quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Registro 227: Para todos... 2009

RECEITA DE ANO NOVO

Carlos Drummond de Andrade

Para você ganhar belíssimo Ano Novo...

Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las
na Gaveta.

Não precisa chorar de arrependimento
pelas besteiras consumadas nem
parvamente acreditar que por decreto

da esperança a partir de Janeiro
as coisas mudem e seja claridade,
recompensa, justiça entre os homens

e as nações, liberdade com cheiro e
gosto de pão matinal, direitos respeitados,
começando pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um ano-novo que mereça
este nome, você, meu caro, tem de
merecê-lo, tem de fazê-lo novo,

Eu sei que não é fácil mas tente,
experimente, consciente.

É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Registro 226: Retirado da gaveta

A CENA PARA ALÉM DOS CONCEITOS
TEATRO DRAMÁTICO E PÓS-DRAMÁTICO

Foi puro prazer assistir aos dois espetáculos apresentados pelo grupo CLOWNS DE SHAKESPEARE, do Rio Grande do Norte, no Festival Latino Americano de Teatro da Bahia, acontecimento artístico-cultural que se deu na primeira quinzena de setembro em Salvador, evento realizado por Oco Teatro Laboratório.

O grupo potiguar trouxe dois espetáculos para o Festival. Fábulas, uma especial adaptação para o palco das fábulas de Esopo e La Fontaine, selecionadas por Monteiro Lobato. Os Clows Marco França, Nara Kelly e Rogério Ferraz, dirigidos por Fernando Yamamoto, encarregam-se com grande maestria dos diversos personagens (animais), sem que precisem utilizar de disfarces ou figurinos ilustrativos para presentificá-los na cena. Espetáculo destinado às crianças, não se deixa prender na classificação caduca de teatro infantil.

O segundo espetáculo, a encenação de Muito Barulho Por Quase Nada, de W. Shakespeare, comprova mais uma vez a qualidade do grupo. Tanto um trabalho quanto o outro são pistas para uma dimensão da cena teatral brasileira atual. Apreciar as duas montagens é perceber o diálogo entre o regional, o nacional e as pontes lançadas para fora do nosso quintal. Por essas vias de mão dupla correm idéias e práticas vivificadoras.

Leitura cênica muito oportuna, os dois espetáculos demonstram a qualidade do teatro fora dos eixos – como sugere Cleise Mendes –, eixos compreendidos aqui como territórios hegemônicos do fazer teatral no Brasil, lugares por onde passa uma suposta supremacia da invenção e qualidade da produção cênica. Essa suposta superioridade do eixo Rio/São Paulo é quantitativa, não qualitativa, como demonstra as duas encenações aplaudidas longamente pela platéia, gratificada pela engenhosidade das concepções cênicas e, sobretudo, pela presença dos atores e atrizes.

Os espetáculos criados em Natal são comprovadamente realizações estéticas bem acabadas, produzidas fora do circuito do teatro profissional dos centros economicamente hegemônicos do país, mas ainda assim altamente profissionais.

É certo que identificamos nos dois espetáculos elementos teatrais colhidos aqui e ali, mas trabalhados de forma criativa pelos integrantes dessa trupe vivaz e comunicativa. No entanto, a essência do seu trabalho indica um conhecimento de suas raízes, da tradição e do “novo”, tomados de maneira consciente e reelaborados no palco, de forma que as encenações vistas no espaço do Teatro Vila Velha cumprem os seus propósitos diante de um público cativado, não pelas facilidades e modismos, mas por perceber a somatória de informações que o teatro sem fronteiras mostra.

O diálogo que se dá entre o clássico e o popular, nos variados gêneros incluídos nesses universos, tomam forma na maneira como as fábulas de Esopo e La Fontaine são transpostas para o palco, na abordagem que se dá ao texto de Shakespeare, nas interpretações sob multíplice registros, no intenso lirismo e no domínio dos códigos que regem o teatro, sem que se dê o aprisionamento aos ditames de uma cartilha. Juntam-se a esses elementos os figurinos precisos, bem idealizados e confeccionados, sem preocupação realista, histórica ou arqueológica. Ainda que em suas linhas se encontrem resquícios dos excessos deslumbrantes do barroco e das indumentárias características de certos folguedos populares, a concepção não trilha o caminho da verossimilhança. Nota-se em seus traços a influência do desenho de Gabriel Vilela, sem que se note cópia, mas releitura de uma estética marcadamente brasileira. As indumentárias são confeccionadas em tons claros, uma opção que faz ressaltar o uso das cores quentes a animar a palheta em que predomina o branco.

