quinta-feira, 14 de março de 2013

Registro 423: Pactos


O USO RETO DO CORPO


Contardo Calligaris


Em tese, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) luta para que cada cidadão e cada grupo de cidadãos possam exercer plenamente sua diferença (claro, à condição de que essa diferença não atrapalhe a liberdade dos outros).
Parece lógico que a comissão seja presidida por um espírito libertário. Isso não exclui pastores, padres, imames e moralistas rigorosos, à condição de que, por cultura, experiência de vida e qualidades morais excepcionais, eles saibam colocar a liberdade dos outros antes de suas próprias convicções.
Esse não parece ser o caso do deputado Marco Feliciano (PSC-SP), pastor evangélico, que acaba de ser eleito presidente da CDHM. Na notável série de suas declarações boçais citadas nestes dias, minhas preferidas são: 1) "Os africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato."; e 2) "O reto não foi feito para ser penetrado - não sou contra o homossexual, sou contra o ato homossexual."
1) No texto bíblico que eu li, Cam zombou do pai Noé, o qual condenou Cam e sua descendência à servidão. Mais tarde, os defensores da escravatura decidiram que Cam era o antepassado dos africanos e se serviram dessa história para justificar a posse e o comércio de escravos.
Terminar a evocação de um relato bíblico com um "isso é fato" já é ingênuo. Terminar da mesma forma a revisão do relato bíblico proposta pelos defensores da escravatura é para além de ridículo.
Feliciano, formado em teologia, talvez leia a Bíblia no grego da Septuaginta e no hebraico do texto massorético. Eu me viro em grego antigo, mas, por hábito, leio a Bíblia no latim de São Jerônimo ou no inglês do rei James. Será que ele tem acesso a fontes que eu ignoro?
2) Cada deputado recebe uma verba considerável para que possa opinar com conhecimento de causa. Mas Feliciano parece não saber que uma porcentagem substancial de homossexuais não gosta de sexo anal, enquanto, inversamente, o sexo anal faz parte das fantasias e das práticas sexuais de muitos homens e mulheres heterossexuais. Isso, sem entrar no vasto capítulo das penetrações (fantasiadas ou reais, solitárias ou não) com objetos inanimados ou outras partes do corpo.
O deputado Feliciano poderia se corrigir, generalizando: "hétero ou homo, tanto faz: o reto não foi feito para ser penetrado". Eu entenderia melhor.
Mesmo assim, fico curioso. Será que, para o deputado Feliciano, as mãos foram feitas para carícias, solitárias ou não, recíprocas ou não? E como fica a boca? Sem pensar muito longe, será que ela foi feita para ser invadida pela língua do parceiro ou da parceira?
O deputado Feliciano poderia se entrincheirar atrás da ideia de que tudo o que não serve para a reprodução deveria ser banido do sexo. É uma opinião difícil de ser sustentada, pois, justamente, somos os únicos mamíferos cujo desejo sexual não depende nem um pouco da fertilidade da fêmea e, portanto, da reprodução. Mas é uma opinião respeitável e não incompatível com a presidência da CDHM, à condição de ser, para o próprio Feliciano, apenas uma opinião.
Em outras palavras, o deputado Feliciano tem o direito de ser impenetrável, para maior glória divina. Que diga, então, que SEU reto não foi feito para ser penetrado, e ninguém protestará.
Imaginemos que eu faça parte de um culto satânico que só permite atos sexuais que desprezem a finalidade reprodutiva, e isso justamente para contrariar um eventual plano divino. Ou imaginemos que eu pense, simplesmente, que o melhor uso do meu corpo é o prazer e o gozo.
Será que Marco Feliciano, presidente da CDHM, vai defender meus direitos? Se a resposta não for um sim retumbante, a CDHM deve trocar de presidente.
Agora, quem colocou o deputado Feliciano na presidência da CDHM? Seis deputados se retiraram assim que Feliciano foi eleito; entre eles, Domingos Dutra (PT), Luiza Erundina (PSB) e Jean Wyllys (PSOL). Mas, apesar do gesto dos seis, quem entregou a comissão ao PSC e a Feliciano foi a base aliada do governo.
A presidente Dilma disse que, nas eleições, "a gente faz o diabo" - ou seja, qualquer aliança vale para ganhar. De fato, nas eleições, a maioria de nossos políticos supostamente laicos e progressistas não fazem o diabo, fazem o santinho. Para conquistar votos fundamentalistas, beijam anéis e frequentam cultos; no fim, eles recompensam, de alguma forma. Por exemplo, com comissões. (Folha de S. Paulo, 14.03.2013)


