domingo, 5 de outubro de 2008

Registro 211: Sobre anjos


Queridos anjos de Deus

Iya Agbeni Xangô (Cléo Martins)

Vocês, meus leitores e leitoras, acreditam em anjos?
Eu, sim. Creio com toda a força do pensamento, palavras e coração. Acredito nestes luminosos seres angelicais e também em alguns outros tantos vivíssimos pelas ruas, estradas e avenidas.
Podemos ser anjos, para nosso próximo, ou, a depender da escolha, diabinhos bem ruinzinhos... Se a opção for involuntária, que Deus tenha misericórdia. Caso consciente, ai, ai...
Sempre nos cabe o desejo de seguimento da Verdadeira Luz.
Os iorubás acreditam na escolha do ori (a cabeça espiritual).
Mais do que nos traçados do destino (predeterminação), a escolha é sempre de nós outros e outras viventes.

Quinta passada, dois de outubro, dia do aniversário de minha amiga Lourdes Massa, foi a festa dos Santos Anjos. Dois de Outubro. Dia dos famosíssimos guardiães desde o abandono do útero materno.


Os anjos se encontram presentes no judaísmo, islamismo e cristianismo.

No Catolicismo festejam-se os Anjos fiéis ao Senhor: mensageiros do Amor de Deus e combatentes do Mal.


São os nossos protetores desde a chegada ao mundão até a morte.
De muitos e dentre todos se destacam os magníficos Miguel, Rafael e Gabriel.

Miguel Arcanjo é o guerreiro combatente dos Caídos - os anjos rebeldes das profundezas do desamor onde Deus não habita. Conhecida a imagem do Arcanjo festejado no final de setembro a pisar no líder das legiões infernais.


São Miguel é referido tanto no Velho Testamento (livro de Daniel) quanto na Nova Aliança: Epístola de Judas e Apocalipse de São João: "Houve então uma batalha no céu: Miguel e seus Anjos guerrearam contra o Dragão. O Dragão batalhou, juntamente com seus Anjos, mas foi derrotado, e não se encontrou mais um lugar para eles no céu".(Ap, 12:7).

Rafael quer dizer "Deus cura" na língua hebraica, na qual médico é rophe.
É o Arcanjo do Senhor contra as dores e mazelas humanas.
Não há referência expressa a Rafael no Novo Testamento.
É citado no Livro de Tobias. (Livro de Tobit, na tradução ecumênica da TEB)
Somente no capítulo 12 do referido texto o Arcanjo igualmente festejado aos 29 de setembro (com Miguel e Gabriel) se dá a conhecer: "Eu sou Rafael, um dos sete santos anjos que assistem e têm acesso à majestade do Senhor".(Tb 12,15)
Apesar de não expresso nos escritos néo-testementários a tradição tende a identificá-lo com o anjo da ovelha. (João 5,2).

Gabriel (Força de Deus, em hebraico) é o Anjo da Anunciação.
É tido como o Arcanjo da Esperança; da Revelação, sendo comumente associado a uma trombeta: a Voz de Deus transmissora das Boas Novas.
Foi quem também anunciou ao profeta Daniel a vinda do Mashiah - Messias. O Ungido: Cristo, em grego.
"Apareceu Gabriel da parte de Deus e me falou: dentro de setenta semanas [de anos] (70 anos x 7, ou seja, 490 anos) aparecerá o Santo dos Santos." (Daniel 9:24-26).
A ele foi confiada a missão dentre as missões: anunciar o nascimento do Filho de Deus.
Por isso, é muito admirado desde a antigüidade.
Foi quem apareceu a Zacarias para lhe comunicar a paternidade em idade proveta.
Há mais de uma referência no Evangelho de Lucas: meu predileto dentre os sinóticos.
"Eu sou Gabriel, o que está na presença de Deus" (Lucas 1:19). "Foi enviado por Deus o anjo Gabriel a uma cidade da Galiléia, a uma virgem chamada Maria, e chegando junto a ela, disse-lhe: Salve Maria, cheia de graça, o Senhor está contigo". (Ela ficou confusa, mas disse-lhe o anjo:) "Não tenhas medo, Maria, porque estais na graça do Senhor. Conceberás um filho a quem porás o nome de Jesus. Ele será filho do Altíssimo e seu Reino não terá fim".