Com relação ao tratamento dado ao texto, comprova-se a sua força e sua eficácia enquanto signo no interior de outros signos, os da representação. Essa comunhão entre a palavra e o gesto, entre a palavra, a luz, os figurinos e o espaço cenográfico, mostra-se bem articulada por Fernando Yamamoto, em Fábula, e por ele e Eduardo Moreira, em Muito Barulho Por Quase Nada. Suas opções geram significados e sentidos no interior do palco e da platéia, frutos de uma pesquisa para encontrar modos de dizer e se fazer compreender, uma das finalidades do teatro em sua constante re-invenção estética e cultural.

Se a montagem da comédia de Shakespeare é relevante no sentido de confirmar a sua indiscutível feitura para o palco, a encenação de textos não dramáticos, como as fábulas, autoriza a afirmativa de que o palco está aberto para variadas experiências sem que uma anule a outra. Ver as encenações realizadas pelos Clowns de Shakespeare é apreciar um resultado profícuo do teatro construído sobre a emancipação dos seus elementos, combinados de maneira que se imbriquem e se mantenham também visíveis em sua unicidade. Da mesma forma, percebe-se na cena os hibridismos, atestados de que o pensar-fazer teatro segue por veredas às vezes planas e às vezes tortas, mas sempre surpreendentes.

A vitalidade das montagens em pauta e de outras que estão sendo realizadas, tanto em Salvador quanto em outras praças, pode colocar em discussão questões relativas às hierarquias e seus rompimentos na cena. Por essa via, defende-se o princípio do não regulamento estético da cena, evitando a dicotomia entre os conceitos teatro dramático ou pós-dramático para atestar ou não a sua qualidade e atualidade de comunicação. Parece-me que essa oposição pretende considerar o teatro dramático tendencialmente conservador e o pós-dramático como o top de linha. Portanto, os espetáculos fora dessa tendência estariam condenados à obliqüidade do olhar.

É certo que o teatro mudou. E seus contornos ainda difusos não podem ser amarrados em camisas-de-força, visto que as antinomias ainda se fazem ver no terreno prescritivo que envolve as duas tendências, ainda que, historicamente, o teatro dramático apresente uma somatória de questões já absorvidas pela cena. Por outro lado, a historicidade não esgotou o potencial inventivo do teatro dramático, ainda que a cena a partir dos anos setenta tenha desconstruído o fabular, mas não a ação dramática, essência do teatro a alimentar de poesia o palco aberto e os espectadores ávidos de emoções estéticas ou de outra natureza. Não me refiro aqui ao “teatro de distração”, aquele preocupado apenas com o entretenimento.

A crise da dramaturgia, e não um mero acomodamento, prefigura novos experimentos e novos procedimentos cênicos revitalizadores da prática teatral, fato confirmado pelas diversas encenações postas em movimento no palco do Teatro Vila Velha. Os aspectos expressivos que reverberam nos dois espetáculos motivadores dessa reflexão, já que não nos foi possível ver a totalidade do programa ofertado, potencializam as soluções encontradas pela via processual que a pesquisa requer. Esse caminho revela-se na cena e faz com que os significantes tornem-se presentes, conformando caráter, ilusão e representação para além do mimético, quando entendido como cópia, rebaixamento da mímesis, o que não é o caso, visto que a minha compreensão de mímesis passa por outro filtro, o aristotélico e também o benjaminiano. Para os interessados, recomenda-se o texto de Jeanne Marie Gagnebin, Do Conceito de Mímesis no Pensamento de Adorno e Benjamin, em Sete Aulas Sobre Linguagem, Memória e História (Imago, 1997, p. 81-104)

Uma postura menos triunfalista com relação ao pós-dramático e menos finca-pé no teatro dramático nos salvará dos hermetismos que rondam a cena, constituindo-a de produtos que estão “mais para gato do que para lebre”. Não é o caso, em se tratando dos espetáculos comentados.

