sábado, 8 de março de 2008

Registro 134: Homegam a Dona Aracy

Conheci dona Aracy em casa de Dr. Edu e dona Bia, levado por um amigo da família e também por um dos filhos, o saudoso Plínio de Carvalho Tess. Convivi com os Tess por pouco tempo, mas durante o curto período, percebi ser um clã especial. Tenho gratas recordações do acolhimento, da gentileza e do carinho que me devotaram. Dos Tess, recebi, entre outras coisas, a obra completa de Guimarães Rosa, um presente inestimável. De dona Aracy , eu ganhei um autógrafo no exemplar de Grande Sertão.
Reproduzo o texto de Fabiana Canosa aproveitando-o para homenagear a mulheres no Dia Internacional dedicado a elas. Esclareço que a homenagem se estende a todos os dias, porque as mulheres, como os homens, as crianças, os índios, os pais, as mães, os negros, não precisam de uma data especial para homenageá-los.
Que o exemplo de dona Aracy cale fundo em todos que desejam um mundo justo, sem preconceitos. Que possamos todos respeitar as diferenças étnicas, religiosas, sexuais, culturais. Dizer não ao estado de violência diariamente é a condição para amenizá-la ou, quem sabe, exterminá-la da face da terra.
Raimundo
A MULHER QUE DRIBLOU O NAZISMO
Fabiana Caso

