sábado, 4 de fevereiro de 2012

Registro 388: "Roda Viva" proibida pela segunda vez




Cena de Roda Viva. O ator Rodrigo Santiago, caracterizado como Menino Jesus de Praga.

A polêmica em torno da proibição do texto teatral Roda Viva, por seu autor, tem gerado muito disse que disse. É certo que proibir um texto, principalmente sendo quem é o autor, Chico Buarque, é bem estranho. Primeiro, porque ele foi vítima da censura em várias ocasiões, quando vivíamos sob o tacão da ditadura civil-militar. Segundo, por ser ou ter sido um ícone da esquerda, a séria e a festiva, e ter defendido posições libertárias. Portanto, causa estranheza a proibição de encenação e reedição do texto.

O compositor-escritor alega que o tempo tornou mais evidente as deficiências do texto. Compreendemos, mas não aceitamos a proibição, da mesma forma como não aceitamos as proibições recentes de biografias, de reedições de livros, de exposições, de gravações de músicas e por aí vai. Mas estamos no Brasil, onde tudo pode. Parafraseando Otávio Mangabeira, pense numa coisa absurda, ela acontece no Brasil. A frase original referia-se ao Estado da Bahia, dita pelo seu governador.

Chico Buarque erra em proibir, mas acerta em dizer que seu texto apresenta deficiências. Quando da encenação de Roda Viva (1968), pela dupla José Celso Martinez Corrêa-Flávio Império, a crítica mais atenta já apontava as deficiências do texto. A potência do acontecimento, e que potência, estava na qualidade da dramaturgia cênica. A encenação transgressora, violenta e abusada, colocava no palco do Teatro Ruth Escobar - São Paulo,  a rebeldia espetacular já vista na montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, em 1967, quando Zé Celso marcou o início de uma das muitas guinadas do Grupo Oficina. Em Roda Viva, Zé Celso extrapola e amplia a irreverência. 

Zé Celso parece não estar convencido das deficiências da peça, talvez tocado ainda pela força de sua concepção, que contou com a cabeça criativa e instigante de Flávio Império. Ou esteja ainda impregnado pelos acontecimentos que se desdobraram em torno do espetáculo: a polêmica, as acusações de imoralidade vindas de deputados paulistas, a invasão do Teatro Ruth Escobar pelo Comando de Caça aos Comunistas, a repetida agressão em Porto Alegre e, por fim, a proibição da peça em todo território nacional, dois meses antes da decretação do Ato Institucional Número 5,  o famigerado AI-5, em 13 de dezembro de 1968, sexta-feira.

Se desagradou a direita e os conservadores, gerando críticas e atos violentos, como o espancamento dos atores Rodrigo Santiago, Marília Pera, Zezé Mota, entre outros, deixou escandalizada a esquerda ortodoxa, visto que o espetáculo em cartaz não se coadunava com a gramática do teatro de protesto. A encenação de Zé Celso e Flávio Império rompia com a cartilha do bom mocismo, instigando a plateia a sair do comodismo e partir para a ação. Um dos meios utilizados pelo encenador para fazer os espectadores participativos era o panfleto jogado para a platéia, com o seguinte texto:

 "TODOS AO PALCO!!! Abaixo o conformismo e a burrice - PEQUENOS BURGUESES! Tire a bunda da cadeira e faça uma guerrilha teatral, já que você não tem peito de fazer uma real, PÔRRA!!!" 

A famosa cena do fígado ensanguentado arremessado sobre a platéia, mais a referência iconoclasta aos símbolos da Igreja Católica aumentava o poder subversivo do espetáculo e agia de forma a colocar em primeiro plano o que o texto dizia de uma forma muito menos selvagem e transgressora. A crítica ao sistema, ao show-business e à massificação decorrente da sociedade do espetáculo e da cultura de massas feita pelo autor não tinha a força vinda do palco. As suas imagens superavam o que a "pecinha ginasiana" (1) - no dizer do diretor e do cenógrafo - expunha comedidamente em seu engajamento.

A atualidade do texto Roda Viva não pode ser pensada de maneira pragmática. Ao ser encenado, o texto de Chico Buarque tomou uma dimensão que não tinha, embora tocasse num assunto muito pertinente, a construção de um ídolo da música popular, sua devoração pelos fãs e substituição por outro. A gramática do espetáculo fez com que o teatro brasileiro fosse arejado por um sopro violento, denominado negativamente por Anatol Rosenfeld com a "estética da agressão". Ainda que as avaliações tenham sido extremadas, tanto do ponto de vista negativo quanto do positivo, é certo que as ideias do encenador e do cenógrafo-figurinista tinham a capacidade de se encontrar com o seu presente. No momento, para que se tenha uma medida do seu poder é preciso que o texto volte a circular por dois meios, o livro e o palco. Atualizada, a peça Roda Viva terá sentido se as suas ideias figurarem no agora a possibilidade de mudança. Para tanto é preciso que esteja liberada.

Esperamos que a proibição seja revista e que possamos contar com uma reedição do texto. Li a primeira e única edição pela Editora Sabiá. Já não lembro muito bem do texto em suas particularidades, mas ainda registro na memória um certo desencanto quando da leitura. Não vi Roda Viva em cena. Dez anos depois de sua estreia, estive próximo de Flávio Império e ouvi-lo contar sobre o processo de feitura e sobre o resultado cênico aumentou a minha curiosidade pela encenação e também o meu desencanto pelo texto. 

Roda Viva é parte da história do teatro brasileiro e tal fato não pode ser negado. Roda Viva é parte da minha história de vida... Em dezembro de 1968, ganhei de Rubem Rocha Filho o LP de Chico Buarque no qual ele canta Sem Fantasia com sua irmã Cristina. A canção fazia parte do espetáculo. 


Liberdade para Roda Viva


(1) Cf. o texto de Mariângela Alves de Lima Flávio Império e a Cenografia do Teatro Brasileiro publicado em Flávio Império (EDUSP, 1999), organizado por Renina Katz e Amélia Hamburguer.