uns acham que Capitu ( D. Casmurro, Machado de Assis, 1900) traiu mesmo o marido, e outros acham que não traiu, que o adultério foi fruto da mente de Bentinho. Outros ainda acham que Bentinho é que namorou Escobar .. !

É um grande avanço nos estudos literários esta noção mais aberta do que se passa na cabeça do leitor quando seus olhos estão num livro. Ela se fundamenta no pressuposto segundo o qual, dependendo da vida que teve e que tem, daquilo em que acredita ou desacredita, da situação na qual lê o que lê, cada um entende uma história de um jeito. Mas essa liberdade do leitor vive sofrendo atropelamentos. De vez em quando, educadores de todas as instâncias – da sala de aula ao Ministério de Educação- manifestam desconfiança da capacidade de os leitores se posicionarem de forma correta face ao que lêem .

Infelizmente, estamos vivendo um desses momentos.

Como os antigos diziam que quem paga a música escolhe a dança, talvez se acredite hoje ser correto que quem paga o livro escolha a leitura que dele se vai fazer. A situação atual tem sua (triste) caricatura no lobo de Chapeuzinho Vermelho que não é mais abatido pelos caçadores, e pela dona Chica-ca que não mais atira um pau no gato-to. Muda-se o final da história e re-escreve-se a letra da música porque se acredita que leitores e ouvintes sairão dos livros e das canções abatendo lobos e caindo de pau em bichanos . Trata-se de uma idéia pobre, precária e incorreta que além de considerar as crianças como tontas, desconsidera a função simbólica da cultura. Para ficar em um exemplo clássico, a psicanálise e os estudos literários ensinam que a madrasta malvada de contos de fada não desenvolve hostilidade conta a nova mulher do papai, mas – ao contrário- pode ajudar a criança a não se sentir muito culpada nos momentos em que odeia a mamãe, verdadeira ou adotiva...

Não deixa de ser curioso notar que esta pasteurização pretendida para os livros infantis e juvenis coincide com o lamento geral – de novo, da sala de aula ao Ministério da Educação—pela precariedade da leitura praticada na sociedade brasileira. Mas, como quem tem caneta de assinar cheques e de encaminhar leis tem o poder de veto, ao invés de refletir e discutir, a autoridade veta . E veta porque, no melhor dos casos e muitas vezes com a melhor das intenções, estende suas reações a certos livros a um numeroso e anônimo universo de leitores . .

No caso deste veto a “Caçadas de Pedrinho” , a Conselheira Relatora Nilma Lino Gomes acolhe denúncia de Antonio Gomes da Costa Neto que entende como manifestação de preconceito e intolerância de maneira mais específica a personagem feminina e negra Tia Anastácia e as referências aos personagens animais tais como urubu, macaco e feras africanas ; (...) aponta menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano , que se repete em vários trechos do livro analisado e exige da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura.

Independentemente do imenso equívoco em que, de meu ponto de vista, incorrem o denunciante e o CNE que aprova por unanimidade o parecer da relatora, o episódio torna-se assustador pelo que endossa, anuncia e recomenda de patrulhamento da leitura na escola brasileira. A nota exigida transforma livros em produtos de botica, que devem circular acompanhados de bula com instruções de uso.

O que a nota exigida deve explicar ? o que significa esclarecer ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura ? A quem deve a editora encomendar a nota explicativa ? Qual seria o conteúdo da nota solicitada ? A nota deve fazer uma auto-crítica ( autoral, editorial ? ) , assumindo que o livro contém estereótipos ? a nota deve informar ao leitor que “Caçadas de Pedrinho” é um livro racista ? Quem decidirá se a nota explicativa cumpre efetivamente o esclarecimento exigido pelo MEC ?

As questões poderiam se multiplicar. Mas não vale a pena. O panorama que a multiplicação das questões delineia é por demais sinistro . Como fecho destas melancólicas maltraçadas aponte-se que qualquer nota no sentido solicitado – independente da denominação que venha a receber, do estilo em que seja redigida, e da autoria que assumir- será um desastre. Dará sinal verde para uma literatura autoritariamente auto-amordaçada. E este modelito da mordaça de agora talvez seja mais pernicioso do que a ostensiva queima de livros em praça pública, número medonho mas que de vez em quando entra em cartaz na história desta nossa Pátria amada idolatrada salve salve. E salve-se quem puder ... pois desta vez a censura não quer determinar apenas o que se pode ou não se pode ler, mas é mais sutil, determinando como se deve ler o que se lê !