segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Registro 133 A: Iluminação Natalina

Folheando os jornais do dia, eu encontrei o texto se Guilherme Wisnik (Folha de S. Paulo, Ilustrda, 24 de dezembro de 2007). Resolvi publicá-lo no Cenadiária por ser aquele que me diz mais sobre a iluminação natalina. Sua reflexão foge da mesmice que cerca a maioria do que se escreve sobre o Natal. O processo de iluminação, segundo a sua ótica, é difícil de ser vivido, de ser atingido em sua plenitude. Mas vale a pena tentar... cada um que encontre os caminhos para atingir esse estado diante do indizível. Mas que esse caminho nos afaste das trilhas do fundamentalismo, seja ele qual for.
Iluminação genital

Guilherme Wisnik

NAS PÁGINAS do Apocalipse, são João tem a visão de uma ordem divina que sobrevém ao Juízo Final. É a Nova Jerusalém, descrita como uma cidade quadrada, com doze portas, e cuja praça é "de ouro puro, como vidro transparente". Uma cidade que, no dizer do evangelista, não necessitava mais de Sol nem de Lua, "porque a glória de Deus a tem iluminado, e o Cordeiro (Jesus) é a sua lâmpada".

Considera-se que o primeiro emprego mais extensivo do vidro, na história da construção, data do século 12, com os vitrais das catedrais góticas. Em grande parte, dada à vontade de que estas pudessem equiparar-se simbolicamente à imagem diáfana da Nova Jerusalém descrita por são João Batista, na qual o ouro coincide com o cristal, e o brilho reluzente é sinônimo de transparência (significativamente, quase todas as catedrais trazem representações do Apocalipse em suas portas).

Avanço técnico surpreendente numa época ainda conservadora, em que o horizonte humano se estreitava com a possibilidade iminente do final dos tempos. Daí que a idéia de uma luz que vem do alto se mantenha, ainda hoje, ligada à dimensão da transcendência, mesmo em um tempo em que a desmaterializada fachada de vidro se tornou o símbolo do "esclarecimento", isto é, das "luzes" da razão.

Certa vez um aluno, numa aula minha, querendo referir-se à luz zenital de uma construção (que entra pela cobertura, através de clarabóias), confundiu-se e falou em "iluminação genital". Ato falho que é um verdadeiro achado, já que a abertura vaginal é a primeira luz que "vemos" na vida. E, convenhamos, ela está no zênite do percurso do bebê em sua travessia pelo canal de parto, ao final do qual considera-se que a criança foi literalmente dada à luz.

Ao nascer, chegamos ao céu. Que é, por sua vez, a terra. Assim, as "partes baixas" sobem para o zênite, e eu diria que esse aluno teve, naquele momento, uma súbita iluminação: a vagina como uma Novíssima Jerusalém. Imagino que Freud gostaria da associação, particularmente sugestiva no dia de Natal. Em vez de representar uma dimensão inacessível do mundo (sobrenatural, platônica), essa luz nada mais é do que o próprio mundo no qual entramos.

Por outro lado, esse encontro com a luz é, agora, uma experiência ao mesmo tempo sublime e traumática. Pensemos, por exemplo, na dificuldade do Menino Jesus em romper aquele umbral virginal. Terá visto uma luz mais mortiça e bruxuleante do que nós? Mesmo sendo ele a "lâmpada" dos homens, não foi dispensado de ver, um dia, essa luz no fim do túnel como uma espécie de "Juízo Inicial": o momento em que o feto se individua, passando a ter uma bagagem própria e totalmente intransferível.

É freqüente a associação entre o espaço da igreja e o ventre materno, o conforto uterino. Pois o interior em penumbra da igreja, todo envolto em mistério, é sempre vedado à vista desde o exterior, ficando protegido por um anteparo situado em frente à porta, como um hímen. Reservadas, elas são como virgens guardando-se para aquilo que virá depois do Apocalipse.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Registro 132: Apoio

TODO O NOSSO APOIO AO BISPO
D. LUIZ CAPPIO.
SUA LUTA EM PROL DA POPULAÇÃO
RIBEIRINHA
É SENSATA E JUSTA.
ELA NÃO É DITADA PELA GANÂNCIA DO CAPITALISMO SELVAGEM,
PELOS INTERESSES DE POLÍTICOS IMEDIATISTAS
NEM PELA VORACIDADE DO LATIFÚNDIO
QUEREMOS O RIO VIVO E PARA TODOS.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Registro 122: YERMA

Manuela Oliveira (Velha Pagã), Irene Gonçalves (Dolores), Paula Alves (Lavadeira), Ava Catarina (Yerma)

Ava Catarina (Yerma) e Gésner Braga (Vítor)

Elenco de Yerma junto com o professor-diretor Raimundo Matos de Leão durante o intervalo de ensaio antes da estréia, que aconteceu no dia 15 de novembro, no Teatro ISBA, em Salvador.
O elenco é formado por alunos concluintes do Curso Artes Cênicas da Faculdade Social, 2007.


sábado, 20 de outubro de 2007

Registro 121: Em Memória

PRESENÇA DE PAULO AUTRAN

Raimundo Matos de Leão

Doutor e Mestre em Artes Cênicas – UFBA.
Escritor, arte-educador, coordenador e
professor do Curso de Artes Cênicas – FSBA.



“Sempre fui sempre serei um homem de teatro”, com essas palavras Paulo Autran iniciava o espetáculo Liberdade, Liberdade, num tempo em que a liberdade andava bem escassa entre nós. Mesmo assim, os artistas mantinham-se firmes, garantindo seu espaço e a sobrevivência de sua arte. Apesar da censura, as vozes de Paulo Autran, Thereza Rachel, Oduvaldo Vianna Filho e Nara Leão, entre outros, se uniam em comunhão com as do público para cantar: “E, no entanto é preciso cantar. Mais que nunca é preciso cantar e alegrar a cidade”. Desde o palco do Teatro Opinião, e por todas as ribaltas brasileiras que receberam o espetáculo dirigido por Flávio Rangel, ecoava o protesto, a denúncia, o incômodo por ver o regime de exceção de 31 de março de 64 tomar corpo e se infiltrar no cotidiano.

O governo civil-militar militar aquartelado no Planalto ainda não havia mostrado a sua face mais cruel, fato que vai se dar com a evolução das suas constituintes, quando da decretação do Ato Institucional Número 5 – AI5. Mesmo assim, impediam-se a livre manifestação de pensamento e a organização das entidades; prendiam-se e exilavam-se lideranças intelectuais e políticas significativas do cenário cultural e político do País. Os artistas passam a sofrer um processo de vigilância e perseguição acirradas, fator que coloca em risco o exercício da profissão. A situação beco sem saída vai levar Paulo Autran, ator identificado com o “teatrão”, aquele oriundo do Teatro Brasileiro de Comédia, do qual foi cria, a ingressar em uma produção cuja coloração estética e ideológica dos seus participantes – Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Oduvaldo Vianna Filho, Pichim Plá, João das Neves, Tereza Aragão – não condizia com sua postura enquanto homem de teatro. Ator distante das propostas do paulistano Teatro de Arena e do carioca Grupo Opinião, Autran sobe ao palco para defender um princípio e afirmar a sua filiação maior, o fazer teatral, e por tabela, a liberdade de expressão.

Não assisti a montagem de Liberdade, Liberdade, mas fui um dos que adquiriu a edição do texto e o long-play com a gravação do espetáculo. A primeira vez que vi Paulo Autran foi em Édipo Rei, de Sófocles, quando de sua passagem por Salvador, em 1967. Convidado por Francisco Barreto, crítico teatral do jornal A Tarde, meti-me num terno, traje obrigatório para ir ao Teatro Castro Alves para apreciar a elogiada encenação.

Para um jovem que fazia teatro amador em Feira de Santana, ver a encenação protagonizada por Autran, aquele que ficou conhecido nos meios teatrais “como o nosso primeiro ator”, distinção de peso em meio a muitos primeiros atores, significou a determinação pelo palco, decisão que se concretiza com o meu ingresso na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Ainda em Salvador, assisti Paulo Autran em O Burguês Fidalgo, de Molière, sob a direção de Ademar Guerra, e na remontagem da histórica encenação de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, criação de Silnei Siqueira.

Em curto espaço de tempo, o ator mostrou seu talento e sua maneira de encarar papéis diversos. Em Édipo Rei e no Burguês Fidalgo, Autran encarregava-se dos protagonistas e desempenhava com versatilidade os gêneros trágico e cômico, com a marca de quem sabe os segredos do palco, de quem reteve as lições dos mestres italianos que aperfeiçoaram suas qualidades interpretativas. Tais atributos foram demonstrados na estréia de Um Deus Dormiu Lá em Casa, de Guilherme Figueiredo, quando dividiu o palco com Tônia Carrero, responsável por subverter a carreira do jovem advogado até então indeciso entre os tribunais e a tribuna do palco, esses metros de tablado onde a vida é representada simbolicamente. Já em Morte e Vida Severina, o ator entrava nos momentos finais do espetáculo para interpretar o papel de Seu José, o Mestre Carpina.

Além disso, essas realizações mostravam também suas qualidades de produtor bem sucedido. Ao cercar-se dos melhores profissionais, atores, atrizes, encenadores, cenógrafos, figurinistas e demais técnicos para levantar espetáculos, Paulo Autran preservou por muito tempo a função de ator-empresário que cuidava não apenas do seu lugar no palco, mas sabia que o sucesso da encenação devia-se ao conjunto de realizadores.

A necessidade de manter o empreendimento fazia com que seus espetáculos chegassem a diversas praças, não se restringindo aos palcos do eixo Rio-São Paulo. As viagens pelo Brasil afora, iniciativa da qual se orgulhou sempre, possibilitou que tomássemos contato com encenações de nível, embora, em sua maioria, concebidas para um intérprete que se mostrou distante das vanguardas e das experimentações cênicas mais arrojadas. A afirmação não diminui a contribuição de Paulo Autran como ator, produtor e também como diretor, já que concebeu espetáculos para si e para outros atores e atrizes. É sua a direção de O Homem Elefante, com Ewerton de Castro no papel principal. Mesmo sem aventurar-se nos experimentos teatrais que invadiram a cena nas décadas de 60 e 70, principalmente, o ator se aproximou de Celso Nunes, considerado como um dos primeiros encenadores a trabalhar com as propostas grotowskianas entre nós.

