sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Registro 369: A ausência que seremos


Muitos livros foram escritos tendo como figura central o pai. Lembro-me de Carta a meu pai de Kafka,  e de como este livro terrível me marcou. Recordo-me de a Ilha de Arturo, de Elza Morandi, que se não tem o pai como personagem central, mostra-o como uma figura de suma importância na formação de Arturo. A figura paterna assoma nos livros de Dostoievski e em tantas obras que nos mostram de maneira positiva ou negativa de que maneira o pai se mostra para a família, sobretudo para os filhos. Acabo de ler um livro inesquecível, cujo título nos inquieta: A ausência que seremos.

O título são versos atribuídos a Jorge Luis Borges que foram encontrados no bolso do médico sanitarista e defensor dos Direitos Humanos Héctor Abad Gómez, assassinado na Colômbia na década de 80. Quem escreve é seu filho Héctor Abad, que nos oferece a intimidade de sua memória para contar em primeiro plano a sua relação com este pai, que parece não existir de tão grandioso que é. Mas não se trata de hagiologia, e sim do retrato de um homem que soube colocar no mesmo plano o seu amor pela família, em especial pelo filho, e o dever para com os humilhados e ofendidos do seu país, sendo este último o motivo de seu assassinato.

Vale à pena conferir o livro de Héctor Abad e mergulhar fundo em suas páginas. Primeiro, porque seremos tocados pelo encantamento que este pai biografado provoca em seu filho criança. E o que salta destas páginas é o amor incondicional e envolvente marcando a infância do autor admirador da figura heróica, afetiva e calorosa do pai. Ao mesmo tempo, acompanhamos os conflitos vividos pelo adolescente, que se vê sufocado por esta figura superprotetora que não esconde seu afeto distribuído em grandes doses entre a esposa, as seis filhas e o filho querido. Por fim, veremos o adulto que se depara com um pai combatente, interessado, herói e mártir.

Nos registros do filho, os sentimentos são rememorados, e por eles nós percebemos as marcas do afeto guiando-lhe os passos, fazendo-o  crescer. Vemos também o estrago que a violência perpetrada pelos paramilitares acobertados pelas autoridades colombianas trouxe à família e ao país, visto que  Abad Gómez não foi o único assassinado naquele período penumbroso da história da Colômbia.  No concerto de vozes (mulher, filhas, amigos e inimigos)  orquestrado por Héctor Abad, surge o retrato de um médico humanista em toda a sua complexidade. Sua história contada por alguém tão íntimo nos comove, pois não é um discurso panfletário nem sectário, mas o retrato de uma vida civilizada em meio à barbárie que acometeu e acomete a América Latina com suas veias abertas, seus barroquismos, suas mazelas e suas loucas esperanças.  Memória e história a nos envolver.

Algumas horas dedicadas  ao livro A ausência que seremos nos fazem entrar em contato com a narrativa salvadora de um passado nos termos de Walter Benjamin. As preocupações do pensador judeu-alemão sobre o ato de contar história, sua serventia e importância, soam nas páginas do livro de Héctor Abad. A narrativa adiada por muito tempo, por conta da violência que se abateu sobre sua família, é prova cabal da afasia, ou seja, a impossibilidade de narrar. Mas o tempo decorrido entre os acontecimentos e o ato rememorativo é demonstração de que o narrador destravou-se. A escrita surge plena, pois o conteúdo recalcado retorna iluminado pela necessidade salvadora. A palavra que corporifica a narrativa assume então  a dimensão da constituição do sujeito. Portanto, não há mais silêncio, nem esquecimento.

As lutas encetadas pelo sujeito na tentativa de não deixar o passado esquecido nos leva a pensar na importância da reminiscência,  para que se possa, de certa maneira, vencer a morte. Nada se perde, se assim queremos.  O ato de lembrar, tão presente na história e na literatura, cuida para que nada nos escape. (GAGNEBIN, 2004) Ao urdir a trama de sua narrativa, Abad fala de sua experiência após um tempo em que, mudo, não conseguiu dar corpo à narrativa que nos dá.  Assim, vencendo o trauma ou livrando-se dele pelo ato rememorador, o autor compartilha conosco os vestígios deixados por seu pai. Emerge da guerra suja da Colômbia um sujeito que não emudece e faz valer as suas referências e de sua coletividade. A ausência que seremos é denúncia, mas é, sobretudo, a demonstração da grandeza do amor voltado para o individuo e para a coletividade.

REFERÊNCIAS

ABAS, Héctor. A ausência que seremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2004.