domingo, 17 de abril de 2011

Registro 352: Fim de Partida no Teatro Martim Gonçalves


FIM DE PARTIDA


Raimundo Matos de Leão

Fim de Partida, de Samuel Beckett (1906-1982), ou Fim de Jogo, numa tradução mais literal, em cartaz no Teatro Martim Gonçalves, é fruto da parceria entre Rita Carvalho Produções e a Cia de Teatro da UFBA. Sob a direção de Ewald Hackler, responsável também pelo cenário e figurino, conta no elenco com  Harildo Déda (Hamm), Gideon Rosa (Clov), Gil Teixeira (Nagg), Maria de Souza (Nell). Luz: Eduardo Tudella.
Ao sair da sessão de ontem (16 de abril de 2011), tive a certeza de que o texto de Samuel  Beckett requer não somente um diretor experimentado, mas, sobretudo, um elenco que torne possível assistir à peça, já que ela se torna um exercício de paciência. Cabe aos atores o mérito de tornar suportável o insuportável. Portanto, deixo claro que o texto não é o meu preferido. Muito se gastou e se gasta papel e tinta para exegeses em torno de Fim de Partida e da obra de Beckett como um todo. Mas diante de Esperando Godot, Fim de Partida  parece mais a repetição de um pensamento circular. A minha objeção ao texto não foi impedimento para apreciar a encenação no palco do Martim Gonçalves.
Ao abrir-se a cortina, vemos dois restos humanos, Hamm e Clov. No fundo da sala onde se passa a ação, dois latões de lixo servem de abrigo para mais dois rebotalhos, Nagg e Nell, pais de Hamm. O tempo se arrasta levando-nos de roldão. O matraquear dos passos de Clov marcam o ritmo das vidas que se estiolam. Para preencher o vazio, eles falam, se agridem, reclamam, rememoram. E fica claro que não há saída, nem solução, ainda que no final, Clov preparado para partir, adentre o recinto de onde quer fugir e se coloca na moldura da única porta porta na sala. Nem lá nem cá. Mas antes que tome a iniciativa de partir, a luz se apaga sobre o vazio e lúgubre ambiente. Nada a fazer. Estão os dois condenados a viver a condição de senhor e escravo no que ela tem de dependência, subserviência e necessidade um do outro.
Do interior de um dos latões de lixo surge Nagg, e em seguida Nell; vivendo em suas respectivas latas de lixo, a aproximação torna-se difícil. Eles não têm pernas, visto que no passado sofreram um acidente. Ainda que vivam degradadamente, instantes de recordação se insinuam entre eles, deixando entrever afeto em meio a brutalidade da vida no lar, onde o filho cego tiraniza a si e aos outros.  Como em Godot, parece não haver mais ninguém além dos quatro personagens, ainda que se mencione uma ou outra pessoa.
O mundo pós Segunda Guerra e os temores da Guerra Fria são dados para que se compreenda a obra de Beckett. Tanto Esperando Godot quanto Fim de Partida chegam à cena na década de cinquenta, tempo conhecido como de prosperidade, de arrumação da casa-mundo destroçada pela barbárie anterior. E Beckett injeta na cena indagações sobre a condição humana, pois desconfia da euforia. De lá para cá suas indagações parecem soar com mais veemência, em virtude do mal-estar instalado no cotidiano e que se tenta disfarçar pelo consumo, pelos antedepressivos, pelo culto ao corpo e sua reconstrução artificial, recursos para  se conseguir a felicidade no tempo de agora.
A cena construída por Ewald Hackler potencializa o mal-estar, pois sua organização não desvia a atenção do espectador para efeitos teatralistas que possam amenizar a crueza da peça. Sua concepção ressalta os conteúdos da obra ajustando-os ao espaço, numa leitura muito fiel ao que pede o autor. Assim, também os figurinos se adéquam ao todo da encenação e nenhuma nota desviante dilui a cena no seu propósito de evidenciar a condição humana, toda ela sem perspectiva, desejosa de futuro e que vê adiante somente incerteza. Dias melhores ou morte latejam na cena concebida pelo encenador; assim, a ação flui passo-a-passo entre fala e silêncio, algumas explosões e muita ironia. A narrativa das vidas isoladas e situadas no mundo em destruição presentifica-se na cena que, sabemos, não terá fim. Tudo recomeça.
