quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Registro 332: Dzi Croquettes - Libertários


Acabo de retornar da Sala de Arte Cinema da UFBA onde vi o documentária de Tatiana Issa e Raphael Alvarez, Diz Croquettes. Imperdível, principalmente para quem acha que faz vanguarda no tempo de agora e muda comportamentos e quebra paradigmas na cena.

Ao ver o filme, as emoções voltaram com a mesma força de outrora, quando eu vi pela primeira vez o grupo de rapazes, seu show, suas vidas. Lembro-me bem. Em 1974, recém chegado a São Paulo, estive na plateia do Teatro Maria Della Costa para ver duas, três, quatro vezes os Dzi Croquettes. Eu era um jovem ator, fazendo o meu primeiro espetáculo sob a direção de Márcio Aurélio também estreante. Nas folgas, íamos ver os Dzi, uma ilha libertária em meio à caretice reinante naquele momento, fim do terrível governo Médici. Seguíamos em bando aquele grupo alegre e sempre purpurinado nas festa, nos restaurantes, nos bares e boates. A purpurina era uma marca registrada do grupo, e os  tietes e  desbundados aderiram ao enfeite e a descompostura, botando os velhos hábitos e o bom comportamento de pernas para o ar, tanto na vida quanto na arte. Arte e vida misturavam-se sem nenhum pudor, artaudianamente. Grotesco e lirismo sem pudor, deboche desregrado, vitalidade cênica exercida com talento, com técnica. A qualidade dos atores era visível e a técnica rigorosa e disciplinada de Lennei Dale aparecia na performance de cada um. A cena sob o som de Assim Falou Zaratustra era impactante. Nada era improvisado, embora houvesse improviso. O ritmo da cena contagiava e não havia buraco nas duas horas do espetáculo. Valorosos rapazes. Os sobreviventes, são hoje senhores, alguns com visual menos Croquette, mas ainda brilha em cada um o fulgor de quem se sabe dono da história, a individual e a coletiva. A rapaziada era da pesada, mas de alma bailarina.

Era tanta purpurina que se a polícia quisesse encontrar alguém, bastava seguir o brilho colorido que se espalhava do palco para a plateia e impregnava roupa e corpo.

Em cena, Wagner, Cláudio, Ciro, Reginaldo, Leni, Carlinhos, Elói, Bayard, Benedito e outros que não me lembro agora, depertavam as mentes e os corpos adormecidos e passavam aquela energia desreprimida. Apontavam caminhos, negando o discurso da direita e desconfiando das palavras de ordem da esquerda. Riam de tudo e, sobretudo deles mesmos.

Atitude contracultural, marcadamente libertária, o posicionamente dos rapazes, nem macho nem fêmea, mas andrôgino, fazia balançar as certezas de muita gente. Para os artistas que se deixaram contaminar pela coragem, deboche e técnica (os Croquettes dançavam à bessa, cantavam bem e eram ótimos intérpretes), a energia que rolava no palco serviu como um indicador para romper com o fechamento da cena. Cena que tinha medo de ser alegre, pois comprometida em denunciar as mazelas decorrentes da ditadura militar. Encontrando uma forma desviante do discurso engajado, os Diz Croquettes estampavam a necessária liberdade e noutro tom figuravam o poético e o político noutra vertente.

Quem aspirou o ar soprado do palco Dzi, não foi mais o mesmo. E se alguém duvida, basta ver o documentário. Lá estão os depoimentos de muita gente, há também emoção verdadeira, sem pieguice, mesmo quando Tatiana  Issa lembra dos que morreram como seu pai, iluminador do espetáculo.

A maioria não sabe da existência do grupo. Ele ficou restrito ao eixo Rio-São Paulo e fez muito sucesso na França. Sucesso de verdade. Estiveram na Bahia, mas aqui o grupo se desfez. A separação, ainda que temporária, deixou marcas na família Croquette, Lennie Dale se afastou. Mas em seguida, eles conseguiram fazer dois espetáculos, Romance, de pouca repercussão e outro visto somente em Paris.