A proposta formal de a Fábula e de Muito Barulho Por Quase Nada se constitui de invenção alicerçada por elementos reconhecidos pelos espectadores, sem que esse reconhecer implique no fechamento das encenações em uma fórmula gasta pela intromissão dos esquemas midiáticos. A tendência pós-moderna de atrelamento da arte teatral aos ditames pasteurizados da cultura midiática não prevalece nas duas encenações. Não posso me arrogar o direito de falar pelos espectadores, mas observo que as reações no interior da sala atestam a receptividade da experiência, configurada pela cumplicidade partilhada. A presença do intérprete como detentor dessa mediação não rebaixa o compartilhamento, mas provoca uma relação extra-cotidiana: palco e platéia mesclam energia.

Tanto em Fábula quanto em Muito Barulho Por Quase Nada, o exercício dos intérpretes se dá em múltiplos registros; aglutinam-se estilos conforme pede a situação armada pelo autor e pelo encenador. Essa riqueza possibilita, por parte do atores, a exploração dos recursos corporais e vocais assentados sobre matrizes reconhecíveis e reelaborados no jogo cênico. César Ferrário, Marco França, Nara Kelly, Eduardo Galvão, Helena Cantidio, Renata Kaiser e Rogério Ferraz, que constituem o elenco da comédia shakespeareana, cumprem muito bem o que se propõem. A presença cênica desses intérpretes revela a “essência do clown (...) desde os elementos técnicos, de tempo e olhar, de relação com a platéia, até a forma ‘pessoal e intransferível’ de ver o mundo, sempre distorcida pela lente do lirismo”, conforme o texto do programa. As personagens elaboradas com desenvoltura e presentificadas na cena ganham força e articulam-se à poética do texto e à poética da encenação, como indica Anne Ubersfeld em Para Ler o Teatro (Perspectiva, 2005): “não mais como a cópia-substância de um ser”, mas como lugar, como mediação. A essência do clown liberta os atores da estereotipia e do efeito fácil que a especificidade pode acarretar.

A somatória de pontos positivos que as duas encenações apresentam provoca reflexões para além daquilo que os conceitos prescrevem, ainda que eles ajudem na decodificação do objeto estético. Nem por isso, a apreciação das encenações de Fábula e de Muito Barulho Por Quase Nada se deu munida de uma lupa para achar as digitais dos que se mantém aferrados ao teatro dramático, com a intenção de condená-los. Da mesma maneira, não se rastrearam as premissas do pós-dramático para se atestar as qualidades das encenações postas em movimento pela liberdade e experimentação necessárias para que o teatro se mantenha como expressão do seu tempo, “nos quais o espectador pode ensaiar como viver a experiência da instabilidade e da fragilidade da identidade de forma produtiva e prazerosa”, como indica Erika Fisher-Lichte em Transformações texto publicado na revista Urdimento (2007).

Acontecimentos como este Festival servem para estabelecer encontros. No caso do Latino Americano, possibilitou a confluência de encenações realizadas em Cuba, Equador, México, Peru, Recife, Porto Alegre, Salvador, São Paulo e Natal. O pensar-fazer teatro se alimenta desse intercâmbio, e a cultura daqui e de fora é vista como um veículo de informações transmitidas. Não apenas isso, eventos dessa natureza proporcionam a produção de informações realmente transformadora.

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O texto foi escrito quando da apresentação dos espetáculos. Fiquei aguardando sua publicação em um jornal local. Por motivos alheios à minha vontade, o texto não foi publicado ficando na gaveta - expressão mais antiga, não?! Resolvi publicá-lo em virtude da qualidade do grupo Clowns de Shakespeare e registrar sua passagem por Salvador.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Registro 225: Tempo de Natal


Não entendo o que acontece em Darfur. Não quero entender o que há em Darfur. Para entender Darfur, eu preciso fazer tantos jogos mentais e daí encontrar uma justificativa. Dê-me um motivo qualquer, para que eu possa entender Darfur. Basta um, pequeno, improvável, justo, racional, qualquer um que seja. Eu lhe peço pelo amor de Deus ou dos Deuses, caso queira.

