terça-feira, 4 de novembro de 2008

Registro 217: Aqueles Dois

AQUELES DOIS
ÚLTIMO ESPETÁCULO QUE VI NO
FESTIVAL DE ARTES CÊNICAS DA BAHIA


Aqueles Dois, a encenação do conto de Caio Fernando de Abreu e aqueles quatro atores interagindo de forma precisa permanecem presentes no decorrer da semana, ativando a minha memória. Inesquecível exercício de teatro, longe da mesmice, longe dos modismos herméticos que só uma panelinha de iniciados compreende. Teatro para muitos ou pelo menos para quem tem o hábito e o gosto de ir ver teatro.

O sensível conto de Caio Fernando gerou o filme de mesmo nome, dirigido pelo gaúcho Sérgio Armon, lançado em 1985, uma realização não muito feliz. Faltava poesia. Agora chega ao palco numa produção da Cia. Luna Lunera de Belo Horizonte. Espetáculo engenhoso, mostra-se muito bem acabado e sua “mecânica” é uma atrativo para o espectador. Quatro atores em cena vivendo os dois personagens Saul e Raul, que por acaso se conhecem numa repartição pública ou numa firma, tanto faz. A despeito do ambiente mesquinho e sombrio do lugar onde ganham o pão, os dois se afinam numa relação que vai se construindo delicadamente, humanamente. E assim, adentramos na vida dos dois. A princípio, poucos gestos, monossílabos e frases curtas se transformam em diálogos e confidências, sedimentando esse encontro e a amizade entre opostos. Um extrovertido, Raul. O outro, Saul, amargo e crítico. A afeição cresce entre eles, e os dois passam a ser alvo da maledicência, da inveja e do preconceito dos colegas de trabalho.

Essa relação é mostrada de maneira precisa. O palco, um quadrado forrado com linóleo ocre. Em volta dessa área vários objetos, incluindo uma vitrola, um microfone com amplificador, são utilizados pelos atores durante a ação. Essa série de objetos identifica, não realisticamente, os ambientes por onde passam os personagens: apartamento de um, quarto de pensão do outro e sala de trabalho dos dois. O objeto de maior presença são gavetas. Elas se transforma em pastas, cadeiras, bancadas; completa a cena, máquinas de escrever, luminárias, xícaras e garrafa térmica para café, discos, papéis e lápis cera. Esses objetos definem o mundo dos dois personagens. Na dinâmica da encenação os atores dialogam entre si e identificamos Raul e Saul pelas cores das roupas. Duas duplas estão de azul e preto, duas de marrom e branco, ternos de trabalho gastos e amarfanhados.

A encenação joga com a multiplicidade e tira partido dos meios tons sem banalizar o ato teatral em si. O elaboradíssimo jogo de marcações executado com precisão pelos intérpretes é absorvido pela platéia, atenta ao desenrolar da história e também à inteligente e criativa forma com que a encenação foi elaborada. Essa interação entre conteúdo e forma acarreta alguns problemas, como por exemplo, a narração repetindo o que ação já revelou. Mas os senões não afetam a qualidade do trabalho. As soluções criativas surpreendem. O espaço em arena é bem explorado. Os intérpretes dão conta dos personagens. Alguns pequenos ajustes no tempo do espetáculo, talvez alguns cortes possam potencializá-lo.

A encenação de Aqueles Dois não descamba para o piegas, nem para intensidade dramática. O grupo acertou ao optar pelo intimismo e sutileza, elementos contidos no conto de Caio Fernando de Abreu. E tal qual a canção Tu Me Acostumbraste, vamos interagindo com a atmosfera, mergulhando a cada instante na proposta e ficamos cativos aos meios-tons que nem a cena do nu rompe. Penso que a cena na forma como se organiza não cria resistência por parte de uma platéia não acostumada com a nudez masculina em cena. Também não há gratuidade, já que a cena faz sentido e é um dado importante para compreensão da psicologia dos dois homens, Saul e Raul.

Desejamos que Cia. Luna Lunera continue sua pesquisa, escavando camadas da tradição teatral para extrair espetáculos estimulantes e revigorantes, cuja invenção se mostra intensamente comunicativa e elaborada.