sexta-feira, 6 de abril de 2012

Registro 394: A Deus o que é de Deus: religião fora do espaço educativo


O texto logo abaixo é um dos editoriais de hoje (06.04.2012) de a Folha de S. Paulo. Mesmo sem consultar o jornal para pedir permissão, resolvo publicá-lo, tendo em vista a seriedade com que trata o assunto. Além do mais, concordo com o texto. Acredito que a liberdade de um termina onde começa a do outro. Obrigar alunos à prática religiosa, seja ela qual for, não cabe nos espaços do Estado. Religião é uma escolha individual e deve ser praticada nos lugares reservados aos cultos. Embora cada um possa manifestar seu credo, deve antes de tudo saber do Outro. Não podemos ficar omissos diante de atitudes que não correspondem com a laicidade do Estado. A omissão pode nos levar ao caos, pois na disputa pelos espaços públicos e mais fiéis, religiosos de diversas religiões podem ultrapassar os limites, como tem feito professoras católicas, evangélicas e espíritas e não somente elas. A bancada de deputados e senadores religiosos prestam o desserviço ao Brasil.  Cito as três vertentes porque as notícias que me chegam tratam delas. Não me consta que um budista, um adepto do candomblé tenha feito proselitismo em sala de aula. E espero que não o façam, assim como os islâmicos, já que não devemos abrir espaço para nenhuma religião no espaço educativo. Ou teremos que abrir para todas, dando ao aluno a opção de seguir a que quer, ou mesmo nenhuma. A opção é aluno, mesmo assim não acho que a escola pública seja o lugar para o ensino da religião, visto que cada uma tem a sua verdade. Não sou ateu, e nada tenho contra que o é. Como disse o representante da CNBB, não podemos obrigar nem proibir ninguém de rezar. Portanto,  que se reze em casa ou na igreja. Da mesma forma, penso que convicção política não deve interferir na transmissão do conhecimento. Às vezes, o ensino é tão ideologizado, seguindo um ponto de vista unívoco que termina por comprometer o processo de aprendizagem.


Religião na escola

Estado deve impedir práticas confessionais em sala de aula na rede pública, não para reprimir a fé, mas para garantir liberdade religiosa

Há quase cem anos, um adolescente mineiro foi expulso do colégio de jesuítas onde estudava. Seu nome: Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).

O motivo da expulsão também ganhou notoriedade: a "insubordinação mental" de que o acusavam tornou-se, com o passar dos anos, uma das muitas distinções da biografia do poeta.

Também mineiro, e com a mesma idade (17 anos) que tinha o escritor naquele episódio, o estudante Ciel Vieira "insubordinou-se", por assim dizer, diante de uma professora de geografia do seu colégio, na cidade de Miraí, a 355 km de Belo Horizonte.

A professora tinha por hábito iniciar as aulas rezando o Padre Nosso. Ateu, o estudante não acompanhou a classe na oração. A professora reagiu, dizendo ao jovem que ele não tinha Deus no coração e nunca seria nada na vida.

O caso ganhou repercussão, dando respaldo à atitude do estudante -que, com razão, não vê motivo para ser obrigado a rezar numa escola da rede pública.

Seria mais confortável, é claro, fingir uma adesão superficial ao rito. A atitude de independência do estudante se inscreve, todavia, num clima ideológico e cultural que se diferencia dos padrões de indiferença e acomodação típicos do Brasil de algumas décadas atrás.

Dos protestos contra a presença de crucifixos em repartições públicas ao questionamento judicial, por parte da União, dos critérios que devem reger o ensino religioso nas escolas, avolumam-se iniciativas para afirmar com mais nitidez o princípio da laicidade do Estado.

Ao mesmo tempo, vê-se em toda parte uma tendência, se não para o fundamentalismo religioso, pelo menos no rumo de um proselitismo militante. É uma manifestação legítima, desde que não resvale para a imposição ao público de valores e práticas cuja adoção constitui matéria de foro íntimo.

Denominações cristãs diversas fazem valer seu poder como mecanismos eleitorais. Bancadas parlamentares religiosas se organizaram em todos os níveis da Federação. A TV aberta promove intensamente este ou aquele credo.

Por demagogia ou convicção, surgem mesmo casos em que políticos quebram explicitamente o princípio da neutralidade do Estado em questões religiosas. Foi o que aconteceu em Ilhéus, onde vereadores e prefeito tornaram obrigatória a oração do Pai Nosso nas escolas municipais.

Casos assim podem parecer localizados e desimportantes. Todavia, a ideia de que o Estado não deve se imiscuir nas questões de fé tem uma relevância cada vez maior.

Não se trata de uma questão de militância ateísta -o que está em jogo é a liberdade de todas as religiões, indistintamente, para conviverem de forma pacífica, sem favor nem perseguição do poder público.

domingo, 1 de abril de 2012

Registro 393: Que susto!


