quarta-feira, 30 de julho de 2008

Registro 187: A vida é sagrada

Tem dias que o Mais, suplemento do jornal Folha de S. Paulo, está demais. Demais de bom, como no último domingo, 27 de julho. Nem sempre é assim, às vezes o Mais é de uma "chatura" sem fim, pedante que nem ele só.
Acabo de ler o número que traz na capa o poeta fuzilado pelos franquista, Federico Garcia Lorca, ou Lorca para aqueles que gostam e amam o poeta e portanto tratam-no com intimidade. Sobre Lorca, fala o cubano Urbano Martínez Caramante, contando-nos sobre a pesquisa realizada em torno da visita do poeta espanhol a Cuba, nos anos 30.
"Liberdade, liberdade abre as asas sobre nós"
Leia, a entrevista é reveladora.
Mais adiante, Luiz Costa Lima e João Cezar de Castro Rocha escrevem sobre a imensidão que é Antonio Candido, cuja Formação da Literatura Brasileira é referência.
Na folha seguinte Franklin de Matos (que não é meu parente nem aderente) resenha o livro de Tzvetan Todorov, O Espírito das Luzes. Bela resenha, faz a gente correr para a livraria e sair com o livro para sentar e ler e aprender. Nesses tempos bicudos, de caretice travestida de transgressão, de fundamentalismo (religioso, político, racial, para ficar só por aqui), gotas dos princípios definidos pelas Luzes caem bem. Melhor ainda quando lidos e vividos criticamente. O que não dá é pra ficar achando que os tempos pós-modernos superaram os preconceitos, os dogmas, as instituições e por aí vai.
Cito: "Autonomia do indivíduo e da sociedade, finalidade humana de nossos atos, universalismo, laicização, vontade geral, equilíbrio e independência dos poderes, invenção da história como relato dotado de sentido imanente, invenção da arte, do artista e da história da arte: alguém duvida que as Luzes sejam responsáveis por boa parte de nossa identidade atual?
Diante das teocracias islâmicas de hoje, da base norte americana de Guatánamo e das ameaças à pesquisa sobre células-tronco, alguém duvida de que precisem ser defendidas?"
Assim Franklin Matos encerra sua resenha sobre o livro em questão.
Por fim, na última página a lúcida porrada em nossos corações e mentes. Ela nos vem do filósofo esloveno Slavoj Zizek Em o Mutante, o esloveno apresenta uma ridografia de Radovan Karadzic, o líder-poeta que aterrorizou com sua guerra de limpeza étnica a região dos Balcãs. Gostaria de citar o texto na íntegra, mas o trecho final vale ser transcrito:
"O predomínio da violência religiosa (ou etnicamente) justificada pode ser explicado pelo próprio fato de vivermos numa era que se vê como sendo pós-ideológica.
Como já não é possível mobilizar grandes causas públicas com base na violência em massa - ou seja, a guerra - na medida em que nossa ideologia hegemônica nos chama para desfrutar nossas vidas e realizar nossos eus, é difícil para a maioria das pessoas superar sua repugnância diante da idéia de torturar e matar outro ser humano.
A grande maioria das pessoas é espontaneamente "moral": matar outro ser humano é profundamente traumático. Assim, para convencê-las a fazê-lo, é preciso uma causa "sagrada", maior, que faça os melindres individuias em relação ao assassinato parecerem triviais.
A religião ou o pertencimento étnico se enquadram perfeitamente nesse papel. É claro que existem casos de ateus patológicos que são capazes de cometer assassinatos em massa apenas por prazer, matar simplesmente por matar, mas eles constituem exceções raras.
A maioria de nós precisa ser "anestesiada" contra nossa sensibilidade elementar ao sofrimento do outro. E para isso é preciso uma causa sagrada.
Mais de uma século atrás, em "Os Irmãos Karamázov", Dostoiévski lançou um aviso contra os perigos do niilismo moral ateu: "Se Deus não existe, então tudo é permitido". A lição que nos ensina o terrorismo de hoje é que, pelo contrário, se existe um Deus, então tudo - até mesmo explodir centenas de espectadores inocentes - é permitido àqueles que afirmam agir diretamente em nome desse Deus, como instrumento de Sua vontade."
Dá o que pensar, não?
Por hoje é só. Se alguém concorda ou discorda, o diálogo está aberto. Alguns podem considerar que palavras ao vento dispersam. Mas é isso mesmo. Elas podem cair em bons olhos-ouvidos-mentes.
Agora, eu quero é comer com coentro, porque, como dizia Sílvio Lamenha, "Poesia é axial."