segunda-feira, 16 de abril de 2007

Registro 42: Livros...

Mas a melhor prova da especificidade do livro é que ele constitui ao mesmo tempo uma realidade do virtual e uma virtualidade do real. Somos colocados, quando lemos um romance, numa outra vida que nos faz sofrer, esperar, compadecer-nos, mas ao mesmo tempo com a impressão complexa de que nossa angústia permanece sob o domínio da nossa liberdade, de que nossa angústia não é radical. Todo livro angustiante pode não então proporcionar uma técnica de redução da angústia. Um livro angustiante oferece aos angustiados uma homeopatia da angústia. Mas essa homeopatia age sobretudo numa leitura meditada, na leitura valorizada pelo interesse literário. Então dois planos do psiquismo se cindem, o leitor participa desses dois planos e, quando se torna bastante consciente da estética da angústia, está bem perto de descobrir-lhe a facticidade. Porque a angústia é factícia: somos feitos para respirar livremente.

É nisso que a poesia – ápice de toda alegria estética – é benéfica.

Sem a ajuda dos poetas, que poderia fazer um filósofo já entrado em anos, que se obstina a falar da imaginação? Não tem ninguém para testar. Ele se perderia imediatamente no labirinto dos testes e contratestes em que se debate o sujeito examinado pelo psicólogo. Aliás, existirão mesmo, no arsenal do psicólogo, teste de imaginação? Haverá psicólogo suficientemente exaltado para renovar permanentemente os meios objetivos de um estado da imaginação exaltada? Os poetas sempre imaginarão mais rápido que aqueles que os observam imaginar.

Como penetrar na esfera poética do nosso tempo? Uma erra de imaginação livre acaba de abrir-se. Em toda parte as imagens invadem os ares, vão de um mundo a outro, chamam ouvidos e olhos para sonhos engrandecidos. Os poetas abundam, os grandes e os pequenos, os célebres e os obscuros, os que amamos e os que nos fascinam. Quem vive para a poesia deve ler tudo. Quantas vezes de uma simples brochura, jorrou para mim a luz de uma imagem nova! Quando aceitamos ser animados por imagens novas, descobrimos irisações nas imagens dos velhos livros. As idades poéticas unem-se numa memória viva. A nova idade desperta a antiga. A antiga vem reviver na nova. Nunca a poesia é tão uma como quando se diversifica.

Que benefícios nos proporcionam os novos livros! Gostaria que cada dia me caíssem do céu, a cântaros, os livros que exprimem a juventude das imagens. Esse desejo é natural. Esse prodígio, fácil. Pois lá em cima, no céu, não será o paraíso uma imensa biblioteca?

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 25-26.
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LIVROS

Caetano Veloso
Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.

Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São os livros e o luar contra a cultura.

Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou – o que é muito pior – por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:

Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrela.

VELOSO, Caetano. Livro. Intérprete: Caetano Veloso. In: Caetano Veloso. PolyGram, p. 1997. 1 CD. Faixa 2