O lado empresarial de Paulo Autran toma corpo desde a Companhia Tônia-Celi-Autran, empreendimento que se dá quando da saída dos artistas do TBC acompanhados por Adolfo Celi, o primeiro dos diretores italianos que formataram artisticamente a empresa de Franco Zampari, marco da profissionalização dos amadores em 1948.

Anos mais tarde, já formado pela Escola de Teatro e iniciando a minha carreira como ator em São Paulo, partilhei, ainda que de maneira restrita e respeitosa, o convívio com esse ator paradigmático, referência para gerações de artistas de teatro. Através de amigos comuns, estive em reuniões na residência da atriz Miriam Muniz. Em várias delas, Paulo Autran deliciava os presentes com suas histórias e observações sobre a vida, o teatro e as pessoas. Entre os amigos que circulavam no apartamento da memorável atriz, Paulo Autran e Miriam Muniz centralizavam as atenções da platéia cativa, e, generosos, abriam espaços para que tosos se manifestassem. Ver o grande ator despido de sua grandiosidade de intérprete e contando piada, falando sobre assuntos diversos, dos mais profundos aos mais banais, era um encanto a que eu calado me rendia, desejoso de um dia de subir ao palco com ele para aprender os segredos de quem sabia lidar com a palavra, dominando-a inigualavelmente. Não tive esse privilégio, mas hoje, diante do que vi na sala desse apartamento e no palco, tenho certeza de que os ensinamentos foram dados sem que eu pedisse, sem que ele conscientemente oferecesse.

O amor pelo teatro, sua postura ética, sua discrição e generosidade somavam-se a um espírito aguçado, irônico, enfático, atributos delineadores de sua personalidade. Nessas reuniões, ele expunha seu pensamento sobre o teatro e dizia sempre que não tinha certeza de nada. A única que tinha era o teatro e a defesa dessa arte. Por ela movia o mundo, por ela manifestava-se, por ela transpunha barreiras e impedimentos, para fazer valer o ritual sagrado do teatro. Por ela fazia desde o texto clássico de difícil apelo popular até a comédia mais leve onde podia se divertir divertindo o público.

Certa feita fui levado ao seu apartamento na manhã seguinte a estréia de Coriolano, de Shakespeare, direção de Celso Nunes. Para meu espanto, na época, Paulo Autran residia na Avenida Nove de Julho, em um daqueles prédios antigos, documentos do tempo em que o centro de São Paulo espelhava o refinamento da cidade rica e globalizada, mas que na década de setenta estava em processo de degradação, sendo a avenida um fumarento e barulhento corredor de ônibus. Ao entrar no edifício e em seguida no apartamento, configurou-se outra atmosfera. A sala decorada com móveis e objetos antigos exibia o mais belo jarro de rosas, flores recebidas por Madame Morineau, atriz que fazia a mãe de Coriolano e que se hospedava na casa do seu companheiro de elenco. O amigo que me acompanhava e que também fazia parte do elenco apresentou-me, e ele, delicadamente, disse que me conhecia das reuniões da casa de Miriam Muniz e do palco. Eu só tinha feito três espetáculos até aquele momento em São Paulo.

Estive na platéia para ver Paulo Autran muitas vezes. Emocionei-me e aplaudi sua intensa criação de Willy Loman em A Morte de Um Caixeiro Viajante, de Arthur Miller. Impressionei-me com sua atuação em Equus, de Peter Shaffer, onde brilhava juntamente com o jovem ator Ewerton de Castro. Apreciei as ricas modulações vocais do ator em Traições, de Harold Pinter. Em todas essas peças, ao todo fez 90, o ator soube dominar a palavra, construiu seus personagens com inflexões precisas e por elas presentificou-os em cena, de forma a revelar sua interioridade, seus conflitos, sua graça.

Como grande intérprete, Autran soube brincar com o teatro, com o sagrado contido nele, sem desrespeitá-lo. Vivia para ele como se vive para um amante. Sua entrega total aos afazeres do palco tornava-o exemplar para os que partilhavam a cena fora e dentro dela. O respeito que tinha pelos profissionais de teatro, de camareiras a contra-regras e encenadores, fez dele um companheiro de ofício dos mais queridos na classe teatral.

O repertório que fez ao longo da carreira é assombroso, ainda que o número de autores nacionais seja desproporcional. Suas escolhas foram sempre guiadas por uma intuição oportuna de quem sabe o que pode e deve fazer no momento certo, se mantendo fiel a uma determinada estética. Granjeou com isso um público de admiradores fiéis. Mesmo quando se arriscou a empreitadas que não deram certo, manteve sempre a integridade de uma grande artista.
Ao cair o pano no ato final de sua vida, Paulo Autran, como todo verdadeiro artista, torna-se um encantado. Transfere-se para outra esfera, permanecendo na memória de quem o viu inteiro no teatro, no cinema e não na televisão, veículo que o aproximou da massa, mas não sugou-lhe a grandeza de intérprete. Em minhas retinas permanecem o Édipo-Autran vestido numa túnica branca e vermelha desenhada pelo superlativo cenógrafo e figurinista Flávio Império. Tal imagem permanece viva e se mistura a outras que ele deixou. Cabe a nós mantê-las vivas, retendo-as na memória e com isso tentar reter a efemeridade do ato teatral.