Para dar corpo às ideias do autor e às suas como encenador, Ewald Hackler conta com quatro intérpretes de visíveis qualidades cênicas. Cabe a eles corporificar esse mundo destruído, cercado por quatro paredes, onde vidas decrescendo agarram-se aos fios de esperança. Harildo Déda em cena, desde o início da peça, permanece preso a cadeira de rodas, pois, cego, não consegue mover-se, dependendo sempre de Clov. A caracterização do ator é impressionante, causando impacto sobre a plateia, seu físico e sua voz servem ao personagem; os gestos, em sua maior parte contidos, se expandem quando as emoções assim exigem. Dosando humor corrosivo com sutil ironia, Harildo Déda apresenta um Hamm em suas diversas facetas de opressor e dependente de sua vítima. Nos monólogos, trabalhados com extrema acuidade, o ator explora a sua capacidade de entender o que pensa o personagem, estampando com equilíbrio a solidão de Hamm, um triste palhaço convencido de sua onipotência.
Cabe a Gideon Rosa dar vida a Clov, o servo que, na criação do ator, apresenta-se como um galho seco e torto a se arrastar no mesmo ritmo, entre a cozinha, seu mundo particular, e a sala-cela onde está aprisionado, da mesma forma que seu amo. Corpo e voz dão a medida do personagem na sua impossibilidade de sentar, por isso as pernas ganham uma dimensão e seus passos criam a musicalidade do espetáculo sem música. Música monótona tal qual a vida de Clov, condenado no ir e vir, a executar tarefas mecanicamente. Gideon Rosa constrói no corpo o drama da repetição.
Os dois atores, Harildo Déda e Gideon Rosa, sabem que a peça é centrada na relação dependente dos personagens que interpretam, e sabem também que a encenação armou a cena em função dos dois. É no embate dos dois que a peça se apresenta criando um clima obsessivo, com seus jogos destrutivos de quem sabe que não há alternativa para eles em um mundo que também não funciona. Os atores destilam as camadas emocionais conferindo densidade à monotonia, cada qual infernizando o outro com sua rabugice. Dois atores na força de sua experiência teatral despertam interesse para uma peça sem peripécias, profundamente niilista . Por isso mesmo necessita do talento/técnica dos dois atores para manter atenta uma platéia. Plateia onde se encontram espectadores desavisados sobre o que foram ver e que por isso terminam abandonando a sala ou manifestando seu mal-estar durante a sessão. Não é teatro fácil. Por isso mesmo a tarefa dos atores se desdobra. O elenco de Fim de Partida tem a oportunidade de mostrar competência no manejo de seus recursos para fazer chegar até o público esse mundo incômodo e insuportável. Não fosse o elenco,  seria difícil suportar duas horas de um enredo esgarçado e repetitivo, martelando o oco da nossa existência.
Não há efeitos desnecessários, não há pirotecnia, nem concessão por parte do encenador. Portanto, há espaço para que os intérpretes centrais e os coadjuvantes mostrem que a montagem depende dessa capacidade de tradutibilidade que, por mais que consigamos localizar e tornar objetiva, passa por algo indizível.   
Para o casal de velhos, a direção encontrou dois intérpretes, Gil Teixeira e Maria de Souza, distante da idade presumível para os personagens de Nagg e Nell. Tanto um como o outro tiram partido dos seus personagens passando por cima dessa hipótese, e nos dão uma interpretação permeada de gestos delicados, remetendo a velhice à infância. Perdidos em suas lembranças, cabe aos dois superar os dias difíceis, mergulhando na rememoração para amenizar a convivência forçada ou escolhida, já que, antes do acidente que lhes amputou as pernas, eles estavam juntos. As intervenções dos atores/personagens acentuam o patético da cena.
          Encenação difícil, Fim de Partida requer o investimento do espectador, mas que não deve afastá-lo do Teatro Martim Gonçalves. Há algo no palco para ser apreendido e aprendido, visto que o rigor da cena inscreve a montagem na linhagem dos clássicos, tal a harmonia com que o encenador arma o jogo cênico, concebe o cenário e figurinos, orienta a criação dos objetos (Claudete Eloy e Maurício Pedrosa) e da maquiagem (criação de Roberto Laplagne) e dá margem ao criador da luz de fazê-la consubstanciada aos princípios que regem a concepção de Ewald Hackler.
          O teatro baiano só tem a lucrar com espetáculo de tal monta.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Registro 351: Aguardando um filme