Vi Romance no Teatro Ruth Escobar, no elenco o meu amigo Vicente Di Franco, paulista que morou em Salvador e esteve no elenco de Marylin Miranda, espetáculo de José Possi Neto, que tinham muito da estética dos Croquettes.

Se você está pensando em show de travesti. Esqueça! Nada contra, mas os Croquettes passavam ao largo de tal manifestação. Artisticamente a coisa era bem diversa. Muita coisa do que se vê na cena de hoje, ainda que seus realizadores não saibam, é fruto da criatividade transgressora de um grupo que se lança e se firma num cenário hostil.

É certo que o ideário contracultural em curso dava margem e sustentava tal acontecimento e o grupo, intuitivamente, percebeu a hora e a partir daí organizou-se. Pelas brechas, como dizia o poeta Torquato Neto, encontraram uma maneira de furar o estabelecido na cena teatral, criando um espaço vital para sua expressão. Reiventaram a família sem a caretice da instituição, num momento em que viver comunitariamente era um desejo realizado por muitos. E muitos saíram de casa para viver em comunidade, um jeito diferente de encarar o mundo. Alternativas foram criadas e o mundo tornava-se outro, ainda que as condições fossem de amargar.

O texto abaixo foi retirado da página da Enciclopéia Itáu Cultural - Teatro e completa as falhas da minha memória.

Grupo carioca irreverente, alinhado à contracultura, à criação coletiva e ao teatro vivencial, que faz do homossexualismo uma bandeira de afirmação de direitos.


O conjunto cria, em 1972, o espetáculo Gente Computada Igual a Você, que se origina de um show de boate, posteriormente levado para São Paulo, na casa noturna TonTon. A realização transferida para o Teatro 13 de maio, faz enorme sucesso. Na equipe criadora do espetáculo constam os nomes do coreógrafo Lennie Dale, do autor Wagner Ribeiro de Souza, e dos bailarinos Cláudio Gaya, Cláudio Tovar, Ciro Barcelos, Reginaldo de Poli, Bayard Tonelli, Rogério de Poli, Paulo Bacellar, Benedictus Lacerda, Carlinhos Machado e Eloy Simões.

Gente Computada apresenta números cantados, dublados e dançados, entremeados por monólogos que equacionam as experiências de vida dos integrantes. Tais textos de interligação, de autoria de Wagner Ribeiro, primam pela ironia, duplo sentido e tom farsesco. A montagem recicla práticas da antiga revista musical, do show de cabaré e da tradição norte-americana do entertainment. As coreografias de Tinindo Trincando, com música dos Novos Baianos, e Assim Falou Zaratustra, em versão dance e technopop, constituem momentos altos do espetáculo. Figurinos ousados, maquiagem pesada e o contraste dos corpos masculinos em trajes femininos imprimem ao espetáculo tons de grotesco, de deboche e espírito ferino. Um árduo trabalho de interpretação e de dança é empreendido pelo bailarino Lennie Dale, para transformar o grupo numa trupe artística, elogiada pela crítica.

Em Paris, os Dzi Croquettes conhecem a consagração internacional. Em 1973 e 1974, fazem longas temporadas no Le Palace e, entre outras atividades, participam do filme Le Chat et la Souris, de Claude Lelouch. Uma parte da equipe cria um novo espetáculo, Romance, de Cláudio Tovar e Wagner Mello, 1976, que não alcança a mesma projeção do anterior. Posteriormente um elenco feminino vem agregar-se ao núcleo fundador, mas essa alternativa não amplia as propostas iniciais e, pouco tempo depois, o grupo se dissolve.

Inspirado no conjunto norte-americano The Coquettes e no movimento gay atuante na off-Broadway, a equipe utiliza equacionar conteúdos brasileiros para falar de nossa realidade, desde a repressão sexual até a censura e a ditadura. O grupo está na origem de uma corrente que veio a se desenvolver algum tempo depois, vinculada ao travestismo, ao deboche, à exploração do virtuosismo dos membros do elenco, à caricatura, à farsa e à comédia de costumes. [...].