terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Registro 133: 1808 E O TEATRO BRASILEIRO

A FAMÍLIA REAL ABRE AS CORTINAS DO ESPETÁCULO TEATRAL NO PAÍS

Raimundo Matos de Leão

Doutor e Mestre em Artes Cênicas – UFBA. Escritor, coordenador e professor do Curso de Artes Cênicas da Faculdade Social.

Comemorações de efemérides históricas tornam-se momentos para se rever à luz dos atuais estudos historiográficos as ocorrências positivas e negativas dos acontecimentos passados, retirando-os do continuum para salvá-los da petrificação. Faz-se um movimento em torno da chegada da corte portuguesa ao Brasil em 1808: publicações, eventos e muita polêmica vão marcar o aniversário de 200 anos da chegada de dom João 6º aos trópicos. Primeiramente na Bahia, onde aportou em 22 de janeiro e permanecendo em Salvador até 26 de fevereiro, depois a corte segue para o Rio de Janeiro, capital da colônia, cidade que vai beneficiar-se com a chegada dos portugueses, passando em seguida ao estatuto de metrópole do Vice-Reino de Portugal e Algarves.
Além do que a farta documentação nos legou, pode-se imaginar o efeito causado pela presença da corte, tanto na Bahia quanto no Rio de Janeiro: certamente um reboliço no real e no imaginário dos sujeitos que presenciaram tal acontecimento.
Informe-se que a esquadra que adentrou a Baía de Todos os Santos estava incompleta devido à tempestade, mas uma das três naus que aportaram em suas águas trazia o regente, fato que propiciou a realização de festejos religiosos e comemorações em torno da figura do príncipe. Até aí, nenhuma novidade; fazer festas religiosas espetaculares, mescladas de elementos profanos, traço identitário do “catolicismo teatral”, é uma prática que o século XIX não deixará de cultivar, embora julgada pela aristocracia como manifestação do “populacho”, por isso de mau gosto.

As manifestações teatrais no Brasil, nos três primeiros séculos da colonização, estão marcadas pela hibridização de elementos da liturgia católica, legado da tradição portuguesa, das festas indígenas e da cultura africana transculturada. O conjunto dessas expressões sustenta essa trajetória irregular do teatro, até que se definam as linhas estruturantes do fenômeno entre nós.

No Rio de Janeiro, local escolhido para sediar a corte lusitana, além das festividades, a permanência da nobreza acarretou a desocupação de residências para dar abrigo aos europeus que chegavam. Em função da corte, os espaços públicos e privados deixam-se contaminar pelos modos do viver europeu, modificando-se o cenário social da cidade balneária. Como parte da corte absolutista e parasitaria, os nobres instalados no Rio de Janeiro vão transformá-lo, com seus hábitos e costumes, numa cidade portuguesa. Essa transformação na paisagem humana logo vai ser assumida pela população local, criando-se todo um aparato normativo que passa a reger as relações em sociedade. Para o bem ou para o mal, o brasileiro entra em uma nova ordem impulsionada pela abertura dos portos às nações amigas, intensificando-se com isso o processo de transculturação, em marcha desde os primórdios coloniais. É bem verdade que a abertura não se deu por completa, visto que normas restritivas impediram o acesso de algumas nações aos portos brasileiros, dando-se a primazia à Inglaterra.

O teatro brasileiro não ficou incólume a essa reviravolta. Os nossos antepassados do século XIX vão tomar conhecimento da estruturação definidora da tríade que constitui o fenômeno teatral - intérpretes, público e dramaturgos – já que a atividade teatral nos séculos anteriores, ainda que existente, carecia dessa triangulação basilar colocada em prática de forma incipiente. Tal afirmativa não apaga a contribuição daqueles que aturam no que compreendemos como a pré-história do teatro no Brasil.

A configuração triádica mostra-se de maneira mais autônoma a partir do momento em que o teatro sofre os eflúvios do romantismo. Entre os anos de 1836 e 1938, o teatro romântico aparece nas ribaltas dos centros mais desenvolvidos do país. Toma-se esse período como o da fundação do teatro nacional. No entanto, as alterações no panorama teatral vão se dar desde o ancoramento da corte joanina no Rio de Janeiro.
Data dos anos oitocentos a construção de diversas casas de espetáculos não apenas no Rio de Janeiro, mas em outras províncias, fenômeno indicativo de que a prática teatral requeria um lugar para ser vista. É seguro dizer que 33 teatros foram inaugurados entre os anos de 1812 e 1895, do Norte ao Sul do território nacional.

Salvador vê surgir na encosta da Montanha o Teatro São João, inaugurado no aniversário do príncipe regente (13 de maio de 1812), constituindo-se em um espaço com 340 cadeiras nos camarotes, 300 cadeiras na platéia e 400 nas torrinhas, lugares mais altos e reservados aos de pouco poder aquisitivo. Nessa configuração espacial pode-se ler de que maneira hierarquizavam-se as relações de classe.

Sobre a construção do Teatro São João, Affonso Ruy esclarece em sua História do Teatro na Bahia (1959), que ao chegar o príncipe em Salvador, as obras tinham sido iniciadas, sendo seus alicerces fruto do trabalho dos africanos presos quando do levante da nação hauçá em 1807.

