sábado, 5 de maio de 2007

Registro 63: Lucidez artaudiana

O Teatro Alquímico

Entre o princípio do teatro e o da alquimia há uma misteriosa identidade de essência. É que o teatro, assim como a alquimia, quando considerado em seu princípio e subterraneamente, está vinculado a um certo número de bases, que são as mesmas para todas as artes q que visam, no domínio espiritual e imaginário, uma eficácia análoga àquela que, no domínio físico, permite realmente a produção de ouro. Mas entre o teatro e a alquimia há ainda uma semelhança maior e que metafisicamente leva muito mais longe. É que tanto a alquimia quanto o teatro são artes por assim dizer virtuais e que carregam em si tanto sua finalidade quanto sua realidade.

Enquanto a alquimia, através de seus símbolos, é como um Duplo espiritual de uma operação que só tem eficácia no plano da matéria real, também o teatro deve ser considerado como o Duplo não dessa realidade cotidiana e direta da qual ele aos poucos se reduziu a ser apenas uma cópia inerte, tão inútil quanto edulcorada, mas de uma outra realidade perigosa e típica, em, e, que os Princípios, como golfinhos, assim que mostram a cabeça, apressam-se a voltar à escuridão das águas.

Ora, essa realidade não é humana mas inumana, e nela o homem, com seus costumes ou com seu caráter, conta muito pouco, é preciso que se diga. E é como se do homem pudesse restar apenas a cabeça, uma espécie de cabeça absolutamente desnuda, maleável e orgânica, em que os princípios pudessem aí desenvolver suas conseqüências de uma maneira sensível e acabada.
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ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.49-50