domingo, 7 de outubro de 2007

Registro 120: Lucidez

Nem tudo se perdeu: ainda há o cidadão comum

Jurandir Freire Costa*
Dois filmes brasileiros, O Ano em que meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger, e Tropa de Elite, de José Padilha, candidataram-se a representar o Brasil na competição pelo Oscar de melhor filme estrangeiro. O primeiro foi escolhido, dividindo as opiniões divulgadas pela mídia. Deixo a quem compete o trabalho de dizer qual deles dispõe das qualidades técnicas e artísticas com mais chances de premiação. De minha perspectiva, importante é discutir a imagem da cultura brasileira apresentada pelos dois.
Desse aspecto, julgo que ambos sejam extremamente bem-sucedidos. No filme de Cao Hamburger, o Brasil dos anos 70 é visto pelo olhar de um garoto, cujos pais são obrigados a fugir da repressão policial no período da ditadura militar. A criança deveria ser deixada com o avô, que, nesse entretempo, morre. Sozinho e sem ter a quem recorrer, o menino é cuidado pela comunidade judaica, à qual o avô pertencia. No final, a mãe retorna. O filme dá a entender que tanto ela quanto o marido haviam sido torturados e o último havia morrido. O menino é exilado com a mãe e, ao se despedir carinhosamente dos que o ajudaram - em especial do velho vizinho do avô, figura central no enredo -, pensa em off que "ser exilado é ter um pai que se atrasa tanto, tanto, que nunca chega".
Tropa de Elite, ao contrário, mostra o Brasil de hoje. Precisamente, o Rio de Janeiro de 1997, por ocasião da visita do papa João Paulo II. O pano de fundo é totalmente diverso: favelas, tráfico de drogas, corrupção policial e, por fim, as entranhas do Bope, a tropa policial de elite que dá título ao filme. Se o inferno tivesse alguma feição, com certeza seria algo semelhante ao que o diretor nos faz ver. Nos guetos marginais das favelas, miséria socioeconômica e miséria moral dão-se as mãos na corrida desenfreada de delinqüentes e policiais para provar quem consegue ser mais violento. Tortura, sanguinolência, delação, falta de escrúpulos, tudo fede à mais estúpida desumanidade. José Padilha não poupa talento e recursos dramatúrgicos para deixar-nos cara a cara com o que de mais macabro produzimos em matéria de desrespeito à vida e à dignidade da pessoa. Instituições falidas e indivíduos desencantados debatem-se como moscas tentando escapar da maligna teia de destruição que se contrai e os tritura de forma inexorável. É o lado do Brasil cronicamente inviável, fluindo num jorro de imagens que comovem, dão repulsa e fazem pensar.
A pergunta é inevitável: o que nos aconteceu entre 1970 e 2007? Várias hipóteses podem ser levantadas. A que mais facilmente vem à tona é de ordem político-econômica. Perdemos, afirmam alguns, as aspirações da geração 1968. Nosso destino histórico foi entregue à sede de lucros materiais e o resultado veio a galope: individualismo à outrance, consumismo, cinismo, evasão pelo entretenimento e adoração drogada do próprio corpo. A tese é discutível em alguns pontos, mas, certamente, há algo de verdade na explicação. A decadência da política - numericamente controlada por parlamentares que agem como mafiosos -, o endeusamento irracional da economia e a presença intrusiva da moral do espetáculo na vida cotidiana contribuíram, em muito, para o aparente aumento da insensibilidade em face do bem comum ou das carências do próximo.
José Padilha, entretanto, vai adiante. Quaisquer que tenham sido as causas da mudança, mostra ele, o efeito cultural foi além do imaginável. A desagregação da hierarquia dos valores éticos lesou o cerne da pessoa moral, ou seja, a capacidade que devemos ter de decidir entre o certo e o errado e dar sentido à própria vida. Em O Ano em que meus Pais Saíram de Férias, os rivais políticos sabiam por que matavam e morriam. Os defensores da ditadura achavam que torturar e assassinar dissidentes significava proteger o Brasil do perigo comunista; os partidários da democracia ou do socialismo, por seu turno, queriam restaurar o Estado de Direito democrático ou realizar a revolução. Na bela metáfora da ida para o exílio, posta na boca do garoto, isto fica patente. A esperança de um mundo melhor confundia-se com a expectativa do reencontro com o pai. O reencontro, embora indefinidamente adiado, já era presentemente vivido. Dizer que o exílio era a condição de quem esperava por um pai que nunca chegava era dizer que depois do exílio o pai e seus ideais poderiam vir a ser reabilitados.
Em Tropa de Elite, essa moral comum às utopias messiânicas dá lugar à mais desoladora desistência. Policiais corruptos ou justiceiros, marginais e estudantes usuários de drogas ilegais não sabem o que buscar, exceto sobreviver hoje e amanhã. Agem como sonâmbulos presos num pesadelo. Tudo que importa é abolir o tráfico ou manter o tráfico. Nenhum dos personagens parece sentir-se exilado, pois o deserto ético transformou-se no último horizonte de suas existências. No que dizem, palavras como violência e paz, justiça e injustiça, autoridade e obediência, soam vazias e apenas fazem eco a sentimentos de vingança, ressentimento, culpa ou autopunição. Criaturas supérfluas em um mundo supérfluo.
É aqui que o corte entre os dois filmes salta aos olhos. Visto com mais atenção, Tropa de Elite poderia ser grafado no plural, sem perda de conteúdo. Na verdade, as supostas elites retratadas no filme são duas: a policial e a universitária. O detalhe nada tem de irrelevante. Nele se repete um dos mais lastimáveis fenômenos da cultura brasileira, qual seja, a recalcitrante incapacidade de nossa autodeclarada elite de agir, de fato, como uma legítima elite. Elite - faça-se justiça à tradição lingüística - é o conjunto dos melhores. E os melhores, no credo democrático-humanitário, são os que mais contribuem para fortalecer os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. Ora, a pretensa elite nacional jamais se conduziu segundo esses princípios, donde a relação promíscua que sempre manteve com o que a polícia pode ter de mais abusivo e imoral.
Inicialmente, o retrógado senhoriato rural, candidato bastardo à elite, usou a polícia para confinar a realidade dos guetos pobres nas letras de samba e desfiles de carnaval. Foi a época de ouro das "anedotas, champanhotas" e do famigerado "sorry, periferia". Na atualidade, a sandice cultural mudou de tom, mas fundamentalmente continuou a mesma. A polícia foi, de novo, usada para deixar que os mesmos guetos se convertessem em entrepostos de drogas ilegais. Só que a criatura fugiu ao controle do criador. Os piores do andar de baixo - como reza o preconceito - se deram conta, rapidamente, de que podiam extorquir e explorar quanto quisessem os piores do andar de cima. Daí para a emancipação da tutela policial o passo foi curto. Em duas ou três décadas, os guetos marginais passaram de quitanda de drogas a centros de treinamento intensivo em sordidez moral para policiais. A leviandade político-social continuaria impune, não fosse um fato novo: o montante de dinheiro circulante com o comércio de drogas permitiu que a nata da delinqüência se armasse até os dentes para defender a prosperidade de seus negócios. Conclusão: a sociedade brasileira, uma vez mais, tem sua agenda de problemas comandada pela inconseqüência de uns poucos. O mesmo tipo de grupúsculo social, que outrora insistiu em negar a indecência humana das favelas, voltou a recorrer à truculência repressiva. Desta feita, para conter os excessos da aberração que pôs no mundo e acabou nos tornando reféns de bandidos e policiais corruptos.
Boa parte do desconforto provocado por Tropa de Elite vem do fato de percebermos que o odioso ciclo do crime não tem saída, posto que se alimenta da própria deterioração. Combater o comércio de drogas e armas com Bopes é querer extirpar a violência com mais violência, isto é, com mais da mesma coisa. Faz sentido discutir com seriedade se a legalização das drogas ilegais seria um antídoto possível para a situação; insensato é persistirmos vendo o problema pelas lentes dos habitantes desse submundo. Nesta guerra entre aspas, o inimigo não são os infelizes do lado de lá ou do lado de cá; o inimigo é a consciência degradada dos que consideram que, para o populacho, favela está de bom tamanho. Ou eliminamos essa mentalidade torpe de nossa vida cultural ou nos condenamos a suportar mais e mais carnificina.
Um dos maiores méritos de Tropa de Elite é deixar claro que a banda podre da polícia nada mais é do que o espelho da banda podre de elites que usurparam o direito a portar um nome ao qual jamais fizeram jus. Policiais corruptos e brutalizados, marginais guetificados e usuários irresponsáveis de drogas ilegais não nasceram da cabeça de Zeus. Eles são o refugo de uma ordem sociocultural que manteve o gozo dos direitos democráticos reservado a uma minoria civicamente analfabeta, moralmente míope e culturalmente descomprometida com a construção de uma nação brasileira digna deste nome.
Entretanto, se a "elite" perdeu a cabeça e alma, isso não quer dizer que tudo esteja perdido. Em uma espécie de contraponto à crua denúncia feita por José Padilha, Cao Hamburger assinala o contraste existente entre o Brasil dos restos humanos e o Brasil do cidadão comum. Este último cidadão, em 1970 como em 2007, apesar da pouca visibilidade social, não sucumbiu à moral da descrença. Sua vida, na superfície, é prosaica, mas, no fundo, é o que mantém este país de pé. Trata-se do indivíduo ordinário, que não é santo ou herói, mas, simplesmente, alguém capaz de agir com correção e honradez, se a urgência da questão o exigir. Sem rompante ou bravata, ele cultiva as virtudes cívicas elementares, como apreço pelo trabalho, pela honestidade e pela decência. Embora movido pelo egoísmo narcisista, pela tentação do oportunismo ou pela sedução do sucesso midiático, como qualquer um de nós, também sabe ser compassivo e solidário se assim for necessário. São esses brasileiros que no filme de Hamburger protegem o pequeno personagem, mesmo pondo em risco o próprio bem-estar. São eles a verdadeira tropa de elite dos ideais democráticos de homens como frei Caneca e Joaquim Nabuco; é apostando neles que traremos de volta os órfãos ainda exilados do sonho Brasil.
Para os desesperados, isso é idiotice sentimentalóide de quem não vê que "este país não presta"; para os cínicos, a súmula da mediocridade piedosa. Penso de modo diferente. Penso que esses cotidianos exercícios de respeito pelo outro e de crença no próprio poder de mudar são a quintessência da riqueza material, moral, intelectual e espiritual de um povo. Por meio deles, quem sabe, chegará o ano em que daremos férias às elites e às tropas que nos envergonham e nos privam de viver num país à altura da maioria de nós. Dois filmes a serem vistos e revistos; dois grandes cineastas, eles sim, exemplos da elite que queremos ter.
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* Jurandir Freire Costa, psicanalista, é professor do Instituto de Medicina Social da UERJ e autor, entre outros livros, de A Inocência e o Vício (Relume-Dumara, 2002) e O Vestígio e a Aura (Garamond, 2004)

domingo, 16 de setembro de 2007

Registro 119: Coitado de nós

NÃO BASTA APARECIDA TER SIDO PISOTEADA POR UM FANÁTICO PENTECOSTAL FUNDAMENTALISTA ?!
A SANTINHA DE NAZARÉ NÃO MERECIA SER ENXOVALHADA NA CLOACA SENATORIAL!

ESTAMOS PERDIDOS.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Registro 118: Poesia de um amigo

Fragmentos de uma Vingança Conjugal

Rubem Rocha Filho

Diante do brócolis todo partidinho no prato, minha concentração búdica...

Vejo Wanda comendo sua banana.

- “Anti-cancerígeno” - eu explicara.

Ela mastigava o alimento e apaziguava a aflição pela saúde, pela imortalidade até.

Conseguiria driblar a doença que levara tantos na sua família?
Mas o câncer que acabou com a mãe percorreria outras teias de traição, de sonhos de amor carcomidos (Lizt distante ao piano) de um fiel orgulho espezinhado, fatalmente os lanhos na carne aberta – o despudor do adultério do marido revelado.
Se precipitou irreversível, algo como dois meses – veloz a flor nas entranhas – de quem já ultrapassara os 80 anos; foi enfraquecendo, sem sangue, sem estima.
No entanto, ainda esboçou a vingança: um encontro clandestino com o namorado da juventude.
A
velha confidente e dentista dos anos 40, se dispôs a agenciar a troca de carícias desajeitada, quase grotesca, sussurrada ao telefone, de sexualidade há muito extinta.
Primeiro a confeitaria em Copacabana; depois o apartamento de pesadas cortinas, à espera do inquilino, à meia luz.
Nada disso se cumpriu.
Ficou a imensa ausência, a decepção povoada de culpas, a ânsia de se aferrar a vida, nem que fosse num rastro de revanche, enrugada e seca, a linha dos lábios sempre trêmula, no dente o batom vermelho, a raiz branca do cabelo, as pontas dos dedos incapazes de aderir.

Boa Viagem, março 2007

domingo, 5 de agosto de 2007

Registro 117: Sobre não ter idéias

CARLOS HEITOR CONY
Idéia e memória

- Em "La Notte", um dos filmes emblemáticos de Michelangelo Antonioni, o escritor interpretado por Marcello Mastroianni, cobrado pela mulher (Jeanne Moreau), diz que não tem mais idéias, tem memórias. Ingmar Bergman, que morreu horas antes de Antonioni, admitia que toda a sua obra nascia de seu passado, notadamente de sua infância.

Aos dois cineastas, dos maiores de todos os tempos, podemos acrescentar um terceiro, Federico Fellini, que nunca teve uma idéia precisa de nada, nem sobre o cristianismo nem sobre o socialismo, mas não quebrou a casca onde guardaria para sempre o fruto de si mesmo -tal como a Capitu adulta que estava toda na menina que se apoderava do companheiro de infância.

Entrando no assunto: o cronista não tem culpa de Antonioni e Bergman terem morrido ao mesmo tempo, pautando involuntariamente centenas de reflexões feitas na mídia internacional. Autores defasados, com técnicas e preocupações que não mais pertencem a este mundo. Mas que ficarão intactos, suspensos no ar, como aquele quarto no beco que Manuel Bandeira evocou num de seus poemas.