*****

Se Stálin fez pacto com Hitler, por que o PT não faria  alianças, diga-se espúrias, para se manter no poder? A fala da presidente reflete muito bem o que vem ocorrendo no Brasil. E as consequências? É enojante tal atitude. Ela mostra bem a cara desta "esquerda" que aí está. E nós, para onde vamos? Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Um partido que se vende ao diabo, ou faz o diabo para ganhar eleição, não pode ser confiável, pois muda ao sabor do vento. É lamentável. O texto de Contardo Calligaris é lúcido na sua argumentação. É pena seu texto ser lido por poucos. Chega de os "fins justificam os meios", até porque os fins tão apregoados pelo partido e sua militância rebanho não estão sendo alcançados. É fácil bancar a vestal quando se é oposição. Depois é chafurdar.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Registro 422 Para ser lido com atenção


OS DOIS TEXTOS COPIADOS DA EDIÇÃO DE HOJE, 8 DE MARÇO, DIA INTERNACIONAL DA MULHER, VIVA TODAS ELAS, DO JORNAL FOLHA DE S. PAULO MERECEM A NOSSA ATENÇÃO. ELES FORAM ESCRITOS POR MULHERES E O SEGUNDO É SOBRE UMA MULHER DE FIBRA.

O PRIMEIRO É O RETRATO DO NOSSO ATRASO.

ELES DEVEM SER LIDOS UM APÓS O OUTRO. OS TEXTOS GUARDAM PROXIMIDADE EMOCIONANTE PELA LUCIDEZ, PELA CONTUNDÊNCIA E PELA OPORTUNIDADE DE CONFRONTAR QUESTÕES TÃO CONTRADITÓRIAS NESTE PAÍS QUE AVANÇA DOIS PASSOS E RECUA QUATRO.

FICO PENSANDO NAQUELES QUE QUEREM REGULAR A ATIVIDADE DA IMPRENSA NO BRASIL. NÃO FOSSE A LIBERDADE DE IMPRENSA, NÓS NÃO TERÍAMOS OPORTUNIDADE DE TOMAR CONHECIMENTO DAS BARBARIDADES E DAS GRANDEZAS QUE ACONTECEM COTIDIANAMENTE NO PAÍS  



CONTRA AS RAPOSAS, UNI-VOS!

Eliane Cantanhêde

BRASÍLIA - O Congresso ultrapassou todos os limites com a indicação e eleição do deputado federal e pastor Marco Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (atenção ao "minorias") da Câmara. A gente acha que já viu tudo, mas...

Essa história tem um enredo. O PT controla tradicionalmente a comissão, até porque o tema tem muito a ver com a história do partido, mas optou dessa vez por três comissões mais retumbantes. Junto com o PMDB, jogou a de Direitos Humanos no colo de aliados. E justamente no do Partido Social Cristão (PSC).

Boa coisa não ia dar, mas, como tudo que é ruim sempre pode piorar (diferentemente da máxima do também deputado Tiririca), a bancada do PSC indicou e a comissão elegeu o pastor Feliciano, que está no primeiro mandato, que se diz formado em teologia, com mestrado em teologia e doutorado em divindade, e que deixou um rastro racista e homofóbico nas redes sociais.

Pelo Twitter, tascou que "africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé" e que "a podridão dos sentimentos dos homoafetivos leva ao ódio, ao crime, à rejeição". Por mais que explique, não justifica.

Pensar e acreditar em coisas assim já é um absurdo inacreditável, além de inaceitável, mas escrever e divulgar isso é um verdadeiro escândalo. Mais absurdo, mais inacreditável, mais inaceitável e mais escandaloso ainda é o sujeito pensar, escrever e acabar presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.

Câmara e Senado, aliás, estão virando um zoológico de raposas tomando conta de galinheiros. Processados têm assento nos Conselhos de Ética, produtores rurais presidem as Comissões de Meio Ambiente e condenados pelo Supremo integram as de Constituição e Justiça.

Mas, enfim, depois que um senador renuncia à presidência do Senado, volta e é eleito novamente para o cargo, o que mais se poderia esperar?

*********************************************************************************

TEXTO DE ELEONORA DE LUCENA SOBRE MARGARIDA GENEVOIS

Quando começou a trabalhar na Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, em 1972, Margarida Genevois falou para a família e amigos de casos de tortura e de desaparecidos da ditadura. Encontrou desinformação e desconfiança.

"Eu contava e ninguém acreditava, diziam que era imaginação. Até meu marido acreditava meio desconfiado", relembra às vésperas de fazer 90 anos: "Tomei conhecimento das coisas horríveis que se passavam nas prisões, das barbaridades. Mas a classe média é meio protegida das desgraças da sociedade".

