quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Registro 339: "Mar Me Quer". Quero mais esse mar



Belo momento de Eddy Veríssimo.

Dei conta de mais um espetáculo da temporada 2010 ainda em cartaz neste verão de pouca gente indo ao teatro. Mas será o teatro uma atividade para muitos? Talvez na Grécia Antiga. Refiro-me a Mar Me Quer, espetáculo apresentado pela Outra Companhia de Teatro. Embora sem muita convivência com os participantes da Cia, todos eles me são simpáticos, principalmente Eddy Veríssimo e Roquildes Júnior, jovens que tocam o projeto e estão em cena com Luiz Buranga e Manuela Santiago, sob a direção de Luiz Antônio Jr.

Mar Me Quer é inspirado na obra do angolano Mia Couto, sendo o texto em cena derivado do trabalho de Natália Luiza e da dramaturgia de Luiz Antônio Jr. Não sei se o espetáculo foi concebido para o espaço onde é mostrado, o Café do Teatro Vila Velha, local da apresentação vista por mim. Mas vejo que o espaço escolhido proporciona um contato muito próximo do público com os atores e condiz com a concepção da encenação sua atmosfera intimista, viagem aos desvão da memória que cativa o espectador. Falo por mim

Ao rés do chão, uma lona com desenhos e inscrições desbotadas demarca o lugar da ação, cabendo ao público ocupar três lados do grande retângulo. Poucos objetos povoam a cena, entre eles um grande baú, pequenos bancos, alguns instrumentos musicais e mais outros apetrechos que são utilizados no decorrer da representação. No mais, quatro atores assumindo os personagens Zeca, Luarmina e Celestino para contar a história de Zeca em contato com seu avô morto. O que se conta é a vida decorrente da paixão por uma mulher que liga o neto ao avô Celestino, sem que Zeca saiba do acontecido entre o avô falecido e a mulher Luarmina. Outro personagem redivivo é Agualberto.

Narração dirigida ao público (forte presença do épico) e contra-cena são os elementos para que a história seja contada e os intérpretes se encarregam muito bem da ação dramática, pontuada por emoção dosada, que não faz barulho. O tom monocórdio que por vezes se impõe não diminui a atenção do espectador, visto que os atores se entregam aos personagens com muita sinceridade e delicadeza. Aliás, delicadeza cai bem para definir a encenação de Luiz Antônio Jr, que soube trabalhar o material com segurança, ainda que se deixe levar por algumas “teatrices”. Voltarei a elas.

As imagens criadas após nove meses de trabalho atestam a depuração da pesquisa cênica e a dramaturgia flui em um tônus preciso, visto que os atores sabem com que lidam e estão em sintonia com a proposta.  Como não conheço o original, não posso opinar sobre a fidelidade a ele. De qualquer maneira o que está em cena satisfaz, é o que importa. Mergulhamos no terreno da memória através do diálogo entre neto e avô, conversas entremeadas de palavras inventadas, como “atarantontos” junção de atarantado e tonto, tornando o diálogo saboroso.

Um humor sutil perpassa a cena e a paixão por Luarmina surge na evocação do avô e na relação de Zeca Pérpetuo com ela. Como pano de fundo e presença poética, o mar. Elemento que dá sentido as emoções apaixonadas dois homens por uma mulher, o mar, símbolo da dinâmica da vida, é lugar de de nascimento e de transformações. Sua águas em constante movimento nos fazem pensar na transitoriedade. Ambivalente, o mar é ao mesmo tempo a imagem da vida e da morte. O mar é então uma metáfora...

A encenação segue em um ritmo bastante seguro, pontuado pela marcação simples, mas apropriada ao contexto. A iluminação de AC Costa e Marcos Dedé cria atmosfera necessária para a tessitura da encenação, com efeitos sutis variando a cada instante, procurando sempre servir à cena sem perder a sua singularidade em meio ao outros elementos. Os figurinos de tons esmaecidos estão em consonância com o espírito da montagem e ligam-se harmoniosamente ao cenário de Lorena Torres Peixoto.

O elenco tem um desempenho homogêneo. Durante ação, os dois atores e as duas atrizes assumem os três personagens, cada um tirando partido dos personagens que revezam entre si, sem que se perca a unidade. Insisto novamente na elocução necessitando de mais variações e do canto com mais firmeza e trabalho vocal para que a narração se faça mais intensa e o diálogo entre os personagens se faça mais variado como são os signos corporais, muito bem desenvolvidos e expressivos. Estes ajustes ampliarão a qualidade das interpretações, já amadurecidas pelo tempo de ensaio e de espetáculos realizados. Destaco a expressividade de  Eddy Veríssimo e Manuela Santiago, a versatilidade de Roquildes Júnior (quando ele faz Luarmina, em nenhum momento resvala para trejeitos fáceis) e a presença marcante de Luiz Buranga.


Agora, vamos às “teatrices”: pergunto-me o porquê uma maquiagem exagerada com excessivos tons vermelhos? Não vejo sentido no todo da encenação, tornando-se um efeito duvidoso. Da mesma forma, indago sobre o motivo de uma atriz vestir tantas saias em um determinado momento. Da mesma forma questiono a presença de várias lanternas postas em um cabideiro e depois guardadas no baú, sem que se saiba a razão de estarem em cena.

É certo que o diretor pode explicar tais efeitos, mas durante a encenação me parecem ruídos desviando a atenção daquilo que é importante. Em cena, sabemos, as coisas precisam fazer sentido para o espectador e gerar um significado. Confesso não captar as intenções do encenador.

Por outro lado, ressalto a opção por uma sonoplastia feita em cena pelos atores e utilização de objetos inusuais. Retira-se deles uma sonoridade mágica que nos conduz para o interior da cena. Mais um achado da direção é fazer com que o morto fale através de um aparelho emissor de rádio portátil. O texto é reproduzido por outro aparelho encaixado no chapéu usado por Zeca. Bela mediação entre morto e vivo. Ainda mais um detalhe, não aproveitado a contento. Quando o público entra, recebe um barquinho de papel, mais tarde, os espectadores são solicitados a desmontar o brinquedo e ler o texto impresso na folha de papel, enquanto um ator diz o texto de maneira não muito segura. Penso no que seria a cena, caso o público fosse envolvido e interagisse, ocorrendo a leitura coletiva. O baú que é transformado em barco é um achado muito eficiente; num dado momento o neto conduz avô e este depois leva o barco sozinho até desaparecer nas sombra. A imagem do morto conduzindo o barco me lembrou a barca de Caronte.

Tais observações não diminuem a qualidade da encenação. Da mesma forma como agradou no recente Festival Nacional de Teatro do Recife, sei por fonte confiável, Mar Me Quer é uma realização artística de uma Companhia que vem realizando um trabalho sério e constante. Residentes no Teatro Vila Velha, diga-se um fator importante para a sobrevivência do grupo e da qualidade estética de suas criações, A Outra Companhia de Teatro nos dá um espetáculo cujos senões são pequenos diante do que apreciamos.

Longa vida é o que desejamos ao grupo que em fevereiro retorna a cartaz com Mar Me Quer, um mar querido de se ver.