Escrevi sobre Bergman na crônica anterior. Deveria escrever agora sobre Antonioni. Como o personagem de "La Notte", não tenho idéias, nem me interessa tê-las. Pessoas que me julgam bem informado querem saber minha opinião sobre o acidente com o Airbus, a culpa da pista, do equipamento, do piloto. Acontece que nem formei ainda um juízo sobre Febrônio, um tarado sexual dos anos 30. Quando fugiu da prisão obrigou todos os pais a trancarem seus filhos em casa, as escolas fecharam, a besta-fera solta na cidade. Bergman teria feito um belo filme sobre Febrônio. E Antonioni mostraria o vazio das ruas, as almas cheias de tédio -pior do que o medo.
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Publicado originalmente em Folha de S. Paulo, edição de 05 de agosto de 2007

quinta-feira, 19 de julho de 2007

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Registro 115: O ovo da serpente

CONTARDO CALLIGARIS
Quadrilhas de canalhas

Está com medo de tornar-se doméstica ou prostituta? Bata em pobres, índios e putas

EM POUCAS linhas, na Folha de sexta, dia 29 de junho, Eliane Cantanhêde descreveu perfeitamente o mundo no qual é possível que rapazes de classe média queimem um índio pensando que é "só um mendigo" ou espanquem uma mulher pensando que é "só uma prostituta". Provavelmente, não teria sido muito diferente se eles tivessem pensado que era só uma empregada doméstica.

É um mundo em que a permissividade é o melhor remédio contra a inevitável insegurança social. Nesse mundo, os pais fazem qualquer coisa para que seus rebentos acreditem gozar de um privilégio absoluto; esse é o jeito que os adultos encontram para acalmar sua própria insegurança, para se convencer de que eles mesmos gozam de privilégios garantidos e incontestáveis. Como escreveu Maria Rita Kehl no Mais! de domingo passado, nesse mundo, aos inseguros não basta ser cliente, é preciso que eles sejam clientes especiais.

Uma classe média insegura é o reservatório em que os fascismos sempre procuraram seus canalhas. Você está com medo de perder seu lugar e, de um dia para o outro, tornar-se índio, mendigo ou empregada doméstica? Pois é, pode bater neles e encontrará assim a confortável certeza de seu status. Aos inseguros em seu desejo sexual, aos mais apavorados com a idéia de sua impotência ou de sua "bichice", é proposto um remédio análogo. Você provará ser "macho" batendo em "veados" e prostitutas.

Há mais um detalhe: a inteligência humana tem limites, a estupidez não tem. Essa diferença aparece sobretudo no comportamento de grupo. Imaginemos que a gente possa dar um valor numérico à inteligência e à estupidez. E suponhamos que o valor médio seja dois. Pois bem, três sujeitos mediamente inteligentes, uma vez agrupados, terão inteligência seis. Com a estupidez, a coisa não funciona assim: a estupidez cresce exponencialmente. A soma de três estúpidos não é estupidez seis, mas estupidez oito (dois vezes dois, vezes dois). Quatro estúpidos: estupidez 16. Cinco: estupidez 32.

Curiosamente, essa regra vale até chegar, mais ou menos, a um grupo de dez. Aí a coisa tranca: a partir de dez, torna-se mais provável que haja alguém para discordar da boçalidade ambiente. Não porque, entre dez, haveria necessariamente um herói ou um sábio, mas porque, num grupo de dez, quem se opõe conta com a séria possibilidade de que, no grupo, haja ao menos um outro para se opor junto com ele.

Esse funcionamento, por sua vez, decai quando o grupo se torna massa. É difícil dizer a partir de quantos membros isso acontece, mas não é preciso que sejam muitos: um grupo de linchamento, por exemplo, pode desenvolver toda sua estupidez coletiva com 20 ou 30 membros.

Em alguns Estados dos EUA, é permitido dirigir a partir dos 16 anos. Mas, em muitos condados desses Estados, vige uma lei pela qual um jovem, até aos 21 anos, só pode dirigir se houver um adulto no carro. Pouco importa que esse adulto seja habilitado a se servir de um carro. O problema não é a perícia do motorista, mas o fato estatístico de que três, quatro ou cinco jovens num mesmo carro constituem um perigo para eles mesmos e para os outros: o grupo de "amigos" potencializa a estupidez de cada um, muito mais do que sua inteligência. Talvez seja por isso, aliás, que, para o legislador, a formação de quadrilha é um crime em si. Qualquer pai de adolescente reza ou deveria rezar para que seu filho encontre rapidamente uma namorada e passe a sair na noite com ela, não com a turma dos amigos. Pois a turma é parente da gangue.

Como se sabe, o pai de um dos cinco jovens que, na madrugada do dia 23 de junho, na Barra da Tijuca, espancaram Sirlei Dias de Carvalho Pinto, comentou, defendendo o filho: "Prender, botar preso junto com outros bandidos? Essas pessoas que têm estudo, que têm caráter, junto com uns caras desses?". É o desespero de quem sente seu privilégio ameaçado: como assim, tratar a gente como qualquer um?

Não éramos "clientes especiais"?

Mas as frases revelam também a distância entre o filho que o pai conhece em casa (o filho que teria "caráter") e o filho que se revela na ação do grupinho (esse filho não tem "caráter" algum).
O que precede poderia ser entendido como uma atenuante, tipo: eles agiram assim não por serem canalhas, mas por estarem em grupo. Ora, cuidado: o grupo não produz, ele REVELA os canalhas.

terça-feira, 3 de julho de 2007

Registro 114:Lúcida reflexão

"Um cara desses"
Eliane Cantanhêde
Quando os filhos são pequenos, chutam a canela da empregada, e os pais acham "natural", fingem que não vêem. Já maiores um pouco, comem o que querem, na hora em que querem, não falam nem bom-dia para o porteiro e desrespeitam a professora. Na adolescência, vão para o colégio mais caro, para o judô, para a natação, para o inglês e gastam o resto do tempo na praia e na internet. Resolvido.

Dos pais, ouvem sempre a mesma ladainha: o governo não presta, os políticos são todos ladrões, o mundo está cheio de vagabundos e vagabundas. "E quero os meus direitos!" Recolher o INSS da empregada, que é bom, não precisa. É assim que os filhos, já adultos, saudáveis, em universidades, são capazes de jogar álcool e fósforo aceso num índio, pensando que era "só um mendigo", ou de espancar cruel e covardemente uma moça num ponto de ônibus, achando que era "só uma prostituta". A perplexidade dos pais não é com a monstruosidade, mas com o fato de que seu anjinho está sujeito -em tese- às leis e às prisões como qualquer pessoa: "Prender, botar preso junto com outros bandidos?

Essas pessoas que têm estudo, que têm caráter, junto com uns caras desses?", indignou-se Ludovico Ramalho Bruno, pai de Rubens, 19. Dá para apostar que ele votou contra o desarmamento, quer (no mínimo) "descer o pau em tudo quanto é bandido" e defende a redução da maioridade penal. Cadeia não é para o filho, que tem estudo e dinheiro, um futuro pela frente. É para o garoto do morro, pobre e magricela, que conseguir escapar dos tiroteios e roubar o tênis do filho. Isso se resolve com o Estado sendo Estado, com justiça, humanidade e educação -não só com ensino para todos e professores mais bem treinados e mais bem pagos, mas também com a elementar compreensão de que "o problema", e os réus, não são os pobres. Ao contrário, eles são as grandes vítimas.
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Publicado originalmente pela Folha de S. Paulo na edição de 29 de junho de 2007.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Registro 113: O que pensa Grotowski.

Quando confrontamos a tradição geral da Grande Reforma do teatro, de Stanislavski a Dullin e de Meyerhold a Artaud, verificamos que não partimos da estaca zero e que nos movimentamos numa atmosfera especial e definida. Se nossa pesquisa revela e confirma o lampejo da intuição de outrem, curvamo-nos com humildade. Verificamos que o teatro tem certas leis objetivas e que sua realização só é possível quando respeitadas essas leis, ou – como disse Thomas Mann – através de uma espécie de “obediência superior”, à qual conferimos “atenção condigna”. Ocupo uma posição especial de liderança no Teatro- Laboratório polonês. Não sou simplesmente o diretor, ou o produtor, ou o “instrutor espiritual”. Em primeiro lugar, minha relação com o trabalho não é certamente unilateral ou didática. Se minhas sugestões se refletem nas posições espaciais do nosso arquiteto Gurawski, é de se compreender que minha visão foi formada ao longo de anos de colaboração com ele.

Existe algo de incomparavelmente íntimo e produtivo no trabalho com um ator que confia em mim. Ele deve ser atencioso, seguro e livre, pois nosso trabalho consiste em explorar ao máximo suas possibilidades. Seu desenvolvimento é atingido pela observação, pela perplexidade e pelo desejo de ajudar; o meu desenvolvimento comum transforma-se em revelação. Não se trata de instruir um aluno, mas de se abrir completamente para outra pessoa, na qual é possível o fenômeno de “nascimento duplo e partilhado”. O ator renasce – não somente como ator mas como homem – e, com ele, renasço eu. É uma maneira estranha de se dizer, mas o que se verifica, realmente, é a total aceitação de um ser humano por outro.
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GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Civilização Brasileira, 1987, p. 22.

sábado, 23 de junho de 2007

Registro 112; A fogueira está queimando em homenagem a São João



São João, Murillo


São João, Leonardo da Vinci
São João, Xangô menino
Caetano Veloso / Gilberto Gil

Ai, Xangô, Xangô menino da fogueira de São João Quero ser sempre o menino, Xangô, da fogueira de São João
Céu de estrela sem destino de beleza sem razão Tome conta do destino, Xangô, da beleza e da razão
Viva São João, viva o milho verde Viva São João, viva o brilho verde Viva São João das matas de Oxossi Viva São João
Olha pro céu, meu amor, veja como ele está lindo Noite tão fria de junho, Xangô, canto tanto canto lindo
Fogo, fogo de artifício, quero ser sempre o menino As estrelas deste mundo Xangô, ah, São João, Xangô Menino
Viva São João, viva o milho verde Viva São João, viva o brilho verde Viva São João das matas de Oxossi Viva São João


quarta-feira, 20 de junho de 2007

Registro 111: Aula inaugural

O ATOR E SEU OFÍCIO[1]

Fernanda Montenegro

Albert Camus, falando sobre o absurdo da existência humana observa: “O ator reina no domínio do mortal. De todas as glórias do mundo, sabemos que a sua é a mais efêmera. E é também o ator quem mais percebe, entre os homens, que tudo deve morrer um dia. E, para ele, não representar significa morrer cem vezes, com as cem personagens que ele teria animado ou ressuscitado”.