Em seu apartamento em São Paulo, onde mora só, ela recorda que a comissão "era um dos poucos lugares que apoiavam os perseguidos. Eu recebia pessoas que estavam desesperadas, muitas tinham saído de prisões e estavam profundamente marcadas por aquilo tudo. É horrível perder um pai, um irmão que desapareceu feito fumaça no ar".

Da Cúria, as pessoas eram encaminhadas a advogados, médicos, psiquiatras: "Havia médicos que não atendiam. Mas alguns foram formidáveis, arriscaram a carreira. O tempo era duro, mas sempre tinha alguém que dava ajuda por debaixo do pano. Ou auxiliava a pessoa a deixar o país. Muitos não podiam ficar porque seriam mortos".

No início dos anos 1970, a ditadura mostrava sua face mais brutal. Foi quando d. Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, organizou a Comissão de Justiça e Paz, que acolhia opositores do regime, denunciava torturas e buscava por desaparecidos.

Margarida trabalhou com Arns por 25 anos, presidindo a comissão por três vezes. "O bem que d. Paulo fez não é bastante reconhecido. Quem trabalha com ele cresce."

E como ela foi parar na Cúria? "Eu fazia parte da Ação Católica. Dom Paulo formou a comissão e só tinha homem. Mas, pelo estatuto, tinha que ter uma mulher", recorda.

Indicada, ela conta que o trabalho aumentou quando ditaduras se implantaram no Chile, Argentina e Uruguai. Cidadãos desses países pediam ajuda à comissão. "A Cúria ficava cheia de gente. Sabiam que d. Paulo acolhia. Precisávamos arranjar roupa, lugar para dormir, trabalho, apoio moral. Estavam em péssimo estado, muitos só com a roupa do corpo", relata.

Atuando como embaixadora da comissão, todo ano ia à Europa obter dinheiro para o trabalho junto a ONGs ligadas à igreja: "Eu ia à França, Alemanha, Holanda. D. Paulo era muito cotado por lá. Todo mundo sabia que ele era um cardeal aberto, progressista. Viajava com uma carta dele e era bem recebida".

O marido Lucien se preocupava: "Ele vivia com medo, dizia que eu iria ser presa. Mas me dava total liberdade. A maior parte das coisas que eu fazia ele nem sabia".

Lucien, francês, foi diretor da Rhodia. Eles se conheceram numa excursão de trem a Minas. Ficaram 35 anos juntos (ele morreu em 1986). Logo após o casamento (1944), foram morar em Campinas.

Lá a multinacional francesa montou uma usina de cana de açúcar. Em plena guerra, ela precisava de álcool que não podia ser transportado por navio do Nordeste por causa do perigo alemão.

Na fazenda moravam 2.500 pessoas. Margarida notou que a mortalidade infantil era alta: "Os colonos eram paupérrimos. O médico dizia: não tem doença, é fome. As mães não sabiam cuidar das crianças. Depois do parto colocavam teias de aranha ou excremento de vaca nos curativos. O tétano vinha em dias".

Para mudar essa situação, ela criou um curso de puericultura, uma pequena creche (os berços eram feitos com caixas de cebola pintadas de azul) e fez um jornal para as mulheres. Ensinou o que aprendera no curso de enfermeira de guerra: "Vi na fazenda que não adianta dar as coisas -tem que educar".

A iniciativa foi um sucesso, reduziu as mortes de crianças. É desse tempo de fazenda, em que viveu 22 anos, que Margarida tem uma das recordações mais emocionantes: "Chegou lá no posto de puericultura um rapaz com um recém-nascido moribundo, olhos fundos, sem respirar direito. Havia uma tempestade e estávamos completamente isolados, a estrada interditada. Nem se podia telefonar. Tratei o bebê do meu jeito, fiz tudo que sabia, dei injeção. No dia seguinte a criança não tinha morrido. Levei-a ao pediatra de minhas filhas e ele me disse: 'A senhora salvou essa criança'. Isso não tem preço. Foi um ponto alto na minha vida".

O marido se aposentou e a família (quatro filhos) veio para São Paulo. Foi quando entrou na Comissão de Justiça e Paz. Na sala, Margarida mostra fotos em passeatas, congressos, visitas ao Carandiru, Araguaia, Serra Pelada.

De uma família de notáveis advogados, Margarida Bulhões Pedreira Genevois nasceu no Rio em 10 de março de 1923: "Minha mãe achava que moça de família não devia ir para a faculdade". Na juventude fez biblioteconomia, estudou literatura francesa. Aos 45 anos foi aluna de Fernando Henrique Cardoso no curso de sociologia e política.

