terça-feira, 19 de agosto de 2008

Registro 199: Contribuição de Dimitri Ganzelevitch


Tudo por causa de um LP

Cheguei para morar na Bahia em 1975.
Há, portanto, 33 anos que a mesma pergunta, com exagerada freqüência, vem bater á minha porta. “Porque veio morar aqui?” Uns com tom de profunda incredulidade. “Quem me dera, a mim, estar no hemisfério norte!”, outros com uma pontinha de suspeita. “Seria mais um Ronald Biggs?”.
Ninguém muda assim, do dia para o outro, de cultura, de clima, de idioma, de comportamento, sem motivo.
Hoje chegou a vez de desvendar o segredo.
Foi pela força de um disco. Um LP como se falava na época

Minha mãe, separada de meu pai, viveu durante 25 anos com um português, em Lisboa. Antonio Lopes Ribeiro era cineasta, crítico de cinema, poeta, escritor. Irrequieto, magro, nervoso, fazia sempre grandes discursos com muitos gestos, fumando um cigarro atrás do outro. Teve imensa responsabilidade na minha formação intelectual de adolescente.
Na sala reinava um magnífico aparelho de som, um Grundig. Rádio e toca-discos. Nele podíamos ouvir, não só os modernos 33 rotações, de vinil, mas também os velhos 78, em frágil bakelite. Havia de tudo, desde Chopin, Brahms, Chaliapine e Caruso até Amália, Piaf, Carmen Miranda e Dick Farney. Que bela voz tinha este Dick! Parecia veludo...
Antônio viajava muito. Uma vez veio do Brasil, onde encontrara cem personalidades do mundo do cinema e da música, com as malas entupidas de discos. Entre vários discos havia um, com uma caricatura mostrando um forte mulato de camisa listrada e chapéu de palha. Dorival Caymmi. Uma seta indicava “Maracangalha”.
As canções de Caymmi foram, para mim, uma viagem num mundo mágico, quente, doce e colorido. Alegre e poético também.

A vida dá suas voltas.
Meu tio Boris trabalhava para a Unesco no Rio de Janeiro. Convidou-me para conhecer o carnaval. Na minha bagagem, uma carta de apresentação para Orígenes Lessa, autor do “O Feijão e o Sonho” e grande especialista em literatura de cordel. Sua companheira, Maria-Eduarda, era filha do conde Marim, algarvio com muito honra. Me desafiaram. “Vamos ao casamento do filho de Jorge Amado, em Salvador. Porque não vem com a gente?” Porque não? Fui.
Foi grande a emoção de encontrar, na casa do famoso escritor, o autor de “Eu vou para Maracangalha” e de tantas pérolas da música brasileira. Pouco mais fiz do que apertar timidamente sua mão e olhar para ele a cada minuto. Parecia, com seu cabelo grisalho, ter um brilho especial. Mas, naquela manhã, a verdadeira estrela da casa era Débora, a cobra de Paloma Amado.
Durante uns cinco dias, passeamos pela cidade, muitas vezes ciceroneados por um jovem poeta, muito mulherengo, Ildásio Tavares. Lembro de uma seresta nas areias do Abaeté, com velas plantadas em pequenas covas ao abrigo da brisa. A beira da lagoa parecia um céu estrelado ao avesso. Tão inocentes, em 1971, aquelas areias...

A vida continua dando suas voltas.
Vi morar na Bahia em 1975 e descobri então que o colorido cartão postal também tinha um avesso, branco e preto, bastante mais fastidioso. Teria que preencher os espaços vazios com meus próprios pincéis para resistir a uma realidade que seria, ao princípio, dura e sem piedade. Aprendi a viver.
Em 1983 encontrei novamente o magnífico mulato, já de cabelo branco, novamente na casa da rua Alagoinhas. Novamente apertei, tímido, sua mão. Afinal o que é que um pobre imigrante simplório nas suas certezas de europeu banhado em Molière e Debussy, mas incapaz – até hoje – de sambar ou contar uma piada, teria ousado falar com um Dorival Caymmi?
Os anos passaram, fiz minha esta terra que tanto critico aqui, confesso, e que tanto defendo quando a atacam lá fora. Segui meu caminho por verdes vales e poeirentas caatingas, lamaçais e águas mornas. Sempre guardei na memória a honra de ter apertado, por duas vezes, a mão de um homem que podia levar um ano para fazer uma só canção, mas ofereceu ao mundo pérolas de mares fundos, onde belas sereias valsam com pescadores enamorados.
Perdi, nas mudanças, o disco até um amigo rastafari, amante de boa música e comerciante esclarecido do Pelourinho, sabendo de minha procura, me oferecer um velho exemplar, idêntico ao de minha lembrança de adolescente.

Hoje abro a televisão para enfrentar a triste noticia.
Dorival Caymmi acaba de morrer aos 94 anos, rodeado por uma maravilhosa família que consegue viver de música sem nunca ter caído nos fáceis sucessos descartáveis que agora poluem nossa sociedade consumista e desmemoriada.
Hei de ir, ainda este ano, mesmo sem Amália, a Maracangalha.
Se Deus quiser.

Salvador, 16 de agosto de 2008
Dimitri Ganzelevitch