segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Registro 133 A: Iluminação Natalina

Folheando os jornais do dia, eu encontrei o texto se Guilherme Wisnik (Folha de S. Paulo, Ilustrda, 24 de dezembro de 2007). Resolvi publicá-lo no Cenadiária por ser aquele que me diz mais sobre a iluminação natalina. Sua reflexão foge da mesmice que cerca a maioria do que se escreve sobre o Natal. O processo de iluminação, segundo a sua ótica, é difícil de ser vivido, de ser atingido em sua plenitude. Mas vale a pena tentar... cada um que encontre os caminhos para atingir esse estado diante do indizível. Mas que esse caminho nos afaste das trilhas do fundamentalismo, seja ele qual for.
Iluminação genital

Guilherme Wisnik

NAS PÁGINAS do Apocalipse, são João tem a visão de uma ordem divina que sobrevém ao Juízo Final. É a Nova Jerusalém, descrita como uma cidade quadrada, com doze portas, e cuja praça é "de ouro puro, como vidro transparente". Uma cidade que, no dizer do evangelista, não necessitava mais de Sol nem de Lua, "porque a glória de Deus a tem iluminado, e o Cordeiro (Jesus) é a sua lâmpada".

Considera-se que o primeiro emprego mais extensivo do vidro, na história da construção, data do século 12, com os vitrais das catedrais góticas. Em grande parte, dada à vontade de que estas pudessem equiparar-se simbolicamente à imagem diáfana da Nova Jerusalém descrita por são João Batista, na qual o ouro coincide com o cristal, e o brilho reluzente é sinônimo de transparência (significativamente, quase todas as catedrais trazem representações do Apocalipse em suas portas).

Avanço técnico surpreendente numa época ainda conservadora, em que o horizonte humano se estreitava com a possibilidade iminente do final dos tempos. Daí que a idéia de uma luz que vem do alto se mantenha, ainda hoje, ligada à dimensão da transcendência, mesmo em um tempo em que a desmaterializada fachada de vidro se tornou o símbolo do "esclarecimento", isto é, das "luzes" da razão.

Certa vez um aluno, numa aula minha, querendo referir-se à luz zenital de uma construção (que entra pela cobertura, através de clarabóias), confundiu-se e falou em "iluminação genital". Ato falho que é um verdadeiro achado, já que a abertura vaginal é a primeira luz que "vemos" na vida. E, convenhamos, ela está no zênite do percurso do bebê em sua travessia pelo canal de parto, ao final do qual considera-se que a criança foi literalmente dada à luz.

Ao nascer, chegamos ao céu. Que é, por sua vez, a terra. Assim, as "partes baixas" sobem para o zênite, e eu diria que esse aluno teve, naquele momento, uma súbita iluminação: a vagina como uma Novíssima Jerusalém. Imagino que Freud gostaria da associação, particularmente sugestiva no dia de Natal. Em vez de representar uma dimensão inacessível do mundo (sobrenatural, platônica), essa luz nada mais é do que o próprio mundo no qual entramos.

Por outro lado, esse encontro com a luz é, agora, uma experiência ao mesmo tempo sublime e traumática. Pensemos, por exemplo, na dificuldade do Menino Jesus em romper aquele umbral virginal. Terá visto uma luz mais mortiça e bruxuleante do que nós? Mesmo sendo ele a "lâmpada" dos homens, não foi dispensado de ver, um dia, essa luz no fim do túnel como uma espécie de "Juízo Inicial": o momento em que o feto se individua, passando a ter uma bagagem própria e totalmente intransferível.

É freqüente a associação entre o espaço da igreja e o ventre materno, o conforto uterino. Pois o interior em penumbra da igreja, todo envolto em mistério, é sempre vedado à vista desde o exterior, ficando protegido por um anteparo situado em frente à porta, como um hímen. Reservadas, elas são como virgens guardando-se para aquilo que virá depois do Apocalipse.