Não existe nenhuma justificativa.

Se houver, damos assentimento ao bestial.

Mas não são bestas os que ali estão, seviciando, estuprando, matando semelhantes-diferentes.

São humanos.

????????????????

Como fazer poesia depois de Dafur?
Depois da Armênia, depois Auschwitz e do Gulag, China, Camboja, Ruanda, Bósnia, fizemos poesia e ela parece não tocar corações e mentes.

Eu não quero entender o que acontece no Sudão.

Mas eu preciso.

O resto é silêncio

E poesia.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Registro 224: Apanhado no jornal e outras coisas...

  • Essa é de autoria de Daniel Pizza. Ele escreve no Estado de S.Paulo, no Estadão de domingo. Sinopse intitula-se a sua coluna. Vale a pena dar uma olhada de vez em quando. No domingo, 21.12.2008, ele escreveu sobre os melhores do ano e no final da sua coluna disse: "Por que em vez de terem prendido Caroline Piveta da Mota, que pichou a mureta da tal "Bienal do Vazio", a polícia não age contra os pivetes que assaltam os cidadãos à luz do dia? Ou melhor, se for para punir o ataque ao patrimônio público, por que não prendem a diretoria da Fundação Bienal, que cometeu atentado a um evento que sempre se gabou de ser o terceiro maior das artes plásticas contemporâneas.
  • Sobre o teatro ele escreve: "Como aos concertos, pude ir a poucas peças neste ano; ao contrário deles, dei azar com elas. Entre outras, fui ver três textos importantes por respeitadas equipes: A Moratória, de Jorge Andrade, pelo grupo Tapa; Senhora dos Afogados, direção de Antunes Filho; e Hamlet, com Wagner Moura. Desigualdade de interpretações e equívocos nos conceitos foram as marcas.
  • Fui ver Ilhas coreografia do espanhol Victor Navarro para o Balé do Teatro Castro Alves, datada de 1981, agora dançada pelos alunos da Escola de Dança da Fundação Cultral do Estado da Bahia. Em 1980 trabalhei em Geni (Marilena Ansaldi e José Possi Neto), cuja coreografia era de Navarro. O coreógrafo que esteve junto ao Balé Cidade de São Paulo além de criativo é uma pessoa adorável. Pena não ter tido a oportunidade de falar com ele depois do belíssimo Ilhas. É que no programa constava Engenho, fruto da parceria do BTCA Residência, com o ICBA/Goethe Institut e o coreógrafo alemão Félix Ruckert. Não aguentei vinte minutos, da chatíssima coreografia, cujo problema não está na execução, mas na concepção. Fui embora e não matei a saudade. Ilhas, a coreografia, é precisa, envolvente, muito bem concebida e bem dançada. Para mim que não vi sua estréia, considero-a como um trabalho de agora. Não há firula, nem estranhos conceitos para sustentar o que se viu no amplo palco do Teatro Castro Alves, aliás muito bem usado. Navarro explora o espaço, ilumina os corpos sem grandes efeitos, mas compõe uma luminosidade onírica para que os dançarinos (?), bailarinos (?) exponha a elaborada construção de movimentos num fluxo crescente que faz a platéia pulsar e no final aplaudir de pé. De curta duração, a coreografia deixa saudades, vontade de vê-la mais vezes. Ilhas não devia compor o programa com Engenho, cansativa repetição de movimentos e correrias sem nenhuma engenhosidade. Quando da chegada de Félix Ruckert houve certa expectativa com relação ao que ele faria com o BTCA, tal a crise provocada pela Secretaria de Cultura, que tentou resolver problemas do passado, criando outros, num ato persecutório aos bailarinos afastados por gestões anteriores. O coreógrafo alemão estava disposto a trabalhar com bailarinos "fora de forma", mas não foi feliz. O problema é que certa corrente da dança, a que se diz pós-moderna, presumo, tem se afastado da dança moderna, renegando-a. Tal afastamento nos condena a ver experimentos que de dança não são nada. Sobre o palco o que se vê é uma amontoado de idéias, e muitos conceitos. Isso cansa.
  • A noite de Natal está chegando. Paz na Terra aos homens e mulheres de boa vontade. Esperemos...

