segunda-feira, 14 de maio de 2007

Registro 73: A Última Gravação

A ÚLTIMA FITA

Uma peça de Samuel Beckett

[Tradução de Wilton Rossi]

Tarde da noite no futuro.

Na casa de Krapp.

No centro, à frente, uma pequena mesa cujas duas gavetas se abrem em direção ao público. Sentado à mesa, de frente para o público, ou seja, no lado oposto das gavetas, um velho homem fatigado: Krapp.

Calças pretas desbotadas, muito estreitas para ele. Colete preto desbotado, quatro grandes bolsos. Um pesado relógio de prata com corrente. Camisa branca encardida aberta ao pescoço, sem colarinho. Surpreendente par de botas brancas sujas, tamanho 42, no mínimo, muito estreitas e pontudas.

Rosto pálido. Nariz arroxeado. Cabelos grisalhos em desalinho. Barba por fazer.

Muito míope (mas sem óculos). Pouca audição.

Voz arranhada. Entonação peculiar.

Andar penoso.

Na mesa um gravador com microfone e algumas caixas de papelão contendo fitas gravadas.

Mesa e área adjacente próxima sob forte luz branca. O resto do palco no escuro.

Krapp permanece imóvel por um momento, solta um grande suspiro, consulta seu relógio, examina seus bolsos, retira um envelope e o coloca de volta, tira um pequeno molho de chaves e o levanta à altura dos olhos, escolhe uma chave, levanta-se e desloca-se para a frente da mesa. Abaixa-se, destranca a primeira gaveta, examina seu interior, mexe dentro dela, retira uma fita e a examina, guarda a fita de novo, tranca a gaveta, destranca a segunda gaveta, examina seu interior, mexe dentro dela, retira dela uma grande banana e a examina, tranca a gaveta, põe as chaves de volta em seu bolso. Dá meia volta, avança rumo à borda do palco, pára, acaricia a banana e a descasca, joga a casca no chão diante de seus pés, põe a ponta da banana em sua boca e permanece imóvel, olhando à frente para o vazio. Finalmente morde a ponta da banana, vira-se e começa a andar de um lado para o outro na borda do palco, sob a luz, ou seja, não mais que quatro ou cinco passos em cada sentido, mastigando meditativamente a banana. Pisa na casca, escorrega e quase cai, recupera-se, inclina-se e examina a casca e, finalmente, ainda abaixado, a empurra com o pé através da borda do palco para o fosso. Continua a andar de um lado para o outro, termina a banana, volta para a mesa, senta-se, permanece um momento imóvel, solta um grande suspiro, retira as chaves de seu bolso, levanta-as à altura de seus olhos, escolhe uma chave, levanta-se e vai até a frente da mesa, destranca a segunda gaveta, retira uma outra grande banana e a examina, tranca a gaveta, recoloca as chaves em seu bolso, vira-se e avança para a borda do palco, pára, acaricia a banana, retira sua casca e a atira para o fosso, põe a ponta da banana em sua boca e permanece imóvel olhando à frente para o vazio. Finalmente tem uma idéia, coloca a banana em um bolso do colete, com a ponta aparecendo, e corre o mais rápido que pode para o fundo do palco, no escuro. Dez segundos. Barulho alto de uma rolha sendo retirada da garrafa. Quinze segundos. Volta para a luz carregando um velho livro registro e senta-se à mesa. Põe o livro na mesa, limpa sua boca, limpa suas mãos na frente do colete, junta-as vivamente e as esfrega.

KRAPP
(Animadamente) Ah! (Inclina-se sobre o livro, vira as páginas, encontra o ponto que procura, lê.) Caixa... trrês... fita... ccinco. (Levanta a cabeça e olha para a frente. Prazerosamente.) Fita! (Pausa.) Fiiiita! (Sorriso alegre. Pausa. Inclina-se sobre a mesa, começa a examinar e mexer nas caixas.) Caixa... trrês... trrês... quatro... dois... (Com surpresa) Nove! Meu Deus! ...sete... ah! A safadinha! (Pega a caixa e a examina.) Caixa trrês. (Coloca a caixa sobre a mesa e a abre. Examina as fitas no seu interior.) Fita... (Examina o livro.) ...ccinco... (Examina as fitas.) ...ccinco... ccinco... ah! A malandrinha! (Retira uma fita e a examina.) Fita ccinco. (Coloca-a sobre a mesa, fecha a caixa três, coloca-a junto às outras, pega a fita.) Caixa trrês, fita ccinco. (Inclina-se sobre o gravador, levanta a cabeça. Prazerosamente.) Fiiiita! (Sorriso alegre. Inclina-se, insere a fita na máquina, esfrega as mãos.) Ah! (Examina o livro, lê uma passagem no pé da página.) Minha mãe finalmente em paz... Hmm... A bola preta... (Levanta sua cabeça, olha confusamente para a frente. Intrigado.) Bola preta?... (Examina novamente o livro, lê.) A enfermeira morena... (Levanta a cabeça, medita, examina novamente o livro, lê.) Pequena melhora das condições intestinais... Hmm... Memorável... quê?! (Olha mais de perto.) Equinócio, memorável equinócio. (Levanta a cabeça, olha confusamente para a frente. Intrigado.) Memorável equinócio?... (Pausa. Dá de ombros, examina novamente o livro, lê.) Adeus ao (Vira a página.) amor.

Levanta sua cabeça, medita, inclina-se sobre a máquina e a liga, assume a posição de audição, ou seja, inclina-se para a frente, cotovelos na mesa, mão em concha na orelha, face para a frente.
_______________________________________________________
No início da década de setenta, na Escola de Tetro da Universidade Federal da Bahia,vi uma encenação do texto de Samuel Beckett. Quem fazia o Velho Krapp era o aluno-ator Harildo Déda, cujo trabalho impressionava pela composição que o ator criou, vencendo a idade inadequado para o papel. As qualidades do intérprete tornavam-se visíveis no palco não apenas pela composição detalhada e precisa, mas sobretudo pela compreensão do universo do autor. Estavam em cena no corpo e na voz a caducidade, o absurdo do tempo, a inação, as frustrações do personagem. A encenação não primava pela inventividade. E como exercício de direção de uma aluna do curso, não explorava as possibilidades que o texto de Becktt oferece no seu quase nada, visto que ação se passa num lugar fechado, mínimo, onde se vê uma mesa e uma velho gravador de rolo onde Krapp ouve gravaçãoes de um tempo passado revisitado a cada instante. O jovem Krapp aparece na voz firme e vigorosa, criando uma partitura para a voz do idoso e decrépito personagem em cena e que ouve suas lembranças. Ao tentar gravar novas fitas, Krapp não consegue. Resta somente o silêncio...O ator Harildo Déda mostrava a senilidade de Krapp e os instantes em que, iluminado pelas lembranças, deixava entrever no rosto e nos gestos os rasgos de felicidade que restam impressos na fita e que o gravador traz para o presente. Um belo trabalho, inesquecível.