terça-feira, 5 de junho de 2012

Registro 396: Dois espetáculos, Salmo 91 e Olorum



SALMO 91
Salmo 91, texto de Dib Carneiro Neto é mais um trabalho derivado do livro Estação Carandiru de Drauzio Varella, transposto também para o cinema por Hector Babenco. Um assunto como o da vida na penitenciária paulista, e o massacre que dizimou mais de cem mortos nela trancafiada foi abordado por três das linguagens da arte: a literatura, o cinema e o teatro. Daí a sua importância, pois o tema, visto por ângulos diversos e submetido aos elementos de cada uma dos meios, forma um painel sobre a des-esperança
.
Além disso, o massacre do Carandiru, como ficou conhecida a chacina, inspirou o intenso trabalho de Nuno Ramos: a instalação denominada 111, exposta na Bienal Brasil Século XX (1994), um conjunto de meteoritos negros com inscrições, manifestação no campo das artes visuais ou plásticas. Portanto, o tema despertou o interesse de vários artistas.

É notável um traço comum entre os trabalhos, a densidade presente em todos eles, sem nenhum ranço da arte panfletária, muita acostumada ao tematizar tais acontecimentos. Os discursos citados acima seguem outra proposta e despertam sentimentos e pensamentos mais profundo que um panfleto.

Salmo 91 esteve em cartaz na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, em Salvador, depois de uma temporada no Teatro Molière. Dirigido por Djalma Thürler, Salmo 91 é composto por dez monólogos correspondendo aos personagens interpretados por cinco atores, Lucio Tranchesi Rubio, Fábio Vidal, Duda Woyda, Rafael Medrado e Lucas Lacerda.

Originalmente, o texto não determina um cruzamento entre os monólogos, já que se mostram independentes, mas o diretor faz com que eles se cruzem, com os atores interagindo na dramaturgia cênica, opção que dinamiza o espetáculo de maneira intensa, com belas cenas retiradas de um material não tão belo: a vida passada, as condições de vida na prisão, os relacionamentos entre os presos. Colabora para a plasticidade da encenação, o espaço trabalhado pelo cenógrafo carioca José Dias e pela iluminação que recorta a cena, dando-lhe contornos para cada momento específico deste bom trabalho diretivo.

Djalma Thürler conduz seu elenco com precisão, retirando de cada intérprete bons momentos, marcando a cena de maneira orgânica, ainda que alguns intérpretes se destaquem pela entrega emocional e pela técnica que sustenta a criação. Mantendo a atmosfera e delineando cada personagem, os atores não resvalam em nenhum momento para a caricatura. A intensidade de algumas interpretações não beira o exagero.

Espetáculo bem acabado, Salmo 91 precisa ser visto e discutido. Para tanto, espera-se que retorne ao palco não somente para o amadurecimento de suas constituintes, mas para apreciação por parte do público interessado em bom teatro. Seu tema pode afastar espectadores, mas não aqueles atraídos pela humanidade que emana do tema e que podem se deixar tocar por suas contradições, sua violência e jogos de poder. Dib Carnerio Neto, ao adaptar o livro para o palco, não trata seus personagens sob a tinta do maniqueísmo. Ao expor cada um na sua inteireza, adentra por um universo rico de nuances reveladoras de uma vida no crime. O autor, o diretor e, sobretudo, os intérpretes reviram as almas atormentadas destes homens encarcerados, expondo para o espectador os personagens, mas sem tomar partido e sem julgamento prévio. O que se passa no palco é uma fatia tragicômica da realidade revestida de poesia, mas sem mascaramento. Os personagens são o que são e buscam sobreviver diante das circunstâncias. O espetáculo vive pela sua intensa poesia, pois o real se metamoforseia em objeto estético.

OLORUM
Em cartaz no Espaço Xisto Bahia, temos Olorum, texto de Gildon Oliveira sob a direção de Elisa Mendes, espetáculo do Grupo NITA. O autor reconta no palco o mito da criação do mundo e do homem, a partir da matriz africana. Ao recontar a aventura de Oxalá e Odudua, sua irmã (na versão adaptada), Gildon trabalha com a estrutura do épico, opção que facilita, de maneira criativa, a compreensão do mito por parte do espectador.

Transitando por universo aparentemente conhecido, o autor conduz a criança, espectador para o qual se destina o espetáculo, para o interior da narrativa fecunda, pois constrói seu desenrolar intercalando a ação dramática com intervenções de narradores que fazem avançar o que se conta. Por veze, esta escolha rompe com a representação de situações ricas que a poesia dramática possibilita quebrando-lhe a atmosfera e interrompendo o fluxo emocional, ponto central do drama, para ressaltar a objetividade do gênero épico., um traço determinante da encenação concebida por Elisa Mendes.

A diretora arma o espetáculo em um espaço neutro, tendo ao fundo um painel formado por pequenos recortes brancos que lembram bandeirinhas, mas que nada contribui para o todo da encenação. E não funciona nem como elemento decorativo. Mas a solução encontrada para caracterizar o Orum (céu), uma árvore em miniatura à beira do proscênio, é teatral e plena de significados.

O figurino esclarece enquanto elemento da linguagem. Em alguns casos, como o de Oxalá e Odudua, tornam-se peças expressivas caracterizadoras dos personagens, pois são criativas bem adequadas ao contexto da peça. Coube a Hamilton Lima a responsabilidade pelo cenário e figurinos.

Com excessivas cenas de dança que não contribuem para o desenrolar da ação, o espetáculo se sustenta na qualidade do texto, nos bons desempenhos dos atores (Mariana Freire, Jussara Matias, Marinho Gonçalves, Leandro Villa), dos bailarinos (Denys Silva, Claudionor Neto, Beatriz Costa), na sensível iluminação de Marcelo Marfuz e sobretudo nas canções de autoria de Gildon Oliveira e Ângelo Castro.

Por fim, a escolha do tema é exitosa, pois coloca de maneira apropriada um tema pertencente ao contexto cultural baiano, coim suas raízes na matriz africana, marco também da brasilidade. Vale conferir Olorum, demonstração de que o teatro para criança em Salvador atinge uma qualidade visível como neste espetáculo. Espera-se que a cena destinada a um público numeroso saiba manter-se em um nível estético sem concessões ao comercialismo que por vezes ronda os produtos culturais oferecidos aos espectadores em formação. Assim, os responsáveis por levar as crianças ao teatro podem escolher de maneira criteriosa aquilo que elas apreciariam sem diminuir-lhes a inteligência e a sensibilidade

Èpa Bàbà!