A partir de sua inauguração, o Teatro São João torna-se o lugar de encontro da sociedade baiana, que não soube ou não quis conservá-lo como documento vivo de um tempo que se quer perdido. Diversos fatores podem ser enumerados para justificar o descaso com relação a esse bem público que transitou por mãos privadas, acabando-se pelo fogo nos idos de junho de 1923.

Em sua monografia histórico-analítica, O Theatro na Bahia – Da colônia à República: 1800-1923, Sílio Boccanera Júnior informa que a construção, com alguns defeitos, mostrava-se ricamente ornamentada e sua acústica tecnicamente bem realizada.

O “soteropolitano” Teatro São João não foi construído por decreto do príncipe regente, mas em 1810, desejando doar ao Rio de Janeiro de um teatro a altura de sua presença na cidade, dom João determina que se construa tal espaço, o que leva Décio de Almeida Prado a afirmar: “não se compreendia, obviamente, casa real sem seu respectivo palco, traço de união – e às vezes de desunião – entre poder e povo”.

Coube ao cabeleireiro do regente, Fernando José de Almeida, a incumbência de construir o Teatro São João, contando para isso com benefícios da coroa, sem que essa assumisse de fato a responsabilidade pelo empreendimento. Inaugurado o teatro em 1813, esse espaço reservado à representação recebeu outros nomes, em função das mudanças no cenário político. Quando da proclamação da Independência foi renomeado, passando a se chamar Teatro São Pedro de Alcântara, uma referência a dom Pedro I.

Com a vitória das forças liberais em 1831, passou a se chamar Teatro Constitucional. Altera-se o nome do Teatro ao sabor dos ventos da política, um procedimento ainda em voga quando as autoridades que usam do poder para tais determinações, e arbitrariamente mudam o nome de bens públicos. Mais tarde, o espaço recebeu o nome de João Caetano, uma merecida homenagem ao nosso primeiro intérprete, ainda que se verifique o seu descuido em fomentar a dramaturgia nacional.

A iniciativa do príncipe regente estimula portugueses e brasileiros a freqüentar as casas de espetáculo, movendo-se por necessidade de diversão, por sofisticação – o lugar público torna-se palco de exibição – por vontade de apreciar o espetáculo do ponto de vista cultural e artístico, ou por sentirem-se importantes na companhia do governante. Galante de Souza comenta sobre o hábito das famílias irem ao teatro para se mostrarem visíveis ao olhar do outro, e assim “fazer-se passar por pessoas de destaque (...), e o encantamento, que condenara as senhoras brasileiras à reclusão do lar, quebrou-se”. A necessidade pela visibilidade parece-nos ainda um motivo para que a elite vá ao teatro.

Construído o Teatro São João, tornou-se necessária a presença de artistas para animá-lo, cabendo as renomadas companhias portuguesas o privilégio de ocupar a cena. Cria-se com isso mais um laço de influência, como outros que ligam Portugal ao Brasil. O teatro que se faz no Brasil desde a presença de dom João no Rio de Janeiro é essencialmente português. Coube a companhia da atriz portuguesa Maria Torres a função de inaugurar o Teatro São João. Esse trânsito faz com que muitos dos intérpretes portugueses permaneçam no Brasil, determinando não somente o repertório de textos lusitanos e peças francesas traduzidas, mas a maneira de representar, principalmente no que concerne a prosódia. A esses elencos portugueses agregam-se atores brasileiros, estabelecendo-se então os elementos necessários para formação dos segundos pelos primeiros. Essa prática permanecerá aferrada aos palcos brasileiros até o surgimento de João Caetano, por volta de 1833, reivindicando apoio do poder público para o teatro nacional, contribuindo para a profissionalização e, sobretudo, refletindo sobre sua prática no palco, fornecendo subsídios necessários para a autonomia do ator brasileiro, elevando-lhe o status. Marcadamente nacionalista nas suas proposições, João Caetano não esquece a contribuição dos atores e atrizes portugueses na estruturação de uma prática de representar e de escrever para a cena.

Destacados os aspectos dominantes neste brevíssimo painel sobre o teatro brasileiro ao findar o período colonial, concluímos que a arte teatral – nesse momento inaugural da identidade do Brasil como nação –, vai sofrer as influências das matrizes portuguesas, vai receber os influxos diretivos da Missão Artística Francesa. Essa intervenção vai contribuir para o salto qualitativo que se percebe ao longo do século XIX, quando a produção visível no palco será apreciada e debatida pelos artistas e intelectuais, de maneira elogiosa e contributiva para o fortalecimento do espetáculo. O reverso da moeda revela também as posturas preconceituosas e excludentes que cercaram as avaliações sobre o teatro que se fez no decorrer do século.

Vale acrescentar que a instauração de uma nova prática artística, desde a chegada da família real e sua corte no Brasil, não pode ser louvada sem que se faça uma crítica aos estrangulamentos causados por esse processo modernizador imposto de cima para baixo. Olhando-se atentamente para o período anterior ver-se-á que a colônia possuía artistas de incontestável valor: poetas, músicos, escultores e pintores que se vêem relegados a segundo plano, tal a mentalidade impositiva do novo modelo estético que se quer para o lugar que abriga a corte.
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Publicado originalmente, com modificações, pelo jornal A Tarde, Cultural, 12 de janeiro de 2008, pp.4-5.