segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Registro 278: Iniciando a semana

O texto em destaque é de autoria de Marina da Silva, a combativa ambientalista que foi defenestrada do Ministério do Meio Ambiente pelo governo sindicalista-populista do qual ela faz parte. Publicado na edição de hoje (3.08.2009) no jornal Folha de S. Paulo, serviu de estímulo para que eu deixasse a preguiça de lado e retomasse meus registros em Cenadiária. A preguiça é uma desculpa que arranjei para o meu estupor diante do que vejo, leio e ouço. E confuso diante das ocorrências do cotidiano, mergulho em mim, tranco-me, cultivando um defeito de personalidade que é a total incapacidade para os excessos da vida social, ou melhor da vida em sociedade, essa obrigação que me cansa. Opto então pelo silêncio, pelo recolhimento, mas não pela alienação.
Não vou repisar os assuntos para não cansar o leitor que por aqui passar. Estamos todos (?) informados do que acontece no Brasil brasileiro. A imprensa, fonte comprometida é certo, não deixa de apontar os absurdos que por aí pululam. Para não ficar apenas com um ponto de vista, procuro sempre ler dois jornais de tendências diferentes para daí, com meus botões, formar aquilo que é minha opinião. Opinião que fica comigo, já que não me interessa sair por aí espalhando-a, embora alguns amigos íntimos não sejam poupados. Coitados dos que me ouvem quando dos meus destemperados vomitórios. Peço-lhes desculpas.
O texto de Marina da Silva é sobre o Rei Lear e vale a pena conferir. Objetivo e sintético, ele nos dá a dimensão da tragédia.
Aproveito o momento para indicar dois filmes que vi e me senti gratificado e feliz por isso. De Christophé Honoré, A Bela Junie (La Belle Personne) e de Heitor Dhalia, À Deriva. Tanto o francês quanto o brasileiro transitam pelo universo da adolescência e sensíveis ao tema nos dão ótimos filmes. Sem firulas, mas não de forma rasteira, apresentam suas personagens em situação peculiar, marcando o ritmo da existência de quem sabe já não ser mais criança, mas ainda não se estruturou como adulto.
Depois da sesta, li a entrevista de Edgard Morin concedida ao jornalista Antonio Gonçalves Filho (Estado de S. Paulo, 2.08.2009). Antes de comentar rapidamente as palavras do encantador filósofo de 88 anos, declaro que gosto muito das coisas que o jornalista do Estado de S. Paulo escreve e da forma como conduz suas entrevistas. Conheço Gonçalves Filho como frequentador esporádico do Lótus, restaurante natural que tive em São Paulo em meados do anos 90, empreendimento que me levou à falência. A labuta não permitia que a conversa entre nós se alongasse, mas era sempre um prazer tê-lo como cliente. Sobre Morin, chamo a atenção para o seu otimismo. Cito um pequeno trecho da entrevista: "Não acredito em religiões de revelação, como o cristianismo e o islamismo, mas, além delas e das arcaicas, existe ainda uma terceira religião, que eu classificaria de laica, ou a religião da fraternidade humana. estamos perdidos num pequeno planeta dentro de uma sistema e, justamente por estarmos perdidos, precisamos ajudar uns aos outros." (Grifo meu).
Com a palavras do filósofo, encerro esse registro. No mais, poesia é axial.
DURANTE CURSO de especialização na Universidade de Brasília, estudei a obra "Rei Lear", de Shakespeare. Talvez a tragédia possa nos ajudar a entender um pouco a política brasileira.Ao sentir-se velho, Lear decide abdicar da sua condição de rei, do enfadonho encargo de governar.

Chama as filhas - Goneril, Regana e Cordélia- para dividir seus bens e poder, anunciando que seria mais agraciada aquela que lhe fizesse a maior declaração de amor. E impõe outra condição: enquanto vivesse, o rei deveria ter assegurado respeito, prestígio, cuidado e, quem sabe, até mesmo o amor de suas filhas e súditos. Quer deixar de ser rei sem perder a majestade.

Cordélia, a mais jovem, com quem o rei mais se identificava, e que muito o amava, não soube dizer o que sentia. As outras não sentiam amor pelo pai, mas eram hábeis na verve.O que torna sua jornada trágica e dolorosa é que Lear se recusa a retornar ao que um dia foi, um simples homem, rei de si mesmo. Não quer morrer, tornar-se passado. Quer ser sucessivo como é a vida, reviver a fase do prazer de poder. Quer ter séquito e até mesmo um bobo para ninar seu desamparo.

Mas ninguém pode impunemente regredir sem ser atormentado pelo fantasma da repetição. No seu obsessivo desejo de ser amado, Lear agarra-se às palavras de Goneril e Regana. E rejeita amargamente a rebeldia de Cordélia, que só sabia sentir e não se sujeita a ter que fazer uma declaração de amor ao pai, obrigando-o a perceber esse amor no único lugar onde deveria estar: no resultado afetivo de suas relações pessoais.Não por acaso desmorona o mundo de Lear. O que antes era tão bem definido, passa a ser ambivalente. Certeza e dúvida, coragem e medo, segurança e desamparo. A loucura de não mais saber quem é.

O alto preço por ter almejado e transformado em "ato" o desejo de retornar ao lugar onde um dia esteve e querer assumir a forma do que um dia foi. Ele só existe no mundo daqueles que o aceitam e o amam tal como é. E mesmo estes, incluindo Cordélia, não têm mais como aceitar seu governo senil. Até porque foi ele próprio quem decidiu abdicar de ser quem era para tornar-se quem não mais podia ser. Tornou-se merecedor da reprimenda feita por meio das palavras do bobo: "Tu não deverias ter ficado velho antes de ter ficado sábio".

Genial Shakespeare, trágico rei, frágil humanidade de sempre, que não quer passar. Que infringe a ordem dos acontecimentos, sem o árduo trabalho de elaborá-los. Que desiste de ressignificar-se, e quer tão somente repetir o prazer da sensação vivida nas ilusões de majestade.