Quem mais sofre com a falta de direitos humanos? "Os pobres têm mais necessidades, estão mais esmagados pela injustiça. Você percebe isso na rua. Alguns quase pisam em cima, têm desprezo pela pessoa. É cada um por si e os outros que se danem. Precisamos mudar essa atitude."

Margarida diz que na classe média há muito "desprezo pelo mais pobre". A relação patroa-empregada é um exemplo. Em algumas partes do país, ainda há o pagamento de trabalho por comida: "Não respeitam o salário mínimo, o horário de trabalho".

Qual é o segredo para estar tão bem aos 90? "Trabalho muito [como voluntária em ONGs de direitos humanos] e faço o que eu gosto. Também me cuido. Faço ginástica, senão os ossos enferrujam."

quarta-feira, 6 de março de 2013

Registro 421: Texto radical


O TEXTO COPIADO E COLADO SAIU NA FOLHA DE S. PAULO, EDIÇÃO DE HOJE, 6 DE MARÇO DE 2013.  VISANDO O DESTAQUE QUE O TEXTO MERECE, ALTEREI somente O TIPO DA LETRA. 

Não tenho NADA CONTRA o exposto


JEAN WYLLYS

O ASSUNTO É COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS


Cinismo cruel


Tento representar aqueles que sempre receberam mais insultos e porradas que direitos e estima! Saibam que não estão sozinhos! Luta que segue!


Graças ao jogo de interesses entre os partidos da base aliada, é quase certo que o pastor e deputado Marco Feliciano presidirá a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.


Esse fato não é escandaloso -e eu não me oponho a ele- pelo simples fato de ele ser pastor. Se o deputado Marco Feliciano fosse um pastor identificado com a garantia dos direitos humanos e da dignidade das minorias estigmatizadas, não haveria problema algum e eu não faria qualquer oposição.

Acontece que o deputado Marco Feliciano é um inimigo público e declarado de minorias estigmatizadas e tem um discurso público que estimula a violação da dignidade humana desses grupos.

Como pode presidir uma comissão de direitos humanos e minorias um deputado que disse que o problema da África negra é "espiritual" porque "os africanos descendem de um ancestral amaldiçoado por Noé", revivendo uma interpretação distorcida e racista da Bíblia, que já foi usada no passado para justificar a escravidão dos negros?

Como pode presidir uma comissão de direitos humanos e minorias um deputado que se referiu à Aids como "o câncer gay"? Um deputado que defende um projeto de lei para obrigar o Conselho Federal de Psicologia a aceitar supostas "terapias de reversão da homossexualidade" anticientíficas e baseadas em preconceitos.

Um deputado que quer criminalizar o povo de terreiro e enviar pais e mães de santo à cadeia por rituais religiosos que estão presentes nos mesmos capítulos da Bíblia que ele usa para injuriar os homossexuais? Ele lê a Bíblia com um olho só. Um deputado que apresentou um projeto para anular diversas (boas) decisões do Supremo Tribunal Federal, entre elas a sentença que reconhece as uniões homoafetivas como entidades familiares.

Na verdade, para ser justo, o acordo realizado para dar a presidência da CDHM ao PSC, com ou sem Marco Feliciano, já era um grave problema. Trata-se de um partido que fez campanha definindo a família de uma maneira que exclui não só gays e lésbicas, como também as famílias monoparentais, as com filhos adotivos e tantas outras. Trata-se de um partido que defende posições fundamentalistas que vão contra os direitos de muitas das minorias que essa comissão deve proteger.

Eu me formei num cristianismo que acolhe os diferentes, respeitando sua dignidade. Eu me apaixonei na juventude por esse cristianismo que deu origem à Teologia da Libertação, que participou da luta contra a ditadura e que nos deu grandes referências.

O PSC, lamentavelmente, não tem nada a ver com isso. E Marco Feliciano menos ainda! Que ele seja o novo presidente da comissão é uma contradição: é como colocar à frente das políticas contra a violência de gênero um cara que bate na mulher.

É isso que milhares de brasileiras e brasileiros estão sentido nesse momento: que a Câmara bateu neles. Em nós -confesso que eu também senti. Às vezes, me pergunto o que estou fazendo aqui. Mas depois vejo a mobilização de milhares de pessoas para impedir essa loucura e penso: é isso que estou fazendo, tentando representar aqueles que, como eu, sempre receberam mais insultos e porradas que direitos e estima! Saibam que não estão sozinhos! Luta que segue!