sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Registro 364: Protocolo Lunar

Em cartaz no Teatro Martim Gonçalves, Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, o espetáculo Protocolo Lunar, uma história de amor para todas as idades, cumpre com técnica e arte a sua missão, mostrar em um espaço poético a fábula contada por uma senhora "lunática" a uma garota, que sem questionar sobre lógica da existência da mulher secular, dialoga de maneira imaginativa, fazendo-nos mergulhar no universo da fantasia, do sonho e criação sem freios.

No espaço concebido por Sonia Rangel também dramaturga e diretora, a encenação mistura atores e bonecos para falar dos amores perdidos, mas que encontram lugar no espaço lunar. Espaço que se materializa de forma criativa evidenciada nos objetos iluminados com precisão e sensibilidade por Pedro Dutra. 

Na primeira etapa da fábula, quando do encontro da Velha com a Menina, o diálogo permeado de nonsense nos faz sorrir e esperar pela segunda parte quando a velha conta sobre a paixão que se perde, mas não cria desconforto. Perder e ganhar fazem parte do jogo da vida, do aprendizado...

Ainda que a transição entre a primeira parte e a segunda se alongue, não perdemos o interesse pelo que acontece. Mas a ação ganharia desenvoltura houvesse um enxugamento em boa parte do texto. Com isso desapareceria o vácuo que há na dramaturgia textual e cênica. Tal observação não retira o mérito do conjunto, visto que a força do espetáculo está nas imagens que cria.


O diálogo entre os bonecos se dá através de uma língua inventada cuja sonoridade é cativante. Os atores manipuladores merecem aplausos por tais momentos.


No palco permeado de imagens incrivelmente belas, a encenação nos diz o que é a poesia, esta manifestação intraduzível por mais que queiramos conceituá-la. Ela se manifesta de maneira intensa em nossas vidas poetizando-a. E na peça, os livros que a Velha carrega nas malas são a prova de que a poesia se faz como elaboração de forças criativas que emanam do espírito humano, desencadeadas por um querer que não se submete a uma lógica estreita. Ela é livre e se faz na disparidade.

Protocolo Lunar cativa o público, vimos isto pela reação durante o espetáculo e no final, quando a plateia aplaude não por obrigação, uma atitude recorrente nos finais dos espetáculos em Salvador, me parece.

A equipe de Os Imaginários responsável pelo trabalho cênico constitui-se como um grupo vinculado ao projeto de pesquisa Imaginário e Processos de Criação. Centrando-se no universo de Teatro de Animação, a produção do grupo mostra-se inventiva neste espetáculo, assim como em Fragmentos, animação com Beckett.

Vale a pena conferir Protocolo Lunar. Para mim foi um experiência gratificante. Dormi contente e tive sonhos saltitando por entre meus lençóis.


Penso que Federico Garcia Lorca aplaudiria Protocolo Lunar e Sílvia Orthof também. Maria Clara Machado,  certamente. Lewis Carrol,sem dúvida. Fanny Abramovich aplaudiria entusiasticamente.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Registro 363: Bons filmes, belas palavras

Ontem, ao sair do cinema, pensei em escrever sobre o filme A Árvore da Vida, mas tomado pela experiência não consegui organizar as ideias. A intensidade da obra não me paralisou, mas não querendo reduzir o seu impacto através de frases feitas não insisti, o texto ficou reduzido a um parágrafo. 
O filme de Terrence Malick causou uma funda impressão e catalizou certas preocupações que me acompanham. Aproveitando a oportunidade, digo o mesmo de Melancolia, o filme de Lars von Trier. Tanto um como o outro são filmes que mexem com o espectador e não há meio termo, ou gostamos ou detestamos. 
Logo cedo, antes de sair para cumprir a jornada de trabalho na Escola de Teatro, início do semestre, olhei a Folha de S. Paulo e dei com o texto de Luiz Felipe Pondé. O texto me satisfez plenamente. Ainda que discorde de outros textos de Pondé, o de hoje sobre o filme de Malick é preciso. Sem a sua permissão reproduzo o artigo e espero que ele contribua para aqueles que desejam ver A Árvore da Vida. Mas aviso, vá de coração aberto. Recomendo também a ida ao cinema para ver Melancolia. E tem mais, na sexta, 26, deve entrar em cartaz Homens e Deuses. Viva os filmes, os bons filmes. Vamos ao texto.
Natureza e graça
Luiz Felipe Pondé
(Folha de S. Paulo, 15 de agosto de 2011)

A vida é feita de escolhas. Uma das escolhas mais sérias na vida é o modo como vivemos a vida, se como graça ou como natureza. Essa questão é uma alternativa clássica na filosofia cristã, mais especificamente de Santo de Agostinho, morto no ano 430 d.C. Duas de suas obras, "Natureza e Graça" e "Confissões", são essenciais para entendermos este problema. 

