sábado, 4 de junho de 2011

Registro 356: OCUPAÇÕES FLÁVIO IMPÉRIO



ENCONTRO COM FLÁVIO IMPÉRIO

Raimundo Matos de Leão[1]

A vida se encarrega de proporcionar encontros, uma variedade deles. E os encontros são como fios com os quais tecemos a nossa passagem pelo Mundo. Algumas pessoas seguem em frente, outras saem de cena e outras permanecem, não sabemos até quando. Muitas são esquecidas propositadamente e o esquecimento é resultado de razões variadíssimas. Um presente singelo, recebido recentemente, desencadeou um fluxo de lembranças. Assim, escrevo sobre um encontro, ou melhor, sobre uma pessoa que certo dia entrou em minha vida marcando-a de maneira indelével. Refiro-me ao arquiteto, professor, desenhista, gráfico, pintor, cenógrafo e figurinista Flávio Império (1935-1985).
Ao retornar do trabalho, encontro num saco plástico, dos que deveríamos abolir, uma pequena bandeja com salgadinhos (saborosos) e duas canecas de alumínio polido. O kit (salgadinhos e canecas) nomeado de Bangladesh  pelo presenteador, o encenador Celso Nunes, continha um convite para a abertura de Ocupação Flávio Império, a instalação inaugurada no Itaú Cultural – São Paulo. O evento coordenado por Vera Império Hamburguer, sobrinha do multiartista, tem espaço concebido pelo cenógrafo Helio Eichbauer e inclui a instalação Ocupação Flávio Império além de oficinas de serigrafia e exibição de filmes, permanecendo em atividade até 17 de julho na sede do Itaú Cultural, Avenida Paulista, 149. Para aqueles que não podem ir ao evento como eu, preso por compromissos profissionais, recomendo acessar http://itaucultural.org.br . O site dispõe de informações necessárias para se ter uma ideia da imensa ação de Flávio Império, um renascentista na contemporaneidade.
O material disponível é de uma beleza incontestável e diz para todos nós como um artista se coloca no mundo e se apropria dele com sensibilidade, consciência de pertencer a uma geração, compreender o legado de outros e reinventar-se a cada dia. Os depoimentos e a reprodução dos trabalhos de Flávio Império dispostos na página intitulada Ocupação fornecem pistas para que se anteveja o resultado da digitalização do acervo do artista e a criação de um site sobre sua vida e obra patrocinadas pelo Itaú Cultural. Aguardemos. O acervo foi preservado pela família, sob a responsabilidade de Amélia Império Hamburguer, irmã de Flávio Império – falecida recentemente – e deverá seguir sua trajetória sob a guarda dos sobrinhos, penso eu.
Passada as informações sobre o evento, retorno ao início, ao tema do encontro. O meu encontro com Flávio Império no tempo em que eu era ator em São Paulo. Encontro acontecido de maneira surpreendente; outros encontros se deram até que o artista desligou-se de nós e foi cenografar noutras paragens, depois de ter feitos os mais belos, instigantes e criativos cenários para espetáculo teatrais e shows, entre eles os de Maria Bethânia, uma marca constante  na carreira da cantora. Para o Teatro de Arena, para o Grupo Oficina e para produções independentes, Flávio Império fez cenários e figurinos que influenciaram uma geração e permanecem ainda como uma referência inovadora por conta das soluções postas a serviço da cena. Suas invenções extrapolam o campo cenográfico para se fazer na pintura, na arquitetura e na vida. Império construiu uma vida no palco e fez da vida um palco, sem a superficialidade do vedetismo que por vezes impregnam a vida dos artistas.
De personalidade marcante, crítico mordaz, Flávio Império conseguia equilibrar suas observações certeiras com a doçura que por vezes tentava esconder. De uma energia mística, mas não mistificadora, motivo de crítica por parte de segmentos de esquerda a que pertenceu, Flávio transcendeu estes limites para se fazer um homem do seu tempo sem as amarras dicotômicas e maniqueístas que rondam este segmento.  Flávio pertenceu ao Teatro de Arena e atuou politicamente num determinado momento de sua vida. Mas a sua inquietação, o pensamento largo e a consciência aguda fizeram com que ele se “desligasse” deste engajamento sem deixar de ser um homem engajado, mais próximo de Camus que de Sartre, penso eu. Flávio não tinha aquela concepção autoritária do poder, era contrário ao pensamento único e exaltava a liberdade de expressão, campo por onde transitava com desenvoltura. Ampliando o seu pensamento, pois fora da rigidez que acometeu muitos dos seus companheiros de trabalho, ele soube agir sempre na perspectiva da transformação.
Por onde passou, o artista deixou pistas criativas das mais instigantes. Transitando entre o erudito e o popular com desenvoltura, colhia nos dois campos os elementos estruturadores de sua obra. Atento, conseguia ver a produção dos artistas populares com olhos iluminadores, dando-lhes outros significados sem diminuir a força dos objetos colhidos por suas andanças em São Paulo, Minas, Goiás, Pernambuco, Bahia. Império respeitava de maneira responsável o trabalho dos artistas anônimos, da mesam maneira como respeitou o dos seus pares.
Descendente de italianos, o artista tinha a força telúrica dos que nascem ao Sul da península, combinados com a brasilidade que se mostrava em cada quadro, cenário, escrito. Tal combinação vai se refletir na maneira como atua. Os signos criados pelo artista ao longo de uma carreira interrompida aos cinquenta anos, mostram a capacidade de olhar o Brasil na diversidade com que o país se revela e traduzi-la esteticamente
Flávio Império dominava palavra e com ela, seduzia o interlocutor sem anulá-lo. Captava com muita habilidade o pensamento do outro, por mais simples que fosse e dialogava. Esta palavra tão gasta era vivida em seu sentido mais pleno. Interação posta em movimento, assim era a ação do artista com o mundo e com seus semelhantes.
Aprendi muito com este professor que dizia não ensinar nada e que somente facilitava o aparecimento do potencial daquele se dispusesse a entrar no jogo da descoberta, ou melhor,  da autodescoberta. Em sua casa na Aclimação, quase um sítio em meio ao bairro, depois na Rua Marquês de Paranaguá, residência de sua mãe e por fim na Rua Monsenhor Passaláqua, na Bela Vista, passei horas conversando e trabalhando com ele, pois Flávio vivia sempre em atividade e envolvia o visitante no trabalho. A conversa, às vezes marcada por longos silêncios, era o entrosamento do fazer e do pensar, não necessariamente nesta ordem. Ainda ouço sua risada, forte, suas frases irônicas, seu carinho diante das minhas carências, suas dicas sobre a arte, o artista e a vida.