Percorrendo assim os séculos e os espíritos, imitando o homem tal como ele pode ser e tal como é, o ator confunde-se com outra figura absurda: o viajante. E como viajante, o ator esgota alguma coisa ao percorrer sem cessar. Ele é o viajante do tempo e, se é um grande ator, torna-se um ansioso viajante das almas.

Para pegar um copo, ele encontra novamente o gesto de Hamlet erguendo a taça. Por isso, não é assim tão grande a distância que o separa dos seres que ela faz viver. O ator ilustra, todos os dias, essa verdade tão fecunda: a de que não existem fronteiras entre aquilo que um homem “quer ser” e aquilo “que é”.

Quanto mais estreito é o limite que lhe é dado para criar sua personagem, tanto mais necessário que ele tenha talento. Afinal, ele vai morrer dentro de duas ou três horas sob um rosto que não é o seu. É preciso que nessas duas ou três horas ele sinta e exprima todo um destino excepcional, e isso tem um nome certo: é perder-se para se encontrar. Nessas duas ou três horas ela vai até o “fim do caminho sem saída” que o homem da platéia gasta a vida toda para percorrer.

No passado a Igreja repudiava, na arte do ator, a multiplicação herética das almas, o deboche das emoções, a pretensão escandalosa de um espírito que se recusa a viver apenas um destino e se precipita então em todas as intemperanças.

A atriz Adrienne Lecouvreur, no seu leito de morte, quis confessar-se e comungar, mas recusou-se a renegar sua profissão, conforme lhe exigiam. E, por causa disso, ela perdeu o benefício da extrema-unção. Isso significa que, entre Deus e a sua profissão, ela tomou o partido da sua paixão pelo teatro.

E essa mulher, na agonia, recusando-se a renegar aquilo que chamava “a sua arte”, mostrava, morrendo, uma grandeza que nunca atingira no palco. Foi o seu papel mais belo e também o mais difícil: escolher entre o céu e uma fidelidade irrisória.
E é esta finalmente a tragédia secular na qual temos que ocupar nosso lugar: “Entre nós e a eternidade, optar por nós”.

Se, como disse Camus, entre nós e a eternidade, nós, atores, optamos por nós, isso significa que temos uma identidade. Uma identidade própria, uma história específica, uma vida singular, com suas necessidades e razões. Muitas vezes as razões do jogo teatral do ator têm razões que própria racionalidade, melhor dizendo, que o próprio enquadramento da história dos homens e a história oficial do próprio teatro menosprezam. Ou mesmo desconhecem.
(...)
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[1] Palestra realizada no Centro de Artes Livres, em março de 1983. In: Cadernos de Teatro. Rio de Janeiro: Tablado / INACEN, abr. , mai. , jun. , 1983, n° 97.

terça-feira, 19 de junho de 2007

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Registro 109: Postais da minha coleção

1920
1917

s.d


Os postais fazem parte de uma pequena coleção. Eles estão classificados como "paisagens marítimas". São postais italianos e me foram dados por Arthur Coli, artista plástico e professor. Trabalhamos juntos na Secretaria do Menor - São Paulo, na equipe de responsável pela capacitação dos arte-educadadores que atuavam nos diversos programas da Secretaria.

domingo, 17 de junho de 2007

Registro 108: Uma introdução que gostaria de ter escrito

(...)
A primeira parte do livro – “A Terra de Cinzas e Diamantes “ – conta um segmento da história subterrânea do teatro e também uma história de amor.

Eu a escrevi com a intenção de dar um testemunho sobre alguns anos que foram cruciais para o teatro da segunda metade do século XX, anos que viram a incubação e a afirmação da revolta teatral de Jerzy Grotóvski, Ludwik Flaszen, Jerzy Gurawski e daquele minúsculo grupo de atores ao redor deles. . O contexto é a Polônia socialista, em um período histórico marcado pela mediocridade de um regime policial violento e pelo ardor de uma vida intelectual e artística que era, ao mesmo tempo grito de libertação e trabalhoso artesanato de liberdade.

Parece que hoje foram perdidos todos os rastro do saber daque4les anos, no fundo nem tão distantes. E como sempre, quando desaparecem os rastros deixados sobre um terreno, a história corre o risco de se tornar retilínea, ou seja, sutilmente falsa, apesar da veracidade dos fatos que ela põe em conexão.

É possível, por exemplo, traçar uma linha que liga o teatro de Grotóvski às reformas e às buscas teatrais eslavas da primeira metade deste século: Stanislávski – Vakhtângov – Meierhold – Eisenstein – Grotóvski. Ou então uma linha menos usual, atenta ao trabalho do ator e do diretor dentro do texto e contra o texto: meierhold – Brecht – Grotóvski; ou ainda, uma linha que vai além do horizonte do espetáculo como único fim do trabalho teatral: Stanislávski – Sulerjízki – Copeau – Osterwa – Grotóvski. Todas estas conexões são corretas. Mas serve, sobretudo. Àqueles que se deram a tarefa de encontrar uma sentido e uma direção para acontecimentos do passado.

Entretanto, essas conexões são inúteis para atores e diretores que hoje se encontram a lutar contra as circunstâncias adversas, contra a indiferença e a solidão, tendo a necessidade de inventar uma casa – um teatro – na própria medida. A essas pessoas não interessa somente a grande corrente da história teatral do século XX, o relatório dos desafios vitoriosos que parecem, à distância de tempo, revoluções estéticas e descobertas fundamentais. Nas aventuras de seus predecessores, também procuram exemplos e inspirações para resolver as numerosas dificuldades cotidianas e os árduos problemas que nascem das próprias escolhas. Procuram estratagemas, técnicas, princípios e ideais para superar os obstáculos que os superam. Para os que ainda não possuem um nome, mas que tentam conquistá-lo e descobri-lo, é útil conhecer as prosaicas condições materiais em que se desenrolou a história dos sem nome.
(...)
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BARBA, Eugenio. A terra de cinzas e diamantes. São Paulo: Perspectiva, 2006.

sábado, 16 de junho de 2007

Registro 107: Um texto instigante

TEATRO NA EDUCAÇÃO
(O QUE É, AFINAL?
)[1]


Fanny Abramovich

Mistério! Dúvida! Inquietação! Afinal de contas, o que é esta matéria nova, repentinamente incluída na programação escolar, com o nome mutável de teatro, artes cênicas, improvisação teatral, expressão dramática? Em que consiste? De que se trata? Hipótese 1: São festinhas ligadas a temas cívicos (Dia da Pátria), familiares (Dia das Mães), comemorações e efemérides em geral (Semana do Índio), etc. Nada disso. Essas “festinhas” onde se pretende organizar, segundo a ótica e visão adultas, uma comemoração que nada tem a ver com a criança e/ou o adolescente, são meros pretextos para um falso exibicionismo, nem por um momento ligado a uma atividade espontânea, lúdica, solta, do aluno. Querer determinar uma data, um dia, onde a criança possa se expressar é um pouco autoritário. E, se acrescentarmos que nessas ocasiões não há nenhuma atividade expressiva (a não ser da professora), além do clima histérico que as precede, fica a pedagogia a perguntar muito sobre o porquê dessas realizações... O fato de se revestirem de um aparato solene (tirando todo o caráter de jogo) e o fato de se levarem as crianças a meras repetições estereotipadas têm demonstrado, de maneira inequívoca, que são antipedagógicas e que o caminho não é esse. Hipótese 2: É a constituição de um grupo dramático na escola. Nada disso, também. Se a expressão é um direito de qualquer indivíduo, a formação de um grupo selecionado com critérios do “tem jeito para” só leva à formação de vedetes (em geral insuportáveis). E estrelismo nunca foi objetivo educacional. Além do mais, encarada dessa maneira, passa a ser uma atividade marginalizante. E, se está integrada no currículo, não pode ser marginalizante. Se a própria escola não separa os alunos que fala francês dos que fazem ginástica, por que separá-los em uma atividade tão essencial quanto as demais? Sabe-se que a expressão não é um dom divino, mas uma forma de contato humano. Então, por que voltar ao monte Olimpo? Não, este caminho é muito pouco pedagógico, muito elitista e fundamentado em falsos critérios.
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[1] Publicado originalmente em Teatro na educação: subsídios para seu estudo, uma publicação do Ministério da Educação e Cultura, Serviço Nacional de Teatro, Rio de Janeiro, 1976, na Coleção Cartilhas de Teatro.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Registro 105: Para ler ouvindo música e...silenciar para ouvir o tempo

"Todos os homens devem morrer"

A NOTÍCIA DA MORTE voa rápido, ignorando o espaço. Chega dura como golpe de ferro que esmigalha o tempo. As agendas, mensageiras do tempo, dissolvem-se no ar. Aquele dia não lhes pertence. Naquele dia somente uma coisa faz sentido: chorar.

O poeta W.H. Auden chorou: "Que os relógios sejam parados, que os telefones sejam desligados, que se jogue um osso ao cão para que não ladre mais, que o piano fique mudo e o tambor anuncie a vinda do caixão e seu cortejo atrás. Que os aviões, gemendo acima em alvoroço, escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu. Que as pombas guardem luto - um laço no pescoço - e os guardas usem finas luvas cor de breu. É hora de apagar as estrelas - são molestas -, hora de guardar a lua, desmontar o sol brilhante, de despejar o mar e jogar fora as florestas..."

A notícia chegou e me faz chorar. O Waldo César morreu. A morte há muito já se anunciara. Não sei os detalhes. Sei que há cerca de três anos ele se recolheu em um lugar que muito amava, na companhia de árvores, riachos e bichos.

Será que ele já sabia?

Os que ainda não sabem que vão morrer falam sobre as banalidades do cotidiano. Mas aqueles que sabem que vão morrer vêem as coisas do cotidiano como "brumas e espumas". Por isso preferem a solidão. Não querem que o seu mistério seja profanado pela tagarelice daqueles que ainda não sabem.

O corpo de um morto: presença de uma ausência. Mário Quintana brincou com sua própria morte dizendo o epitáfio que deveria ser escrito no seu túmulo: "Eu não estou aqui..."Se não está ali, por onde andará? Essa foi a pergunta que Cecília Meireles fez à sua avó morta: "Onde ficou o teu outro corpo? Na parede? Nos móveis? No teto? Inclinei-me sobre o teu rosto, absoluta como um espelho. E tristemente te procurava. Mas também isso foi inútil, como tudo o mais".

