terça-feira, 15 de maio de 2007

Registro 74: Para atores

(...) Pode-se afirmar que o verdadeiro artista está sempre disposto a qualquer sacrifício para atingir um momento de criatividade. O artista medíocre prefere não correre riscos, e por isso é convencional. Tudo que é convencional, tudo é medíocre, está relacionado a esse medo. O ator convencional põe um lacre em seu trabalho, e lacrar é um ato defensivo. Quem se protege "constrói" e "lacra". Quem quer se abrir tem que destruir as paredes.
É uma questão complicada. O que chamamos de "construção da personagem" é na verdade a produção de uma imitação plausível. Devemos, portanto, buscar outro caminho. A opção criativa consiste em produzir uma série de imitações provisórias sabendo que, mesmo que um dia você sinta que descobriu a personagem, isso não pode durar. Naquele dia específico, talvez fosse o melhor que você pôde fazer, mas deve lembrar que a verdadeira forma ainda não está lá. A forma verdadeira só chega no último instante, às vezes até depois. É um nascimento. A verdadeira forma não é como a construção de um edifício, em que cada ação é uma avanço lógico em relação à ação anterior. Pelo contrário, o verdadeiro processo de construção envolve simultaneamente uma espécie de demolição, que implica a aceitação do medo. Toda demolição cria um espaço perigoso, no qual há menos suportes e menos apoio.
Mais ainda: mesmo quando atingimos momentos de autêntica criatividade nas impropvisações, nos ensaios ou durante um espetáculo, existe sempre o risco de borrar ou destruir a forma emergente.
_______________________________________________________________
BROOK, Peter A porta aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 20