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Registro 223: Em meio à correria de fim de ano

  • Por mais que tente me manter afastado da euforia festiva que toma conta de tudo e de todos no final do ano, termino levado por essa febril confusão, por esse compromisso em providenciar lembrancinhas, presentinhos, sorrisinhos e que tais. Chega. Não aguento mais. Quero ficar quieto no meu canto, ouvindo música: a da natureza e a criada pelos humanos, mas não seus alaridos.
  • Leio o jornal do dia e espanto-me com a notícia que de que a moça que pichou o prédio da Bienal, ainda que tenha sido suspensa sua prisão, continua presa. O pior de tudo é que o senhor Ivo Mesquita curador da 28. Bienal argumenta que a garota pichou um prédio tombado. Tornou-se então uma criminosa. Não quero fazer a defesa da pichação, mas considero hipócrita a sua posição. Assim também pensa o artista Roberto Aguilar. Ainda bem!
  • Se olharmos para as nossas cidades a cata de prédios tombados para ver como se encontram, perceberemos que nem todos merecem os cuidados que deveriam ter por parte do poder público, das instituições privadas e dos particulares insatisfeitos com o tombamento. Não quero radicalizar, exceções existem. Mas nesse imenso universo que é o patrimônio de pedra e cal, muita coisa sofre a ação nefasta de todos nós. Ação muito mais terrível do que a pichação de uma espaço vazio, uma proposta conceitual (haja conceito para dar conta!) no interior dessa coisa em crise que é a Bienal de São Paulo. Em crise por conta das administrações equivocadas e das curadorias que entram no jogo do mercado. O fato é que os donos das galerias ocuparam o centro das atenções mostrando seus artistas em espaços outros que não os do pavilhão. Além disso, no imenso território brasileiro existem muitos artistas produzindo fora do circuito oficial e fora do negócio de arte e não conseguem furar o cerco. Mas como chegar até eles se os curadores estão comprometidos com conceitos fechados e, pior ainda, submetidos ao jogo perverso do mercado de arte?
  • Mas voltando ao caso da jovem Caroline Piveta da Mota, me parece draconiana a punição, tendo em vista que criminosos de mão cheia estão por aí flanando e os que chegam a ser presos ficam menos de vinte e quatro horas no xilindró. Portanto, dois pesos, duas medidas. A Justiça é cega, mas somente na alegoria. Na vida real , ela pisca os olhos e sabemos para onde.
  • A pichação no interior do "vazio", proposta mais besta, deve ter sido apagada, restituindo-se a ordem e o progresso no interior da Bienal. Mas o fato é que o ato de Caroline provocou a ira daqueles que tentam nos impor um absurdo, deixando patente que o vazio não é da arte, mas das cabeças, que no momento, pensam sobre as artes visuais. Não exageremos, vozes discordantes e qualificadas apontaram a aberração que se viu. Um equívoco atrás do outro, desde o tobogã até o espaço vazio. Mas o evento chega ao fim e esperamos que a próxima edição da Bienal venha de fato provocar alguma coisa que não seja o evento midiático logo esquecido.
  • Inaugurou-se o Unibanco Glauber Rocha no lugar do ex-Cine Guarani, espaço mítico para os amantes do cinema. Ali, nas manhãs de sábado, sob o comando do crítico Walter da Silveira, assisti os filmes que ele exibia como parte da programação do Clube de Cinema da Bahia. Naquele tempo da delicadeza, enchia-se a sala para ouvir as palavras do crítico sobre o filme a ser exibido em seguida. Por fim, saíamos do escurinho do cinema preenchidos de imagens, impregnados de narrativas, enriquecidos de arte criativa. Enfrentávamos o sol do meio-dia na Praça Castro Alves, em meio aos que nela circulavam sempre bem apresentados, porque ir ao Centro da cidade requeria um certo jeito, um traquejo, um embelezamento. Isso não era prerrogativa de endinheirados. O povo, essa entidade que nos consome e nos dá rasteira quando queremos estudá-la, sabia da sua elegância e desfilava ladeira acima, ladeira abaixo, enchendo de vida uma praça charmosa que não é esse horror que vemos agora. As pessoas exibiam sua indumentária sem luxo nem riqueza, mas de uma dignidade que não se vê atualmente nas ruas de Salvador. Éramos muito mais educados, gentis, cordiais. Não pensem que as tensões e as insatisfações estavam suspensas e que alienados sorríamos como Polianas.
  • Espero que o Cine Glauber Rocha sirva de estímulo para outras iniciativas naquele sítio de topografia tão singular. E que elas sejam realmente de bom gosto, que criem harmonias e também contrastes, mas que não revelem estupidez e arrogância modernosa. Que a Praça viva! Que a estreiteza burocrática, imediatista não imponha sua vontade sobre nós. É preciso ouvir diversas vozes. O Teatro Gregório de Matos precisa de reforma e revitalização. O Centro Cultural da Barroquinha precisa funcionar sob o comando de alguém que saiba animar artística e culturalmente o pedaço.
  • Canções de Amor filme de Christopher Honoré é fina flor estranha que nos pega de surpresa, mas ganha quem está disposto a absorver não somente a história, mas a forma como ele escolheu para contá-la. História de perda e encontro, com uma sequência final muito bem construída. Construída com delicadeza. A frase final, "Ama-me pouco, mas por muito tempo", soa aos nossos ouvidos, pelo menos aos meus, de maneira aliciadora...