Também o olhar, para onde foi? O velho Bachelard também procurava sem encontrar a resposta: "A luz de um olhar, para onde ela vai quando a morte coloca seu dedo frio sobre os olhos de um morto?".

Por não saberem a resposta, os amigos conversam. Falam sobre memórias de alegria que um dia foram a substância de uma amizade. Falam procurando o sentido da ausência. Para exorcizar o medo...

O Waldo amava a vida. Amava a vida porque conhecia a morte. Já a experimentara na morte trágica da Ana Cristina, sua filha poeta, e de sua companheira Maria Luiza. Mas ele triunfava sobre o horror da morte pela magia da música. Assentava-se ao órgão e tocava seu coral favorito: "Todos os homens devem morrer", de Bach.

De todas as artes, a música é a que mais se parece conosco. Para existir, ela tem de estar sempre a morrer. Nesse preciso momento fez-se silêncio no meu apartamento. Antes havia música, a "Sonata ao Luar". Mas, uma vez realizada a sua perfeição, Beethoven a matou com dois acordes definitivos. Tudo o que é perfeito precisa morrer. Creio que foi dessa proximidade musical com a morte que o Waldo encontrou o seu desejo de viver intensamente.O corpo morto do meu amigo me fez pensar sobre a beleza da vida. Por isso, como ele, volto-me para Bach. E é isso o que vou fazer: vou ouvir o CD "Bach", que o Grupo Corpo dançou. Se o Waldo estiver por perto, ele parará para ouvi-lo e conversaremos em silêncio...
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ALVES. Rubem. Todos os homens devem morrer In: Folha de S.Paulo, Cotidiano, 12 de junho de 2007.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Registro 104: Festa popular



Em centenas e centenas de casas rezam-se as trezenas de Santo Antônio, do dia primeiro ao dia treze. Um altar improvisado na sala de visita, duas velas aos pés do santo, a mulher puxa a ladainha. Moças pobres, vestidas modestamente, rapazes brechando. Trocam olhares durante a reza. Mas os músicos amigos da casa já se encontram por ali perto esperando que a devoção termine. Depois da reza aparecem o violão e o cavaquinho, a flauta e a harmônica, e diante do altar os pares dançam, os namorados riem. Cálices de licor de jenipapo são servidos.

Junho é o mês das festas íntimas, muitas festas, que se sucedem no correr das ruas, quase que em todas as casas, nos bairros pobres. É o mês mais alegre da cidade

No dia treze é a festa de Santo Antônio. As rezas são mais longas, a sala mais enfeitada (quase sempre bandeirolas de papel), o baile também dura a noite toda. Corre o jenipapo, come-se a canjica, soltam-se os primeiro fogos. Nos candomblés, festeja-se Ogum.
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AMADO, Jorge. Mês de junho. In: Bahia de todos os santos: guia de ruas e mistérios. Rio de Janeiro: Record, 1977, p. 138.
Bandeirolas, foto de Adenor Gondim

terça-feira, 12 de junho de 2007

Registro 103: Dia dos namorados

QUE O DIA DOS NAMORADOS SEJA LEVE, LIVRE, SOLTO




QUE O DIA DOS NAMORADOS SEJA LEVE,
LINDO, SOLTO, DIVERSO

Registro 102: A História vista a contrapelo

WALTER BENJAMIN E AS LIÇÕES DE UMA HISTÓRIA VISTA A “CONTRAPELO”
Não existe documento de cultura que não seja também um documento de barbárie... portanto, na medida do possível o materialismo histórico se distancia dela. Considera que sua missão é escovar a história a contrapelo (Walter Benjamin, Sobre o conceito de história, tese VII, c. 1940).

Walter Benjamin, que viveu entre 1892 e 1940, na Alemanha e na Europa nos agitados e transformadores tempos dos finais do século XIX e da primeira metade do século XX, foi sem dúvida um dos mais importantes intelectuais europeus em sua época. Intelectual imprescindível para uma adequada compreensão da história e da cultura européia do principio do século XX, Benjamin captou, com excepcional perspicácia crítica e concepção extremamente refinadas, várias das mais importantes lições derivadas de complicados acontecimentos históricos, e das profundas transformações sociais e culturais desta Europa já mencionada. Uma Europa que foi sacudida, sucessivamente, pela ascensão de potentes movimentos dos trabalhadores e pelos audazes intentos das revoluções socialistas finalmente falidas, pela absurda primeira grande guerra européia de 1914-1918, pela crise econômica de 1929 e posterior ascensão do nazismo, do fascismo e do franquismo e, finalmente, pela irrupção também cruel e irracional da segunda guerra mundial, configurando, a partir de todos estes processos, o claro cenário de uma autêntica e profunda crisis, tanto do projeto civilizatório global europeu, quanto do conjunto dos fundamentos da razão européia moderna.

Porque em sintonia como todos estes choques e sacudidas mencionadas, que constituem o “meio” e a “época” da trajetória biográfica de Walter Benjamin, é que vão florescer e difundir-se amplamente todos esses questionamentos intelectuais, sistemáticos e profundamente críticos, relativos a todos e a cada um dos fundamentos da moderna razão burguesa, impugnada igualmente pela psicanálise freudiana, pela antropologia crítica inglesa e igualmente pela nova historiografia francesas e pelos círculos lingüísticos austríacos, além dos marxistas italianos, russos, alemães, húngaros, polacos e holandeses, junto aos sociólogos germânicos e aos poetas, escritores e artistas de praticamente toda Europa.

Uma crise total da razão burguesa moderna, – anunciada pioneira e inicialmente, várias décadas atrás, no projeto crítico de Marx –, que ao alimentar todas estas expressões críticas e contraculturais do período entre as duas guerras mundiais, vai abrir espaço para o desenvolvimento de uma perspectiva e de uma obra original e tão aguda, como a que tem sua origem no pensamento e na escrita de Walter Benjamin.

Somente uma consideração atenta deste contexto global, de destruição e de perda total de legitimidade da civilização, da razão e da cultura européias [1] é que permite compreender, tanto o agudo corte crítico das visões de Benjamin sobre o cinema, a imprensa, o teatro e a cultura dos seus contemporâneos – e os que ele analisou e diagnosticou de maneira singularmente profunda – quanto seu original olhar a respeito do drama barroco alemão, as obras de Baudelaire e de Goethe, o inacabado estudo sobre as passagens de Paris, entre os vários temas que abordou ao largo da sua relativamente curta vida.

Assim como ele nos mostra como o cinema recém inventado vai substituir as capacidades e habilidades do verdadeiro ator de teatro, pelos truques e possibilidades derivados da aplicação das câmeras e dos instrumentos da técnica cinematográfica, quando se entusiasma com a novidade e o caráter revolucionário do “teatro de situações” de Bertolt Brecht frente ao teatro tradicional e, igualmente, quando pensa sobre o “princípio construtivo” que permite organizar e dar conta da especificidade global de uma época, desde a caracterização do barroco ao exame das passagens e da nova configuração espacial e arquitetônica de Paris que é a “capital do século XIX”, Walter Benjamin coloca sempre em ação esse olhar crítico e distanciado, derivado da observação das realidades que estuda, sempre a contrapelo. Um olhar que transpassando o aparente significado evidente das coisas e dos assuntos estudados, vai se localizar sempre desde novos desafios, de espaços pouco freqüentados, para ser capaz de marchar em direções e caminhos que interrogam os seus objetos num sentido inverso dos raciocínios rotineiros e habituais, sempre na linha de “desfamiliarizar-nos” frente a essas realidades investigadas, para descobrir nelas, mediante o raciocínio crítico e dialético, seus significados mais profundos e essenciais.

Inserindo-se então, dentro das mais genuínas tradições do pensamento crítico contemporâneo, que começa desde Marx e se prolonga até os dias de hoje, Benjamin dá curso também a manifestação deste espaço privilegiado para a crítica que se constitui na Europa convulsionada entre as duas guerras mundiais desse século XX cronologicamente por terminar [2].
(....)
_____________________________________________________________
ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. Walter Benjamin y las lecciones de una historia vista a “contrapelo”. In. Diálogos, v. 5, n. 01, p. 89-105. Maringá: Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá, 2001. Disponível http:// www.uem.br/~dialogos/ Acesso em: 19 jul. 2006. Tradução de Raimundo Matos de Leão
NOTAS

[1] Esta crise da civilização, da sociedade e da cultura européia nos anos de 1914-1945 é, em nossa opinião, um marco obrigatório de referências para a explicação da extraordinária ebulição cultural da consciência crítica que se manifesta em todas as perspectivas e correntes antes referidas. Sobre os impactos mais específicos desta crise no caso francês, temos tentado mostrar, respeito da nova historiografia francesa da mal chamada “escola” dos Annales, em nosso livro L’histoire conquérenate. Um regard sur l’historiographie francais, Ed. L’Hermattan, Paris, 2000 e também no livro Os Annales e a historiografía francesa. Tradições críticas, de Marc Bloch a Michel Foucault, Ed.Universidad Estadual da Maringa, Maringa, 2000.

[2] Para se ter uma idéia geral dos temas abordados por Walter Benjamin, cujos livros são, felizmente, traduzidos em sua maioria para o espanhol apesar, por exemplo, das ausências importantes dos fragmentos que deixou inconcluso dos estudos sobre as passagens de Paris, que já foram traduzidos para o francês, podemos ver por exemplo os livros de Pierre Missac, Walter Benjamin de um siglo a otro, Ed. Edisa, Barcelona, 19988 e Concha Fernández Martorell, Walter Benjamin. Crónica de um pensador, Ed. Montesinos, Barcelona, 1992. Sobre a obra inconclusa das ‘Passagens’ ver o livro de Susan Buck-Morss, Dialéctica de la mirada. Walter Benjamin y projecto de los Pasajes, Ed. Visor, Madrid, 1995.

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Registro 101: Influências do realismo socialista



Operários

Tarsila do Amaral

1933

Óleo sobre tela,

150 x 230 cm.