Com ansiedade, positiva é certo, por isso não desgastante, eu esperava que o filme Homens e Deuses de Xavier Beauvois estreasse hoje em um dos cinemas de Salvador, mas nada. Os exibidores estão lentos e andam caprichando na programação de filmes sem mérito, ou melhor de pouco mérito, para não desencadear a fúria de muitos. Não acredita, basta olhar o jornal e ver que os lançamentos não ultrapassam a linha mediana do que se espera de uma bom filme. A maioria é de produtos medíocres.E não estou falando de filme "cabeça", expressão hoje em dia usada para qualificar ou desqualificar filmes que exigem um pouco mais de sensibilidade, de atenção, de reflexão por parte do espectador. 

O filme de Xavier Beauvois, biscoito fino, como diria Oswald de Andrade de sua poesia "um dia, a massa comerá do biscoito fino que eu fabrico", não chegou. Esperarei, pois quero vê-lo em tela grande. Homens e Deuses vem precedido de críticas das mais elogiosas. Para muitos, a crítica não é um indicador seguro. Por vezes ela comete exdruxulice, mas as que li até o momento despertaram-me a vontade de apreciar a obra. Resta esperar. Espero não me decepcionar, visto que os programadores das salas optam, em sua maioria, pelo previsível. Ah, desconfio sempre da quantidade de estrelas com que os colunistas dos jornais agraciam alguns filmes. Por hoje é só, como dizia Sílvio Lamenha, "poesia é axial"

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Registro 350: Um seguidor de Grotowski

O americano Thomas Richards, principal seguidor de Jerzy Grotowski (1933-1999) -diretor polonês que revolucionou as artes cênicas com a criação de seu "teatro pobre"-, participa do Encontro Mundial das Artes Cênicas, em Belo Horizonte.

O evento, que começou no dia 10 e vai até 1º de maio, busca refletir sobre o fazer teatral através do compartilhamento de ideias e trabalhos de artistas de diversas nacionalidades.


Richards, grande destaque da programação, apresenta através de workshops os princípios básicos da prática em performance desenvolvidos no centro de pesquisa criado por Grotowski em 1986, hoje chamado Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards.


Richards conversou com a Folha sobre sua experiência com o diretor polonês cujas pesquisas influenciam a criação teatral até hoje. 



Folha - Na sua opinião, qual foi a maior contribuição que Grotowski deu ao teatro? 

Thomas Richards - Grotowski sempre procurava a verdade, algo que ia além de formas e imitações. Sua descoberta relacionada ao impulso como fundamento da ação foi uma inovação notável que ainda hoje pode nos ajudar a tocar acordes escondidos em nós, parte do inconsciente coletivo. 



A devastação da Polônia, dizimada pela invasão nazista, foi testemunhada por Grotowski. Isso se refletiu na criação de seu teatro pobre? 

A experiência certamente o marcou, criando nele a consciência de que a história pode afetar profundamente a vida das pessoas. 



Por que após 1969 Grotowski parou de dirigir? 

Grotowski foi reconhecido como um dos maiores diretores do mundo. O caminho mais provável teria sido se prender a isso. Mas ele deixa isso pra lá e dedica-se exclusivamente às suas pesquisas. 



Por que você acha que foi escolhido por Grotowski para ser seu seguidor?

Não há mistério nisso. Como em qualquer situação profissional, houve uma demanda por competência e dedicação.Tinha acabado de me formar na Universidade de Yale. Estava com 22 anos, insatisfeito, sentindo que algo dentro de mim precisava ser revelado. Ele estava entrando na última fase de sua vida, precisava passar seu conhecimento. 



Qual foi o grande ensinamento que você teve com ele? 

Ele me fez responder uma pergunta que eu tinha, mas não conseguia formular. Quando eu o conheci, minha sensação é de que estava sufocando. Seu trabalho tende para uma espécie de reconexão. Nossas pesquisas para esse tipo de despertar são baseadas num trabalho diário, que dura uma vida. 



Como seu centro de pesquisa faz avançar o pensamento de Grotowski?

Nós nos esforçamos para criar uma contracorrente que impulsiona o ser humano a restabelecer uma ligação humana, mesmo que isso vá contra os nossos desejos de isolamento e proteção. 