Também existem anjos encarnados, minha gente.
Há doze anos fui de Salvador até São Paulo em meu carro, com alguns amigos. O automóvel quebrou no meio do nada. Distante duas horas de Itabuna.
Comecei a sentir pânico. Impossível a comunicação por telefone celular.
De repente, não mais que de repente, surgiram Renato e seu sobrinho Renatinho no precário caminhão cheio de frutas.
Vendo nosso desespero providenciaram rudimentaríssimo "cambão". Renatinho assumiu o escort.
O guincho partiu - sem exagero - sete vezes sob sol causticante de rachar asfalto.
Todas as sete vezes Renatinho e Renato consertaram o cambão com sorriso nos olhos límpidos e nos lábios a mesma frase dirigida a mim (aos prantos) – "Cléo; que mulher sem fé é esta; não percebe que a gente está aqui pra consertar quantas vezes for preciso?!?"

Não aceitaram dinheiro.
Já em Itabuna, bem mais pacificada, tirei os óculos de sol e dei-os a Renatinho.
Tio e sobrinho desapareceram com a sutileza da chegada.
Nunca mais soube deles...
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Publicado originalmente na edição de 3 de outubro de 2008, no jornal A Tarde - Salvador - Bahia.

Registro 210: Leituras...

Ainda tocado pela intensidade amorosa de Carta a D. - História de um amor, de André Gorz (Annablume /Cosacnaif), deixo-me levar pelo livro de Doris Lessing, O sonho mais doce (Companhia das Letras). Não consigo desgrudar de páginas tão intensamente amorosas, compreensivas, mas de uma ironia e criticidade feroz. No final da década de 70 tentei ler a autora, Prêmio Nobel 2007, mas não consegui entrar no seu universo. Rendo-me agora. Transcrevo o resumo da quarta capa: " Jovens de origens e filosofias diversas se refugiam num casarão confortável de Hampstead, bairro chique londrino, para usufrir da comida farta e do ambiente liberal que Frances Lennox, espécie de mãe substituta, propicia. Sentados em torno da grande mesa da cozinha [que mesa, que cozinha!], os adolescentes sorvem também cada gota da retórica do camarada Jonny, ex-marido de Frances, membro do Partido Comunista, pai ausente e eterno revolucionário [repleto de frases feitas e discursos edificantes]. Eles escutam os discurso de Jonny e devaneiam. Querem a utopia. A Revolução.
(...) Num contraponto doloroso, ela nos dá, de um lado, uma Londres que tem tudo, e de outro, uma África que tem fome de tudo."
Lessing é demolidora e sem mascarar enfia o dedo em nossas feridas abertas, aquelas provocadas pelos sonhos não realizados. Os sonhos que se perderam na fumaça da peroração e algaravia dos que se colocam na vanguarda em prol das transformações sociais, políticas e econômicas, mas ficam apenas no nível da idéias. E essas idéias um tanto repisadas não causam nada, esvaziam-se. Por outro lado, ela nos mostra possibilidades no interior de um mundo em ruínas.
Leitura cativante, ela nos prende avassaladoramente, seja pela linguagem, seja pelos persoangens que nos apresenta em suas trajetórias por aquelas décadas que o século XX se viu sacudido e esperou colher mudanças advindas da decantação. O painel que se afigura ao leitor é triste, mas há sempre a possibilidade do encontro, encontro que vai se dar no nível individual, mas que rejeita o individualismo. Doris Lessing traz para as páginas de O sonho mais doce seres humanos destroçados, alguns desprezíveis, mas a maioria aceitáveis com suas idiossincrasias próximas das nossas.