Homem Nu, 1970
Serigrafia em acetato

Ganhei muitos presentes do artista, algumas gravuras destruídas pela ação do tempo; o desenho que conservo na cabeceira da cama; meu retrato Casca-máscara,  sem data, mas pintado por volta de 1976; um pano impresso com as pombas (serigrafia) que fez para o cenário de Cena Muda, show de Maria Bethânia. Lamento ter perdido a gravura em acetato, Homem Nu, que me deu por volta de 1977, quando veio pela primeira vez à minha casa. Flávio voltava de Salvador onde passara o carnaval hospedado na  casa de José Possi Neto, na Boca do Rio. Bons tempos! Nas conversas que tiveram, Possi comentou sobre mim.  Assim que Flávio retornou a São Paulo foi me procurar, levando-me a gravura.  Daí para frente nos tornamos amigos e a minha admiração, por vezes motivo de suas ironias, crescia na proporção que eu descobria um ser humano valoroso e o artista genial que era. Atuei na encenação de A Falecida (1979), de Nelson Rodrigues,  direção de Osmar Rodrigues Cruz. Acompanhei de perto a construção da cenografia concebida por Flávio Império. Deste encontro retenho a experiência  de ver um cenógrafo participar do processo desde o pensar até meter as mãos na confecção do cenário, com uma sabedoria que incluía o saber do outro. Ele não ordenava, ele fazia junto.
Na referida gravura em acetato, há um texto que reproduzo. Ele é o retrato desse grande artista:


Tens algo do fogo, tens algo do ar, tens algo da terra, tens algo dos animais, tens algo dos anjos. 
Tens a verdade e ela é livre.


[1] Professor adjunto da Escola de Teatro – Universidade Federal da Bahia.