Qual será o foco de seu workshop no Brasil?

Artistas brasileiros terão oportunidade de participar da nossa prática pela primeira vez. Vamos investigar elementos essenciais do nosso trabalho, como contato, impulso, intenção, ação, reação, e explorar razões que levam artistas à criação.



Folha de S. Paulo 12 de abril de 2011. Entrevista concedida à jornalista Gabriela Mellão

domingo, 3 de abril de 2011

Registro 349: Flávio Império em vídeo

Registro 348: Flávio Império em vídeo

Registro 347: Num domingo entediante

Tem gente que veio ao mundo para atrasar o processo civilizatório. Pura especulação? Sei disso, mas diante do que presencio e leio cabe especular. A máxima é uma provocação. 


Espanta-me o que é dito, espantam-me atitudes irreprováveis em um mundo que se quer civilizado. Eu, com meu aforismo, posso espantar. O mundo avança, mas os humanos, ou pelo menos alguns humanos, parecem permanecer no ponto zero. São muitos? Penso que sim.  


Cada dia que passa desaba sobre o nosso cotidiano os maiores descalabros e minha sensibilidade educada com tenacidade é agredida. Ainda assim, mantenho minha inabalável capacidade de acreditar na beleza do nosso mundo. E quando a agressão é insuportável cerco-me de boa literatura, cinema, teatro, artes visuais e  música. Assim, eu resisto. 


Recebi o texto de Frei Betto por e-mail. Não havia nenhuma informação sobre a publicação original do texto. Visto que na Internet há muito gato por lebre, espero que o texto seja mesmo do dominicano. Aviso quem não comungo com todas as ideias de Frei Betto nem compartilho com algumas de suas atitudes, mas gostei do texto.



DO MUNDO VIRTUAL AO ESPIRITUAL

Frei Betto


Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos em paz em seus mantos cor de açafrão.

Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente.

Aquilo me fez refletir: “Qual dos dois modelos produz felicidade?” Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: “Não foi à aula?” Ela respondeu: “Não, tenho aula à tarde”. Comemorei: “Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde”. “Não”, retrucou ela, “tenho tanta coisa de manhã...” “Que tanta coisa?”, perguntei. “Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina”, e começou a elencar seu programa de garota robotizada.

Fiquei pensando: “Que pena, a Daniela não disse”: “Tenho aula de meditação!”

Estamos construindo super-homens e super-mulheres totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizadosPor isso as empresas consideram agora que, mais importante que o QI, é a IE, a Inteligência Emocional. Não adianta ser um super-executivo se não se consegue se relacionar com as pessoas.

Ora, como seria importante os currículos escolares incluírem aulas de meditação! Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: “Como estava o defunto?”. “Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!”

Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa? Antes, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-se na realidade, conhecer a realidade. Hoje, a palavra é virtualidade.

Tudo é virtual. Pode-se fazer sexo virtual pela internet: não se pega aids, não há envolvimento emocional, controla-se no mouse. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual, entramos na virtualidade de todos os valores, não há compromisso com o real!

É muito grave esse processo de abstração da linguagem, de sentimentos: somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. Enquanto isso, a realidade vai por outro lado, pois somos também eticamente virtuais. A cultura começa onde a natureza termina. Cultura é o refinamento do espírito. Televisão, no Brasil - com raras e honrosas exceções -, é um problema: a cada semana que passa, temos a sensação de que ficamos um pouco menos cultos. A palavra hoje é “entretenimento”; domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela.

Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: “Se tomar este refrigerante, vestir este tênis,­ usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!” O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose.

 Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus pacientes. Colocá-los onde? Eu, que não sou da área, posso me dar o direito de apresentar uma sugestão. Acho que só há uma saída: virar o desejo para dentro. Porque, para fora, ele não tem aonde ir! O grande desafio é virar o desejo para dentro, gostar de si mesmo, começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista.

Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse.

Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Se alguém vai à Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve procurar saber a história daquela cidade - a catedral é o sinal de que ela tem história. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping center. É curioso: a maioria dos shopping centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingos. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas... Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista.

Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno... Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do McDonald's.

Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: “Estou apenas fazendo um passeio socrático.” Diante de seus olhares espantados, explico: “Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores, como vocês, o assediavam, ele respondia”:

“Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz.”