Em plena era nazista, imagine uma mulher linda, de tipo físico latino, com forte apelo sensual, que passava zunindo em seu veículo pelas ruas de Hamburgo, na Alemanha. Os guardas paravam o carro, mas ficavam boquiabertos com a figura altiva que saía de dentro dele, falando um alemão perfeito e sem sotaque. Inertes, constatavam, então, que ela era funcionária consular, com imunidade garantida. Mal sabiam que, por vezes, ela transportava judeus - para os quais conseguia vistos de entrada no Brasil e até mesmo o navio em que embarcariam.
Não bastassem essas proezas, Aracy de Carvalho foi casada com um dos maiores escritores brasileiros: João Guimarães Rosa. No próximo mês, ela completa 100 anos de vida - assim como faria o escritor. Mora na capital paulista com seu filho, o advogado especializado em Direito Corporativo e Internacional, Eduardo Carvalho Tess, e a nora Beatriz Carvalho Tess. Tem quatro netos e oito bisnetos.
Até os 90 anos, ela morava sozinha no apartamento que dividiu com o marido no Rio de Janeiro, mas, há cerca de sete anos, sofre do Mal de Alzheimer. Por uma ironia do destino, alguém com tanto para contar já não fala, não anda e reconhece o filho apenas algumas vezes. Mas sua memória ficará viva: no momento, duas pesquisadoras estão finalizando uma biografia que vai contar a fascinante história de dona Aracy, enquanto outras brasileiras estão executando pesquisas na Alemanha para um documentário sobre o tema.
Pioneira em todos os aspectos, Aracy é filha de mãe alemã e pai brasileiro. Nasceu em Rio Negro, no Paraná, mas se criou em São Paulo. Como as moças da época, casou-se cedo, com o alemão Johannes Edward Ludwig Tess, com quem teve o filho Eduardo. Mas, insatisfeita, optou pelo desquite e emigrou para a Alemanha. “Um dos motivos foi o clima não muito favorável para uma mulher desquitada no Brasil”, conta o filho Eduardo. “Meu pai era alemão, um tipo nórdico, e minha mãe tinha personalidade muito latina.”
Com o filho de 5 anos, ela aportou na Alemanha em 1934 e foi morar com uma tia em Hamburgo. Como falava fluentemente alemão, francês e inglês, conseguiu um emprego como chefe de vistos no Consulado do Brasil naquela cidade. Logo o regime nazista e a perseguição aos judeus passaram a revoltar Aracy, especialmente depois da chamada Noite dos Cristais - um atentado às sinagogas, comércios e aos próprios judeus, em 1938. Eduardo lembra de ter visto as vidraças quebradas do comércio judaico.
Foi no Consulado que Aracy conheceu o então diplomata João Guimarães Rosa, que tinha o cargo de vice-cônsul. Na época, a Alemanha vivia um racionamento de comida e, aos semitas, era dada uma quantidade menor de alimentos. Aracy passou a alimentá-los com a cota extra que recebia no Consulado: ia de casa em casa distribuindo comida. Dizem que Guimarães Rosa a acompanhava nessas distribuições, mesmo morrendo de medo pelo que poderia acontecer com sua mulher.
Ela foi bem mais longe. Como a entrada dos judeus estava proibida no Brasil pelas leis do Estado Novo, conseguiu vistos para cerca de 100 famílias, segundo as contas de seu filho. A partir de 1937, obtinha atestados de residência para os judeus em Hamburgo e, assim, conseguia a emissão de passaportes sem o J de identificação. Colocava-os em meio à papelada para o cônsul assinar, sem levantar suspeitas.
Eduardo era pequeno na época e, por questões de segurança, foi enviado de volta para morar com a avó em São Paulo - o próprio governo alemão começou a evacuar as crianças por causa dos bombardeios. Mas, segundo contaram ao filho, nessa bonita missão protetora, sua mãe teve o auxílio de um instrutor da auto-escola onde aprendeu a dirigir, que também era policial. “Dizem que era ele que conseguia os atestados de residência em Hamburgo.” Em uma das homenagens a ela, Aracy disse que fez tudo isso “simplesmente porque somos todos irmãos”, lembram Eduardo e Beatriz. “Ela era guerreira e corajosa, sabia se posicionar”, resume seu filho.
RELATO
Uma das pessoas salvas por dona Aracy também vai completar 100 anos em novembro. Ela se chama Maria Margareth Bertel Levy (depois que seu nome polonês foi trocado no passaporte) e hoje vive no mesmo bairro que dona Aracy. Lúcida e meiga, fala com carinho sobre a benfeitora, de quem acabou se tornando uma amiga para toda a vida. “Fui pedir um visto para entrar no Brasil no Consulado e conheci Aracy. Foi amor à primeira vista.”
Naquela época, em Hamburgo, o marido de Margareth estava escondido em um lugar que apenas ela sabia. No dia em que ele deveria embarcar no navio, Aracy deixou o seu carro com placa consular na porta do prédio de Margareth, para ela ir pegá-lo, caso houvesse qualquer imprevisto. “Ela guardou minhas jóias em sua casa e nos acompanhou até o camarote do navio. Lá, escondeu o saquinho com as jóias na descarga do banheiro. E só desceu quando já estavam retirando a ponte”, lembra. Margareth conseguiu retomar o contato com Aracy porque tinha o endereço da mãe dela, Sida Mobius de Carvalho (que faleceu aos 104 anos).
Entusiasmada, a amiga lembra de outra família “salva”, que não falava uma palavra sequer de português. “Quando foram embarcar para o Brasil, Aracy deu a eles o endereço da tia dela em São Paulo, que falava alemão. Acho que ficaram até devendo dinheiro para ela”, fala. “Ela era um anjo. Uma mulher linda e sensual que só queria fazer o bem para as pessoas em apuros.” Depois de décadas trabalhando com o marido, que era dentista, Margareth ficou viúva há cerca de 20 anos. Não tem filhos, mas a família de Aracy continua cuidando dela até hoje: Eduardo e Beatriz fazem visitas diárias.
Pelo seu feito, Aracy é a única mulher brasileira que tem o nome no Museu do Holocausto, em Jerusalém. Lá, há uma árvore plantada em sua homenagem no chamado Jardim dos Justos, onde são citados outros protetores famosos, como Oskar Schindler. O rabino da Congregação Israelita Paulista (CIP), Michel Schlesinger, que esteve no Museu há pouco tempo, comenta: “Aracy foi uma dessas pessoas que não silenciaram diante do regime nazista, que sentiram que tinham uma missão e colocaram a própria segurança em segundo lugar para que os semitas fossem salvos. É admirável, porque ignorou a proibição. A coisa mais fácil era deixar passar.”
AMOR NA TERRA NATAL
Aracy voltou ao Brasil com Guimarães Rosa em 1942, depois de um tempo em Baden Baden, onde viveram com as porções racionadas de comida e sem calefação. Casaram-se por procuração no México - as leis brasileiras não permitiam o casamento de dois desquitados. Em terra natal, Aracy abriu mão da carreira diplomática por causa do amor a seu Joãozinho, apelido carinhoso pelo qual chamava o escritor. Era proibido que duas pessoas casadas trabalhassem na mesma embaixada.
Depois do período em que o escritor trabalhou na embaixada de Bogotá, na Colômbia, os dois foram para o Rio de Janeiro, onde passaram a maior parte da vida, rodeados por muitos cachorros e gatos. A família conta que Aracy ficava sentada ao lado de Guimarães enquanto ele escrevia - invariavelmente, lia trechos para ela. “Minha mãe dava palpites e sugestões”, diz Eduardo. Não foi à toa que ele deu Grande Sertão: Veredas para a mulher, com a seguinte frase: “À Ara - minha mulher, muito amada, minha companheira para sempre - com a vida e o carinho do seu Joãozinho”.
Nos anos sombrios da ditadura militar, Aracy voltou a praticar sua solidariedade. Com Guimarães, ajudou o amigo do casal Franklin de Oliveira a se exilar. Já viúva, ficou sabendo que o compositor Geraldo Vandré estava sendo procurado e o escondeu em seu apartamento por quase três meses. Eduardo lembra dessa época. “Tínhamos medo de que as crianças acabassem entregando.” Vandré ainda ficou escondido na casa da mãe de Aracy, Syda, em São Paulo, antes de cruzar fronteiras.
A linda história de Aracy encantou a então pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo (USP), Neuma Cavalcante. Ela era responsável pelo acervo de Guimarães Rosa, mas ficou intrigada com essa mulher, para quem tinha dado o livro Grande Sertão: Veredas. Quando descobriu que protegera os judeus no nazismo, resolveu escrever uma biografia sua, juntamente com a professora licenciada da USP, Elza Mine. “Quando Grande Sertão foi traduzido para o francês, Guimarães escreveu para o tradutor, dizendo que não tinha dedicado o livro, mas dado para Aracy.”
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Publicado originalmente pelo jornal O Estado de S. Paulo, 02 de março de 2008.