domingo, 12 de outubro de 2008

Registro 213: De Mário Quintana


A vida são deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas.
Quando se vê, já é sexta feira.
Quando se vê, já terminou o ano.
Quando se vê, já se passaram 50 anos!
E agora é tarde demais para ser aprovado.
Se me fosse dada, um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando, pelo caminho, a casca dourada e inútil das horas.
Dessa forma eu digo: não deixe de fazer algo que gosta devido a falta de tempo, a única falta que terá, será desse tempo que infelizmente não voltará mais.
Mário Quintana

Registro 212: Para Nilda Spencer

Nilda Spencer

PAREM OS RELÓGIOS, MAS NÃO CESSEM OS APLAUSOS


Raimundo Matos de Leão


No Jardim da Saudade (10.10.2008), em meio à relva, árvores e canto de pássaros, os amigos artistas e não artistas levaram Nilda Spencer para outra morada. Quem sou eu para dizer que essa é a sua última morada? A nossa vã razão diz que sim, mas os mistérios são insondáveis. E do mistério se fez a arte que Nilda Spencer praticou durante cinqüenta e dois anos, a arte do intérprete. Como atriz, deixou nos palcos, nas telas do cinema e da televisão a marca do seu ofício, iniciado de maneira sistematizada quando da criação da Escola de Teatro, mas exercido antes em apresentações amadoras. Também foi pianista, atividade que sucumbiu aos encantos da arte teatral.

A primeira vez que vi a atriz em cena foi no inesquecível espetáculo Essa Noite se Improvisa, de Pirandello, sob a direção envolvente de Alberto D´Aversa, italiano de boa cepa, aportado no Brasil via Escola de Arte Dramática de São Paulo e Teatro Brasileiro de Comédia – TBC. Findava o ano de 1967 e a montagem encerrava o ano letivo da Escola de Teatro. Em cena, alunos e professores desvendavam para o público o meta-teatro pirandeliano. Nilda Spencer não era o destaque do elenco, primazia que cabia a Sônia dos Humildes, Dulce Schwabacher, João Gama, professores e ao aluno Harildo Déda, visto que seus personagens proporcionavam-lhes memoráveis interpretações. Ainda sim, Nilda Spencer obtinha seu quinhão em meio ao numeroso elenco. Com a dignidade de quem sabia que não há pequenos papéis no teatro, desempenhava uma das filhas da família retratada pelo dramaturgo italiano. Nilda no papel de Totina apresentava-se com empenho e dedicação.



Ela já fora protagonista feminina em Calígula de Albert Camus – direção de Martim Gonçalves – e em A Falecida, de Nelson Rodrigues, encenada por Carlos Murtinho. Destacara-se em Major Bárbara de Bernard Shaw, sob a direção de Luiz Carlos Maciel, entre outras realizações.


Esse sistema de rodízio de papéis importantes entre os alunos da Escola de Teatro foi uma prática instituída por Martim Gonçalves e fazia parte do seu projeto artístico-pedagógico. Mesmo que algumas injustiças tenham sido cometidas nas escolhas dos elencos das peças do repertório de A Barca, companhia criada no interior da Escola de Teatro da então Universidade da Bahia, os programas atestam tal prática. Foi no interior desse sistema que Nilda Spencer e seus colegas da primeira turma de formandos, em 1959, aprenderam e vivenciaram as diversas funções inerentes ao espetáculo. Os alunos, como ela, estiveram no palco e nas coxias revezando-se nas funções de intérprete, contra-regra, recepcionista, assistente de direção, entre outras. Foram protagonistas e coadjuvantes.


Ao ingressar na Escola de Teatro em 1968 estive próximo da professora e atriz, sempre elegante, calçando sempre sapatos de saltos altíssimos, uma compensação para sua baixa estatura. Tal artifício que a vaidade feminina não dispensava, era posto em segundo plano, visto que a esfuziante vitalidade de Nilda Spencer aumentava-lhe o porte. Anos mais tarde, ao reecontrá-la no camarim da Sala do Coro – TCA, onde fazia a protagonista de Ensina-me a Viver, ao abraçá-la vi o quanto era pequena e frágil, fruto da idade. A exuberância da mulher madura transmutara-se em graça e calma de quem sabe ter aproveitado a vida. Ao abraçá-la, não imaginávamos que se despedia do palco fazendo Maude, comemorando quarenta e cinco anos de carreira.


Estive uma única vez em cena com Nilda Spencer; foi na montagem de A Companhia das Índias, texto de Nelson Araújo, com direção de Orlando Sena. A atriz interpretava Rosélio Villarotas um ex-ministro de Eldorado, republiqueta sul-americana saída da imaginação do dramaturgo. Nilda Spencer compunha com muita habilidade o personagem; sem fazer dele uma caricatura do masculino, aproveitava-se dos recursos farsescos que a montagem de Sena possibilitava em sua moldura tropicalista, ganhando a cena de maneira hilariante. Ostentando grosso bigode, ela incorporava ao seu corpo o gestual masculinizado sabendo lidar com os estereótipos para criticar a macheza latino-americana e definir a personalidade de Vilarotas. Impagável!



Quando da escolha do elenco para a encenação de A Casa de Bernarda Alba, Possi Neto convidou Nilda Spencer para interpretar Maria Josefa. Ela não aceitou e o papel coube a Carmem Bittencourt, que retornou como atriz ao palco da Escola de Teatro depois tê-lo deixado com a turma que se desligou da instituição para criar a Sociedade Teatro dos Novos. Por esse motivo, não tive o prazer, como assistente de direção, de acompanhar o processo de criação da atriz. Presenciei o de Carmem Bittencourt, claridade em cena. E penso: com teria Nilda Spencer criado a louca-lúcida mãe de Bernada? Ele realizaria um belo feito, tenho certeza.


Mais tarde, estando em São Paulo, e excursionando pelo Brasil (1981) com a peça Escuta, Zé Ninguém, criação memorável de Marilena Ansaldi e Celso Nunes, fui abraçado por Nilda Spencer no camarim do Teatro Castro Alves. Não esqueço esse abraço. Era o abraço de quem se reconhecia em mim, pois sabia que contribuira para a minha formação como ator, que passara um tanto do seu saber e me vira engatinhar no palco. Senti o caloroso e generoso abraço e agradeci, afetuosamente, tudo aquilo que aprendera com ela.


Que a nossa memória dê conta dessa vida no palco e que não esqueçamos a forma com que Nilda Spencer desdobrou-se em tantas máscaras para revelar o seu ser de atriz, de mulher. Ela agora “dança no sétimo céu”, rindo maliciosamente da nossa transitoriedade.