O novo filme do misterioso cineasta americano Terrence Malick (que despreza o glamour da indústria do cinema e das festas da mídia) se abre com esta questão. "Árvore da Vida" foi o vencedor da palma de ouro de Cannes deste ano. 

Malick é um cineasta que faz da espiritualidade a matéria-prima de seu cinema, como, por exemplo, o russo Tarkovski fazia.

Já em "Além da Linha Vermelha", de 1998, com a espiritualidade na guerra, e "O Novo Mundo", de 2005, com a espiritualidade do encontro com o "outro", Malick faz da voz em "off" de seus personagens um apelo desesperado da espécie humana em busca do sentido de nossa aventura na Terra. Em Malick, cada agonia do indivíduo (cada "voz") é arquetípica do humano.

Por favor, não entenda "espiritualidade" aqui como essas bobagens de sofás que você muda de lugar para melhorar a energia da sua casa ou uma palavra para você falar de suas manias com cristais ou expectativas reencarnacionistas. 

"Espiritualidade" aqui significa a indagação essencial se a vida é fruto de uma força cega ou fruto de uma intenção bela, confrontada cotidianamente com o sofrimento inquestionável da vida.

Segundo a personagem feminina principal, a mãe dos três filhos (um deles, quando adulto, será Sean Penn) e esposa de Brad Pitt no filme, interpretada pela belíssima ruiva Jessica Chastain, há duas formas de viver: "The way of grace or the way of nature" (segundo a graça ou segundo a natureza). Podemos também traduzir "way" aqui por caminho, modo, forma ou maneira.

Esta é a chave para o entendimento mais profundo deste filme. Sem ela, você poderá ficar rodando em círculos ao redor do encontro, no enredo, entre a origem do universo e da vida na Terra (narrada em maravilhosas imagens cósmicas e paleontológicas) e a história da família que tem essa "mística" como mãe e que nos primeiros minutos recebe a notícia da morte de um de seus filhos na guerra do Vietnã (o "filho mais doce e generoso" dos três).

Eu, que sou uma pessoa essencialmente atormentada pela melancolia (como dizia semana passada ao comentar outra recente pérola do cinema, o filme "Melancolia" de Lars von Trier), considero esse conceito de "graça" do cristianismo uma das maiores criações da filosofia ocidental, além do conceito de Deus, claro. A graça sempre me encanta e, no cristianismo, ela é o "modo" de Deus criar as coisas. 

Toda vez que o mundo (e nós nele) surpreende, saindo de sua constante miséria interesseira, vaidosa, traiçoeira, monotonamente previsível, eu sinto o cheiro da graça. 

Tivesse eu que definir o modo como vivo, diria, entre a melancolia e a graça. Para mim, não há nada entre elas, só abismo.

Peço aos inteligentinhos que me poupem o blá-blá-blá do jardim da infância sobre as críticas ao cristianismo ou ao conceito de Deus. Proponho que hoje vão brincar no parque.

A graça é generosa, não pensa em si mesma, pode ser humilhada, ignorada, desprezada, mas ainda assim ela dá vida. A natureza só pensa em si mesma, submete todos a ela, é escrava de sua fisiologia, ao fim, vira pedra. 

É mais ou menos assim que a mãe "mística" define a diferença entre viver segundo a graça ou segundo a natureza.

Se a vida é fruto da graça, ela é dádiva de beleza e de bondade, se ela é apenas natureza, ela é cega e sem sentido.
 
O adulto Sean Penn será o herdeiro agoniado desta questão: a vida é graça ou mera natureza? "Devo ser competitivo", como o pai o ensinou a ser (a natureza), ou "generoso", como a mãe lhe dizia (a graça)? A morte prematura do irmão será intransponível? Como amar a vida diante da morte? Seria ela a derrota da graça? A vitória da natureza cega?