IDOS DE MARÇO


Lá se foi março. Ao mesmo tempo em que sinto saudade quero esquecê-lo. Tive minha casa arrombada na madrugada do dia em que ia para Aracaju lançar Harildo Déda, matéria dos sonhos. Felizmente o sujeito não conseguiu entrar, acordei assustado e gritei por quem mora comigo e divide as alegrias e as tristezas que a vida traz ou que criamos. O assaltante não penetrou o recinto sagrado do meu lar, pois é assim que o vejo. Finalzinho do mês, o meu coração deu sinais de cansaço e abateu-se. Um susto! Mas agora, diante do acontecido, a calma toma conta de mim, invade-me.

Sempre pensei na vida, na vida dos outros, algumas vezes bisbilhoteiramente, mas quase sempre por desinteresse, movido apenas pela troca advinda dos encontros e das belezas que as vidas contêm. Sempre respeitei a vida, a vida do outro, um valor supremo. Quanto a minha, penso que vivia esquecido de mim. Algum poeta já formulou tal questão. Bons poetas, invejo-os, conseguem sintetizar pela linguagem o que se passa no interior e o que captam do mundo. Mas lá ia eu sem dar conta de que a vida pode se interromper num átimo. Repentinamente ela nos põe diante do impermanente e somos forçados a aceitar o que nos é dado ou que fabricamos nesta usina que é o mundo.

Março passou. Abril chega com a promessa de nova ou novas maneiras de viver. Mesmo sendo outono, há um sol que adentra pela janela que foi arrebentada. Uma promessa de vida, embora o inverno se aproxime. Mas como aqui, onde vivo, o clima é rebelde e não segue as demarcações da temporalidade de maneira regular e alterando a paisagem e nossos humores, eu sigo como se fosse primavera, promessa de verão. Ainda que eu não goste de calor, redobro o ânimo.

Fui e estou cercado de atenções e de carinhos. É bom saber-se querido.

Enquanto me recuperava hospitalizado, lá se foram Chicos Anísios; imito Carlos Drummond de Andrade ao escrever sobre a atriz Cacilda Becker: “morreram Cacilda Becker”. Lá se foi Ademilde Fonseca ao mesmo tempo em que Millôr Fernandes. Para muitos, talvez não signifique nada. Para mim, são sentidas perdas. Consolo-me por saber que eles deixaram rastos, legando aos que ficam uma produção, aquilo que para eles era capital cultural, para nós capital simbólico.

Enquanto descansava em um quarto impessoal, descobri um poeta, Daniel Lima, pernambucano que manteve reclusa a sua poesia por muitos e muitos anos. Aos 91 anos, por surrupio de uma amiga, tem sua produção publicada em Poemas (Cepe Editora, 2011). Com sua poesia misturando-se às visitas e aos que cuidavam de mim, tornei o quarto menos frio, menos impessoal. Ele passou a ser meu, pois nele eu estava com meus cheiros, sonhos, demônios e anjos. Abre o livro, dois textos apresentativos: um de Lourival Holanda, outro de Zeferino Rocha. Os dois conduzem o leitor com segurança e abrem portas para as muitas portas que a poesia de Lima descerram. Uma bela descoberta.

Mas nem tudo é uma maravilha reconfortando o nosso espírito atribulado. Ao dar umas espiadas na televisão constatei que as novelas são cada vez mais um horror. As vilãs são risíveis. Parecem mais bruxas de contos para assustar crianças. Um telejornal local pautou no seu horário nobre uma reportagem sobre um cão que pula para pegar pedras atiradas na água por seu dono. Falta de assunto, ou estupidez do editor? Não tenho nada contra cães, ao contrário. Mas façam-me o favor... As reportagens sobre o aniversário da Cidade do Salvador eram de uma obviedade rasteira, a repetição da repetição. A publicidade cada vez mais calhorda faz de tudo para vender produtos. Uma marca francesa de automóvel tem um comercial onde a ética, a solidariedade, o repeito pelo outro são jogados no chão. Se eles, os publicitários e os executivos da Peugeot pretendiam o engraçado, não conseguiram tirar um riso, somente indignação. Um estagiário é mandado por dois boçais para abrir a porta da loja. Ele cumpre a ordem, é ridicularizado pelos dois e massacrado pela horda de consumidores que avançam em busca dos carros. Corte. Vemos então o estagiário jogando no chão, pois pisoteado. Segue-se o seguinte diálogo entre os dois vendedores que se acham: - “Vamos fazer o que?” Resposta: "Ah, vamos almoçar".

Recebi a visita de uma aluna na UTI. Fiquei deveras emocionado. Ela chegou, pegou a minha mão, trocamos algumas palavras e ainda sinto o seu toque solidário e confortante. Dois dias depois estava ela juntamente com outras colegas em meu quarto dando-me apoio com seus sorrisos. Saíram deixando no ar a graça de quem tem um mundo pela frente. Mais alunos, agora os rapazes. Perguntei se queriam aula, riram.

Gosto de ser professor.


Por recomendação, ouço Vivaldi e Mozart.