sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Registro 118: Poesia de um amigo

Fragmentos de uma Vingança Conjugal

Rubem Rocha Filho

Diante do brócolis todo partidinho no prato, minha concentração búdica...

Vejo Wanda comendo sua banana.

- “Anti-cancerígeno” - eu explicara.

Ela mastigava o alimento e apaziguava a aflição pela saúde, pela imortalidade até.

Conseguiria driblar a doença que levara tantos na sua família?
Mas o câncer que acabou com a mãe percorreria outras teias de traição, de sonhos de amor carcomidos (Lizt distante ao piano) de um fiel orgulho espezinhado, fatalmente os lanhos na carne aberta – o despudor do adultério do marido revelado.
Se precipitou irreversível, algo como dois meses – veloz a flor nas entranhas – de quem já ultrapassara os 80 anos; foi enfraquecendo, sem sangue, sem estima.
No entanto, ainda esboçou a vingança: um encontro clandestino com o namorado da juventude.
A
velha confidente e dentista dos anos 40, se dispôs a agenciar a troca de carícias desajeitada, quase grotesca, sussurrada ao telefone, de sexualidade há muito extinta.
Primeiro a confeitaria em Copacabana; depois o apartamento de pesadas cortinas, à espera do inquilino, à meia luz.
Nada disso se cumpriu.
Ficou a imensa ausência, a decepção povoada de culpas, a ânsia de se aferrar a vida, nem que fosse num rastro de revanche, enrugada e seca, a linha dos lábios sempre trêmula, no dente o batom vermelho, a raiz branca do cabelo, as pontas dos dedos incapazes de aderir.

Boa Viagem, março 2007

domingo, 5 de agosto de 2007

Registro 117: Sobre não ter idéias

CARLOS HEITOR CONY
Idéia e memória

- Em "La Notte", um dos filmes emblemáticos de Michelangelo Antonioni, o escritor interpretado por Marcello Mastroianni, cobrado pela mulher (Jeanne Moreau), diz que não tem mais idéias, tem memórias. Ingmar Bergman, que morreu horas antes de Antonioni, admitia que toda a sua obra nascia de seu passado, notadamente de sua infância.

Aos dois cineastas, dos maiores de todos os tempos, podemos acrescentar um terceiro, Federico Fellini, que nunca teve uma idéia precisa de nada, nem sobre o cristianismo nem sobre o socialismo, mas não quebrou a casca onde guardaria para sempre o fruto de si mesmo -tal como a Capitu adulta que estava toda na menina que se apoderava do companheiro de infância.

Entrando no assunto: o cronista não tem culpa de Antonioni e Bergman terem morrido ao mesmo tempo, pautando involuntariamente centenas de reflexões feitas na mídia internacional. Autores defasados, com técnicas e preocupações que não mais pertencem a este mundo. Mas que ficarão intactos, suspensos no ar, como aquele quarto no beco que Manuel Bandeira evocou num de seus poemas.

Escrevi sobre Bergman na crônica anterior. Deveria escrever agora sobre Antonioni. Como o personagem de "La Notte", não tenho idéias, nem me interessa tê-las. Pessoas que me julgam bem informado querem saber minha opinião sobre o acidente com o Airbus, a culpa da pista, do equipamento, do piloto. Acontece que nem formei ainda um juízo sobre Febrônio, um tarado sexual dos anos 30. Quando fugiu da prisão obrigou todos os pais a trancarem seus filhos em casa, as escolas fecharam, a besta-fera solta na cidade. Bergman teria feito um belo filme sobre Febrônio. E Antonioni mostraria o vazio das ruas, as almas cheias de tédio -pior do que o medo.
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Publicado originalmente em Folha de S. Paulo, edição de 05 de agosto de 2007