sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Registro 201: Alzira Power

Fui assistir no Teatro ISBA, Alzira Power, texto de Antônio Bivar, preparando-se para completar 40 anos. A peça teve sua estréia em 6 de agosto de 1969, Brasil pós-AI5; no elenco Yolanda Cardoso e Antônio Fagundes, direção de Emílio di Biasi.

A montagem atual conta com Cristina Pereira e Sidney Sampaio no elenco. Direção Gustavo Paso.

Bivar, toma dois personagens para jogar sobre a platéia o escárnio de uma geração que se viu reprimida, e descrente dos ideários postulados pela cultura de esquerda configurado pelo nacional-popular, parte para outros caminhos, cujos códigos subjetivos indicam a recusa e apontam para a desagregação. Embora distante no tempo, o texto continua firme em suas proposições e recebe uma inspirada direção de Gustavo Paso. Diante do real baseado em valores degradados, as atitudes de Alzira, a princípio incoerentes, tornam-se coerentes. O seu voluntarismo desencadeia humor e fantasia na cena. Sua investida rebelde contra o acomodamento choca, mas a personagem termina por se impor e no jogo criado por Bivar, Ernesto, o corretor, sai perdendo. Um aviso; capta quem quer. Com esse material, Gustavo Paso orquestra o espetáculo de maneira poética, agilizando a escritura cênica de forma que o conflito se desenvolve num crescendo. A exposição das idéias e dos desejos dos personagens desenvolve-se dando lugar para as explosões temperamentais de Alzira e de desespero de Ernesto. Ao longo desse encontro de opostos há lugar para o lirismo, o melodramático, Tudo bem dosado pela sensível mão do diretor.

O humor escrachado, dosado de ironia, marca o encontro de Alzira, a solteirona que atrai para seu apartamento o jovem corretor Ernesto. Caído numa armadilha, o personagem enfrenta a loucura da mulher solitária que desmonta suas certezas e aponta-lhe o comodismo classe média. Comodismo de quem aceita a vida sem questionamentos, além daqueles que determinam a sobrevivência. Alzira, contraditória, revela-se uma personagem que investe sua delirante loucura contra os limites, as regras, o opressor. Durante uma hora de intenso confronto, em que as regras do bom senso e do politicamente correto são explodidas, as personagens se atraem e se repelem num jogo em que a mulher termina por dominar a situação. O domínio de Alzira sobre Ernesto se dá pela transparência com ela se revela para ele. Desbragadamente furiosa ela investe contra as certezas do jovem e quando ele tenta virar o jogo, ela dá a volta por cima.

Com esse material explosivo e dois personagens confinados em um apartamento, o diretor soube orquestrar uma espetáculo intenso, tragicômico, permeado de lirismo. Sem atualizar o texto, sua encenação aproxima o texto de Bivar da platéia atual, tornando-o atemporal, ainda que lance mão de efeitos - gravação de programas de rádio das décadas de quarenta e cinqüenta e trilha sonora - que parecem datados, mas que de forma bem manipulada criam empatia e enchem a cena de uma delicadeza que só faz aumentar o absurdo da situação criada por Bivar.

Em um cenário, cujo vermelho impera como um signo da violência que a situação figura, Gustavo Poso arma o espetáculo surpreendendo a platéia com efeitos visuais, em que figurino, luz e objetos cênicos servem de moldura para que Cristina Pereira dê largas ao seu talento de atriz. A intensidade com que ela se entrega na construção de Alzira, a Alzira Porra Louca, um dos títulos da peça, mas censurado pela repressão policialesca da época, é imediatamente percebida pelo espectador desde a longa cena inicial quando a atriz, de maneira metódica, se prepara para enfrentar a chegada do visitante. Papel defendido com garra por Iolanda Cardoso, a criadora primeira de Alzira, encontra em Cristina Pereira uma atriz pronta para representá-lo. Alternando comicidade e contensão, suavidade e explosão, a atriz estabelece uma poderosa comunicação com a platéia. Generosa, a atriz cria oportunidades para o seu companheiro de cena, o jovem ator Sidney Sampaio. Os dois criam a necessária empatia para que o texto de Bivar, com seu final surpreendente e provocativo, chegue até a platéia sem muitas ranhuras.

Amoral, como em toda sua dramaturgia, o autor esbanja talento e maneja habilmente a situação, solucionando-a de maneira fatal, num golpe de teatro, única saída para almas dilaceradas presas nas malhas do cotidiano opressor, dos sonhos postergados e da rotina mortal. Tudo isso construído com altas doses de humor e crueldade ferina, mas sempre deslizando para a zombaria demolidora. A direção de Gustavo Paso explora o texto no que ele tem de originalidade, mas não sem mantém refém a ele. Paso compreende a peça de Bivar e imprime a sua leitura de maneira que o texto passe incólume a mais uma prova do palco depois de anos de sua estréia. Poder-se-ia dizer que por ser uma dramaturgia fruto de um momento especial, já bafejada pelos ares da contracultura, a peça estaria presa ao circunstancial. Não é o que se vê no palco. Ainda há um sopro de rebeldia, de novidade, de atualidade em Alzira Power ou O Cão Siamês, título da peça, indicativo do absurdo da situação em cena, mas que não resvala par ao incompreensível. Ainda que concebido sob a mais ferrenha censura, o discurso é direto e suas ambigüidades tornam saborosa essa dramaturgia - conhecida como "Nova Dramaturgia" - merecedora de novas encenações.

A “Nova Dramaturgia”, é o termo utilizado por Sábato Magaldi para enfeixar os trabalhos de Antônio Bivar, José Vicente, Leilah Assumpção, Consuelo de Castro, Isabel Câmara, acrescento o de Timochenco Webb, jovens autores que estrearam no final da década de 60 e que obtiveram com seus primeiros textos a receptividade da crítica e do público. No artigo datado de agosto de 1969, o crítico faz um balanço da temporada teatral e aponta o surgimento desses autores, todos eles escrevendo para o palco e expondo sob uma nova chave as questões do seu tempo. Afastados do realismo social que prefigurou a fase anterior da dramaturgia, aquela feita nos moldes proposto pelo Seminário de Dramaturgia promovido pelo Teatro do Arena, esses autores colocam nos textos a experiência vivida, adotam o confissão e escancaram a vida da metrópole onde vivem. Nota-se na diversidade de seus trabalhos o influxo de Plínio Marcos, autor que se torna vísivel ao mesmo tempo que os citados, mas que corre em raia própria, mas sem deixar de servir de esteio para os novos dramaturgos.