domingo, 7 de dezembro de 2008

Registro 222: Uma coisa leva a outra..

  • Dei de ouvir Beatles constantemente. Música para ouvir, pra dançar, pra sonhar com céu lantejoulado de diamantes e campos de morangos. Acredite; esses momentos prazerosamente curtidos não estão carregados de nostalgia paralizadora, embora plenos de passado rememorado são revitalizadores. Sinto-me recarregado para me transformar. "Metamorfose ambulante". Penso então no que diz Claudio Magris, autor de O Senhor Vai Entender, ainda não lido nem adquirido. Diz ele: "A memória olha pra frente; carrega consigo o passado, mas para salvá-lo, assim como são recolhidos os feridos e os mortos que ficaram para trás, pra levá-lo de volta à pátria, à casa natal que cada um, afirma Bloch, acredita em sua nostalgia ver na infância e que, entretanto, se encontra no futuro, em um futuro livre e liberto" (O ESTADO DE S. PAULO, 30 de novembro de 2008). Ecos benjaminianos.
  • Citei Magris na abertura do Primeiro Encontro Latino-Americano de Teatro - Trânsitos na Cena Latino-Americana Contemporânea organizado por Hector Briones e Cacilda Póvoas. Durante o evento (3 a 5 de dezembro) no Teatro Vila Velha um grupo de pesquisadores da Argentina, Brasil Chile, Costa Rica, Cuba, Equador, Peru e Venezuela ligados ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - UFBA apresentaram comunicações a respeito do fazer teatral em seus respectivos países. Essas comunicações fazem parte da publicação lançada pela Edufba no encerramento do Encontro. Utilizei do tempo concedido para falar desse diálogo entre próximos-distantes e da importância de ouvirmos o Outro para alargar as fronteiras, não somente as teatrais, mas a de convívio e aprendizado. Magris me ajudou na referência que fiz à memória, visto que as falas estavam impregnadas de memória positiva, aquela que nos lança pra frente, ainda que estejamos tratando do passado, para muitos aterrador. Se pensarmos que o fazer teatral na América Latina esteve sob o jugo de governos ditatoriais (um aspecto recorrente em todos as comunicações) que nem sempre compreendem o significado da arte, mais especificamente da arte teatral, o valor positivo que salta das memórias é que elas não estão impregnadas da obsessão que leva ao ódio vingativo. Talvez pelo fato dos participantes serem jovens, não há traço de rancor quando relatam as lutas dos seus conterrâneos para manter a atividade teatral viva e atuante durante os regimes de exceção que aterrorizaram a região na vigência da Guerra Fria fator que resultou na quebra democrática e no endurecimento dos regimes.
  • A iniciativa do Encontro é salutar. Pôde-se tomar conhecimento de realidades semelhantes e diferentes sobre o teatro que se fez e faz além das fronteiras, limites que podem ser alargados no momento em que passamos a dividir experiências, procedimentos e encaminhamentos para a cena.
  • Recebi de Fanny Abramovich, juntamente com a revista Continuum editada pelo Itaú Cutural alguns cartões para a minha coleção e um marcador de livros; nele, uma frase de Oscar Wilde: "Não sou jovem suficiente para saber tudo". Fina ironia!