Acervo do Palácio Boa Vista

Governo do Estado de São Paulo

sábado, 9 de junho de 2007

Registro 101: Exposição























SIMILITUDE – SEGUNDO ENCONTRO
Exposição coletiva realizada no
Centro Universitário Maria Antonia, São Paulo, 1997
Cláudio Barros
Mônica Colucci
Raimundo Matos de Leão
Stela Maris Sanmartin

Pinturas/Desenhos/Objetos

Trabalhos de Raimundo Matos de Leão

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Registro 100: Lembandro Célia Helena, uma Magra inesquecível

MAGRA – Eu aceito. Você me quer como personagem... pra mim está bem. Eu gosto de me encontrar com você, eu não me sinto é capaz de representar outra vez. Mas falar é do que eu estou mais precisando.(Pausa) Por que é que eu não tento voltar ao convívio dos outros? É que eu não entendo mais nada. Eu, atualmente, tenho necessidade de falar do que me aconteceu. E eu só consigo falar quando eu sinto que estão me compreendendo de verdade, um mínimo. E isso é raro. Na verdade, com exceção de você, eu não tenho tido com quem falar. Eu não tenho com quem. E depois, as pessoas têm muito medo. E o medo delas me dá medo. Você é diferente. Você me ouve e não se assusta com o que eu digo. (Pausa) Sabe, existe alguma coisa que eu não te contei. Eu... eu... estou esperando um filho dele... de Pedro. Ele está totalmente mudo, você sabe... não diz palavra. Eu, no fundo também tenho medo de falar. Parece uma covardia, principalmente ao lado do silêncio dele, tão forte, tão terrível. O silêncio dele é tão forte, ou mais, que a palavra. A palavra é uma coisa igualmente forte, eu sei, ela é como fogo, eu acho estranho as pessoas não temerem a palavra. Ela é uma coisa mágica, eu acho até que é a coisa mágica. Eu não sabia o que queria dizer invocar. Mas eu aprendi com eles. O poder contido nas palavras é uma coisa esquecida e sepultada no fundo de nossa memória. Eu estou falando de uma coisa difícil?... Não, não me interrompa, tente compreender, não me peça fatos... você me quer como personagem, está bem... mas por enquanto eu sou um personagem que fala demais e você tem que aceitar... Em teatro a gente chama de clima, alguma coisa como uma aura que envolve uma peça ou um personagem, é sobre isso que eu estou falando. Mais: as palavras têm a força de uma granada ou de uma bomba, elas têm um poder equivalente ao de uma arma atômica, mas também quando elas são ditas, pronunciadas sem fé, sem verdade, com ignorância, aí então, elas não têm força alguma quando são ditas sem convicção. É dessa força que o silêncio dele me atrai. O silêncio dele revela uma mentira de nós todos. Nós temos usado as palavras para nos atordoarmos, nós as temos usado a esmo, nós nos confundimos com elas, elas nos justificam o tempo todo da nossa inação. Sabe, outro dia eu li em algum lugar que personagem quer dizer aquele ou aquilo através do que o som se faz: per-son-agem, persona, personalidade... O silêncio dele é a recusa do personagem, qualquer que ele seja. Eu não estou defendendo aquilo que as pessoas chama de loucura ou sei lá o quê. Eu estou dizendo que eu não posso fingir que eu não compreendo ele. Os ciganos foram embora, mas estão presentes ainda em nós. E será que eles não estiveram presentes desde sempre em todos nós? E será que eles não foram simplesmente o catalisador de alguma coisa que estava para explodir? Eu sinto uma espécie de remorso de abandoná-lo. Eu sinto uma necessidade grande de compreender tudo isso, embora eu percebe que é uma tarefa além das minhas forças... Ele foi além de mim... e isso é a loucura? Eu mesma, estou louca? Em certos momentos eu me pergunto porque é que eu estou falando ainda. O que falar? Pra quem e pra quê? Como se eu vivesse em carne viva num mundo de robôs que me machucam sem se preocuparem, a toda hora esbarrando em mim, porque eles nunca poderiam compreender o que significa esse estado. Mas eu sei que por dentro deles, existe a mesma matéria, a mesma carne e o mesmo sangue que em mim estão visíveis e neles oculto por trás de uma armadura. Eu vou menos longe do que ele. Por isso eu falo e tento explicar... é o que me prende. Essa vontade de explicar. É como se eu estivesse entre dois mundos, mas os dois coexistem, eu sei e você sabe. (Pausa). Mas eu não tenho nenhuma vontade de representar, entende? Eu não posso ter. Não me importa o que as pessoas pensem. Eu não posso esquecer. É uma espécie de fidelidade que eu devo a ele.
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ARAP, Fauzi. Pano de boca. Texto mimeografado, s.d.
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CÉLIA CAMARGO SILVA (Célia Helena)

Nascimento: 1936, São Paulo, SP, Brasil. Casamento: Raul Cortez (divórcio): filha Lygia Cortez; Ruy Ohtake: filha Elisa. Falecimento: 29/03/1997, São Paulo. Atriz de cinema (estréia em "Fatalidade", 1953), teatro (sucesso nos anos 1960 e 1970) e TV (estréia na novela "O Décimo Mandamento", 1968); destaca-se em telenovelas da Rede Globo como "Brilhante" (1982), "Mandala" (1988), etc.; Prêmio Moliére de Atriz por "Pano de Boca" (1976).



terça-feira, 5 de junho de 2007

Registro 98: O viajante retorna ao lar


NO PALÁCIO DE ULISSES

CORO DAS SERVAS

Ai ausência de Ulisses: já seu vinho bebido vinha a vinha
já seu leito apetecido.
Todo o tempo é de orgia e de banquete
e já nenhum oráculo o anuncia.

No palácio de Ulisses só a rainha
confia
de noite desfiando em seu tapete
o que fiou de dia.

PENÉLOPE

No tempo bordarei a minha a minha dor
no tempo (esse tapete) bordarei
o tempo que não passa e que passei
fiando e desfiando por amor.
No tempo estas perguntas: onde e quando?
No tempo que se vai e não me leva
àquele por quem sou rainha e serva
fiando por amor e desfiando.

No tempo que se vai e se repete
no tempo bordarei o meu tapete
num fazer-desfazer que me desfaz.

Enquanto o tempo vai e não me leva
enquanto o tempo passa e não me traz
aquele por quem sou rainha e serva

MENSAGEIRO

Dizem que um velho desembarcou em Ítaca
dizem que um velho desembarcou.
Dizem que é cego mas vê. Dizem que sabe o porquê.

E a quem lhe pergunta pelo rei
a quem lhe pergunta responde:
o rei somos nós.
Disse que o rei somos nós.

E a quem lhe pergunta por Ítaca
a quem quem lhe pergunta responde:
Ítaca está dentro de nós.

CORO DOS HOMENS DO POVO

Ítaca está dentro de nós

MENSAGEIRO

E a quem lhe pergunta o que sabe
a quem lhe pergunta responde:

VOZ

Eu nada sei que não se saiba
Ulisses está onde está
dentro de ti dentro de nós
no que não foi no que não há
ele é a voz deste silêncio
e este silêncio que tem voz.
Este silêncio somos nós
este silêncio que tem voz.

MENSAGEIRO

E a quem lhe pergunta quem é
a quem lhe pergunta reponde:

Entra o
VELHO

Quem somos donde vimos para onde vamos?
Há muito já que moro no porquê.
Nada sabemos senão que passamos.
E há sempre um homem que já foi.
Há um homeme que ainda não é.
É esse que me dói.

PENÉLOPE

Quem és tu ó estrangeiro? Quem és e donde vens?

VELHO

Pode o homem ter muitos nomes e não ter nenhum
pode ter um só nome tendo muitos.
Pode ter uma pátria e já não ter nenhuma
ou tendo muitas ter uma só.
Pode ter uma pátria que nunca teve
e pode ter uma pátria que não há.

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ALEGRE, Manuel. Um barco para Ítaca. Lisboa: Nosso Tempo, 1971, pp. 56-57

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Registro 97: Sobre vida e atores

VIDAS BEM VIVIDAS
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NA SEMANA passada, o teatro da Federação do Comércio do Estado de São Paulo mudou de nome. Chama-se agora teatro Raul Cortez.

Na realidade, a mudança já tinha acontecido na estréia da peça que está atualmente em cartaz no teatro, "Às Favas com os Escrúpulos", uma comédia de Juca de Oliveira, com a direção de Jô Soares e uma imperdível Bibi Ferreira. Ninguém melhor que um ator como Jô Soares para dirigir uma grande atriz, para deixá-la livre de dizer tanto (e de ser irresistivelmente engraçada) com uma atuação quase pudica. (Aparte. Atua também na peça Adriane Galisteu, que é sempre julgada como se o fato de ser apresentadora e modelo fosse um handicap; pois é, ela está ótima).
Enfim, na estréia da peça, na sexta retrasada, antes que começasse o espetáculo, foi projetado um breve filme de lembranças de Raul Cortez, que morreu há pouco menos de um ano, aos 73. No fim do filme, a gente aplaudiu longamente. Logo depois, aplaudimos a entrada em cena de Bibi Ferreira.

No meu caso (e imagino que fosse assim para muitos outros na platéia), não se tratava apenas do aplauso elogioso pela maestria da atriz -esse, obviamente, veio no fim da peça. As palmas iniciais me lembraram as que talvez ainda acolham, a cada noite, a aparição de Paulo Autran na cena do "Avarento": um aplauso que parece ser de agradecimento. Pelo quê? Não sei se Diderot (no "Paradoxo sobre o Comediante") tinha razão ou não. Pode ser que, como ele propunha, o ator seja um intelectual frio que silencia e controla suas paixões para estudar as expressões do sentimento humano a fim de reproduzi-lo. Pode ser que, ao contrário, o ator se esgote a cada vez, vivendo intensamente emoções que ele não imita, mas das quais ele se apropria.