  • Veio também um guia com indicações de lançamento de livro, discos e DVD's. Cinco filmes de Ingmar Bergman acabam de ser lançados: Da Vida das Marionetes, O Rito, O Olho do Diabo, Depois do Ensaio e Uma Lição de Amor. Ah, dois de Sokúrov, cineasta russo, também estão na praça, Arca Russa e Pai e Filho. Vi o último; um filme estranho. Sokúrov descreve a relação entre pai e filho de uma maneira estranhamente bela, ambígua, desconcertante. Saí do cinema com uma sensação de não ter captado algo dessa história encenada vagarosamente, quase sempre em primeiro plano e closes de atores inquietantemente belos. Vale a pena conferir.
  • Danuza Leão em entrevista ao no Caderno 2 (A Tarde, 4.12.2008) deve ter mexido com os brios baianos. Lá pras tanta ela diz: "Agora tudo tem promoter na Bahia" e vai alfinetando a vida social/cultural da soterópolis. O gozado é que Danuza veio desse ramo, mas ela tem lá suas razões. Pasteurizaram tudo! E dá-lhe mesmice nos acontecimentos!
  • As festas de fim de ano se aproximam. Sempre gostei delas, principalmente quando criança e também na adolescência. Na minha família, o Natal era festa de porta aberta, sempre pra fora, receptiva. Meu pai, festeiro de marca maior, gostava de fazer festas natalinas para a cidade. Armava presépio grandioso no salão da principal escola da cidade (ou na rua) e aí recepcionava as crianças e idosos que recebiam brinquedos os primeiros e cobertores os segundos. Semanas antes, quantas vezes acompanhei meu pai percorrendo a periferia da cidade para distribuir uma senha, garantia do ingresso no recinto do presente. Depois que fazia esse evento, abria o salaão para quem quisesse apreciar o presépio que muitas vezes ajudei a montar.
  • Na infância, eu costumava visitar as casas em que tinham presépios, encantando-me sempre com as soluções de cada um. Fascinava-me ver a cenografia e a mistura inusitada de objetos e imagens contemporâneas que se juntavam àquelas tradicionais remissivas ao nascimento do Menino. Geralmente montados nos cantos da sala, ofereciam-se ao olhar do espectador como um palco italiano. Muitas vezes fui surpreendido com presépios montados no centro da sala, levando-me a uma visibilidade circular, como se o espetáculo fosse em arena. A geografia desses presépios, às vezes grandiosa, era construída com caixas, panelas, tábuas, tijolos e outros objetos cobertos de musgos catados na caatinga, musgos vermelhos, alaranjados e verdes que impregnavam o ar com um cheiro característico do campo do sertão. Os mais requintados, achavam seus proprietários, eram feitos com papel pintado de cinza imitando rochedos e gruta onde a cena do nascimento era recolhida. Alguns eram feitos de pedra salpicadas de tinta azul escuro, vinho e branca, resultando num efeito interessante e rompendo com a realidade dos objetos, mas sem escondê-los, num efeito mimético de recriação. Areia fina e de brancura imaculada marcava algumas regiões dessa paisagem, enfeitadas com conchas e búzios.
  • Na adolescência, eu e meus amigos, ficávamos na praça fazendo o footing até a hora da Missa do Galo, que geralmente não íamos. Reminiscências. Os Natais da minha infância não eram regidos por esse consumo desenfreado. Tanto eu quanto meus irmãos ganhávamos roupa nova, um presente muito simples... No jantar havia peru. Ah, havia sempre queijo do Reino na sua tradicional embalagem. Para nós, Natal sem queijo do Reino não era Natal. Não precisava nem de presente!