Tanto faz. É provável que não haja regra, e a coisa dependa do ator, do papel e do momento. De qualquer forma, o ator se esgota ou se controla para nos oferecer o espetáculo da diversidade e da complexidade de paixões que são as nossas e que, sem o ator, não saberíamos reconhecer. O ator, de uma maneira ou de outra, revela-nos a nós mesmos. E podemos lhe ser gratos por isso.
Mas há mais. Talvez, o aplauso suscitado pelo breve filme sobre Raul Cortez tivesse também outra significação, igualmente presente no aplauso da entrada em cena de Bibi Ferreira ou de Paulo Autran -os quais, claro, estão bem vivos entre nós (e se espera que assim continuem por muito tempo), mas numa idade que encoraja a avaliação do caminho que eles percorreram. Talvez trate-se, nesses casos, do aplauso por uma vida bem vivida.

Por que, às vezes, estou a fim de aplaudir uma vida? Esse tipo de aplauso não expressa apenas a gratidão e o elogio reservados a quem se dedicou generosamente aos outros nem o encômio destinado a quem deixou no mundo uma obra ou uma marca duradouras. Tampouco estou a fim de aplaudir porque uma vida me parece ter alcançado uma forma qualquer de bom êxito material ou espiritual.

Tudo isso, claro, pode alimentar minha admiração, mas o aplauso, justamente por seu caráter teatral, é desencadeado por algo mais, algo que aparecia no pequeno filme sobre Raul Cortez e que poderia ser resumido assim: aquela vida vale a pena ser contada.

Não é fácil definir o que faz que uma vida tenha essa qualidade estética ou poética que lhe dá, por assim dizer, a grandeza e a dignidade de um romance. Não é a felicidade nem o sucesso, nem o caráter extraordinário dos eventos; uma vida pode ser uma série de fracassos, mancadas e tristezas, pode também ser trivial e, no entanto, valer a pena ser contada.

Talvez a qualidade poética de uma vida que desperta o aplauso esteja na sensação de que seu protagonista foi animado por uma obstinada fidelidade ao desejo: seja qual for a distribuição das cartas pelo acaso ou pelo destino, ele jogou bem porque jogou sem medo de jogar. Na hora de nos despedir de alguém que nos é querido, choramos nossa perda, e é normal que seja assim. Mas deveríamos festejar, quando der, a "beleza" de sua vida. E chorar, quando for o caso, as vidas que se perdem não pela morte, mas pela morte-em-vida -as vidas, em suma, dos que não conseguiram ser atores de suas próprias vidas.

Esta coluna é escrita em homenagem a Octavio Frias de Oliveira, com quem, infelizmente, ao longo destes anos, apenas cruzei. Mas fiquei um tempo lendo a história de sua vida.
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CALLIGARIS, Contardo. Vidas bem vividas. IN: Folha de S.Paulo, Ilustrada, 31 de maio de 2007

domingo, 3 de junho de 2007

Registro 96: Crítica


AS DESGRAÇAS DE UMA CRIANÇA
DE MARTINS PENA E CELSO JÚNIOR


Raimundo Matos de Leão
Doutorando e Mestre em Artes Cênicas


Está em cartaz no Teatro ISBA o espetáculo As Desgraças de uma Criança, texto de nosso primeiro grande comediógrafo, Luís Carlos Martins Pena. A encenação é mais uma produção da Cia. Experimental de Teatro do Curso de Artes Cênicas da Faculdade Social da Bahia – FSBA, e permanece em cartaz até 17 de junho, de sexta a domingo, às 20h. É uma curta temporada para um trabalho cênico que merece mais tempo em cartaz para que o público tome ciência e divirta-se com a interpretação dos alunos-atores sob a direção de Celso Júnior, também professor do referido curso.

O texto, levado à cena pela primeira vez em 13 de março de 1846, época em que o teatro brasileiro se constitui de fato com seus elementos fundantes: dramaturgos, atores reunidos por um empresário e público numeroso, inscreve-se na linhagem da comédia de costumes da qual o autor é criador entre nós. Ainda que distante no tempo de sua feitura, permanece vivo para as platéias pós-modernas. Vivo porque possibilita leituras, interferências, atualizações e encenações ágeis, além de fornecer aos atores bons personagens para uma criação segura. Quando de seu primeiro teste no palco, a comédia de Pena sofreu vários cortes determinados pelo Conservatório Dramático Brasileiro, órgão que na época encarregava-se não só de censurar os temas, mas principalmente de cuidar da qualidade literária do texto. Ainda bem que nos livramos de tal instituição, embora outras restrições se dêem no presente pela ordem econômica, que determina, via patrocínio incentivado pelas leis, um certo tipo de espetáculo.

Retomando recursos explorados em diversas de suas comédias, Martins Pena traz para a cena os casais enamorados enfrentando dificuldades para concretização da sua relação amorosa. O travestimento de personagens e o erro de pessoa são outros elementos evidenciados comicamente nos entrechos da peça, cuja ação se passa na noite de Natal. Enquanto os patrões Abel (Newton Olivieri) e sua filha Ritinha (Iriane Santana) vão à Missa do Galo, Madalena (Ava Catarina) toma conta do filho da viuvinha, lamentando-se por não poder ir á festa. Enquanto cuida da criança de forma muito pouco pedagógica e humana, ela recebe a visita do namorado, o soldado Pacífico (Alexandre Moreira). Depois de muita recusa, Pacífico concorda em tomar conta da criança para que Madalena vá à Igreja. Em seguida, o soldado vê-se em apuros porque a criança chora esganiçadamente, proporcionando ações engraçadíssimas que aumentam quando entra o sacristão Manoel Igreja (Ricardo Fariah), que já estivera na casa no começo da peça, pedindo a Madalena para entregar uma carta de amor para Ritinha. Pacífico, travestido de Madalena, recurso que usa para acalmar o bebê, sabedor do conteúdo da carta que descobrira debaixo do travesseiro da sua amada, acha que está sendo traído, atritando-se então com o sacristão. Esclarecida a confusão entre os dois, os donos da casa retornam. Pacífico e Manoel tratam de esconder-se. A bagunça aumenta, visto que Abel deseja Madalena e investe sobre ela sem saber que é Pacífico travestido. Por fim, Madalena retorna e Abel acha que em sua casa, trancado num quarto, encontra-se um ladrão. Sai para chamar polícia. Enquanto isso, Madalena e Ritinha dão fuga para os namorados. Tempo depois retornam, acompanhando Abel. Irrompe-se outra série de qüiproquós, com a criança passando de mão em mão, mais uma justificativa para o título. Finalmente os personagens entram em acordo, assim que o mal-entendido se esclarece. Tudo termina bem.

Desse entrecho simples e muito bem construído pelo autor, o diretor-professor Celso Júnior cria um espetáculo divertido, ágil entre doses de ingenuidade e deboche. Sem cair na vulgaridade do humor televisivo, Celso Júnior explora os elementos que o texto fornece optando pela chanchada, mas sem abrir mão de referências que estão em O Gordo e o Magro, Os Três Patetas e Os Trapalhões; mistura tudo isso com uma pitada maliciosa, fato que torna o espetáculo palatável e bem realizado, já que esses componentes são utilizados de maneira precisa e coerente com o gênero encenado. Sua concepção ressalta os elementos constitutivos da comédia de costume, atualizando-a.

Conduzindo os alunos-atores com segurança, o diretor possibilita a necessária estrutura para que eles se lancem no delineamento seguro das personagens, marcadamente tipos, explorados com graça e firmeza por todo elenco, ainda carente da experiência plasmada pela vivência do palco nos intérpretes. Por isso mesmo o trabalho dos alunos-atores é valorizado. Com sensibilidade cômica e sem apelações fáceis para sujeitar a platéia, eles cumprem e pontuam a ação com suas criações muito bem definidas. Desenhando marcações engraçadas e brincando com a gestualidade e os exageros do melodrama, a direção mantém o ritmo do espetáculo sem os exageros do teatro “besteirol”, gênero que ocupou o lugar da alta comédia e da comédia de costumes em nossos palcos.

Para emoldurar a cena, Celso Júnior contou com a ajuda do cenógrafo-iluminador e também professor do curso Eduardo Tudella, e da figurinista e professora Karina Alatta. Ao abrir-se o pano de boca, a platéia é envolvida pelo cenário simples e preciso. Concebido para situar a ação, serve como uma moldura leve, bem ao gosto do espetáculo. Através de estruturas vazadas, três portas que dão para o interior da casa e uma para o exterior, Tudella estabelece os limites da sala sem as paredes, usando como solução para evidenciá-las apenas o roda-pé. O cenário chama a atenção por essa solução. A sala se completa com os móveis – a mesa merecia mais atenção, visto que seu tampo não está fixado, ocasionando sobre-saltos na platéia – e uma árvore de Natal. O conjunto cenográfico destaca-se, mas se mantém orgânico no todo do espetáculo. Sua concepção realista não ilude o espectador. A teatralidade se instala e a convenção é aceita como parte do jogo do teatro. Os figurinos, ainda que bem concebidos, carecem de maior determinação quanto às características dos personagens. Ainda que tipos, eles definem-se socialmente diferentes, e isso poderia ser mais bem explorado, principalmente na escolha dos tecidos e na cor da roupa do senhor Abel.

A trilha sonora proporciona surpresa com a utilização de canções do conjunto Swing Singers, de grande sucesso nos dos sessenta, começo dos setenta. As músicas escolhidas harmonizam-se com o clima da comédia, tornando-se brejeiras a pontuar momentos do espetáculo com muita propriedade.

Por esses atributos, recomendamos uma ida até o Teatro ISBA para ver As Desgraças de uma Criança, mais uma realização da Cia. Experimental de Teatro, que objetiva colocar em cena os alunos do Bacharelado em Interpretação Teatral e também os de Licenciatura em Artes Cênicas, para que eles possam exercitar o que aprenderam na relação com a platéia. Esse jogo comunicativo está presente na encenação e ambos, intérpretes e espectadores, saem ganhando. Da mesma forma, os alunos que compõem a equipe técnica habilitam-se em outras funções necessárias para que o acontecimento teatral se realize. Cabe notar-lhes os nomes: Andressa Manso e Marília Sá (Assistentes de Iluminação), Luiz Ailton Santos Filho (Assistente de Direção), Paulo Sérgio Cerqueira (Assistente de Produção). Completam a equipe de criação, as professoras Juliana Rangel (Orientação de corpo e voz) e Marilda Santana (Produção Executiva).