quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Registro 242: Sobre "MILK"

Vibrei com texto Milk, o preço da liberdade. Prontamente, solicitei do autor a permissão para transcrevê-lo aqui. Vale a pena ler o que diz Contardo Calligaris sobre Milk. O último parágrafo tem um sabor especial para mim. Gostaria de tê-lo incluído em Transas na Cena em Transe, Teatro e Contracultura na Bahia, mas não deu, visto que a tese foi concluída e apresentada publicamente em 2007. Poderia usá-lo como epígrafe no livro em processo de editoração, mas o trabalho está quase pronto e seria um transtorno para a editora. Mas acredito que não faltará oportunidade para citá-lo, já que ele é um pensamento afirmativo sobre a contracultura e seus efeitos. Para aqueles que acham que a contracultura no Brasil é circunstancial, fruto da repressão, o parágrafo tem muito a dizer, não como provocação, mas como estímulo para arejar o pensamento sobre o legado da contracultura histórica, aquela que balançou as estruturas do establishiment nos anos 60 e 70, lançando luzes sobre áreas sombrias da nossa existência e fornecendo pistas para o reencantamento do mundo.

"Milk", o preço da liberdade
CONTARDO CALLIGARIS

Para continuarmos livres, é preciso defender a liberdade do vizinho como se fosse a nossa.

Assistindo a "Milk - A Voz da Igualdade", de Gus Van Sant (extraordinário Sean Penn no papel de Harvey Milk), lembrei-me de um e-mail que recebi em abril de 2008. Era uma circular de www.boxturtlebulletin.com (um site sobre os direitos das minorias sexuais), que "comemorava" os 55 anos de um evento sinistro: em 1953, Dwight Eisenhower, presidente dos EUA, assinou um decreto pelo qual seriam despedidos todos os funcionários federais que fossem culpados de "perversão sexual". Essa lei permaneceu em vigor durante mais de 20 anos: milhares de americanos perderam seus empregos por causa de sua orientação sexual. Fato frequentemente esquecido (um pouco como foi esquecida, durante décadas, a perseguição dos homossexuais pelo nazismo), nos anos 50, no discurso do senador McCarthy, a caça às bruxas "comunistas" se confundia com a caça às bruxas homossexuais. Por exemplo, uma carta do secretário nacional do Partido Republicano (citada na circular) dizia: "Talvez tão perigosos quanto os comunistas propriamente ditos são os pervertidos escusos que infiltraram nosso governo nos últimos anos". Essa não era uma posição extrema: na época, a revista "Time" defendeu o projeto de despedir todos os homossexuais que trabalhassem para o governo federal.

É nesse clima que, nos anos 70, em San Francisco, Milk se tornou o primeiro homossexual assumido a ser eleito para um cargo público.

Poderia escrever sobre as razões que, quase invariavelmente, levam alguém a querer esmagar a liberdade de seus semelhantes. O segredo (de polichinelo) é que muitos preferem odiar nos outros alguma coisa que eles não querem reconhecer e odiar neles mesmos. E poderia contar a história de Roy Cohn, braço direito de McCarthy, que morreu, em 1984, odiando e escondendo sua homossexualidade e gritando ao mundo que a causa de sua morte não era a Aids (ele foi imortalizado por Al Pacino na peça e no filme "Anjos na América", de Tony Kushner).

Mas, depois de assistir a "Milk", estou a fim de festejar o caminho percorrido em apenas meio século: o mundo é, hoje, um lugar mais habitável do que 50 anos atrás. Aconteceu graças a milhares de Harvey Milks e a milhões de outros que não precisaram ser nem homossexuais nem comunistas nem coisa que valesse: eles apenas descobriram que só é possível proteger a liberdade da gente se entendermos que, para isso, é necessário defender a liberdade de nosso vizinho como se fosse a nossa. Nos anos 70, quase decorei a carta aberta que James Baldwin (escritor, negro e homossexual) endereçou a Angela Davis (jovem filósofa, negra e militante), quando ela estava sendo processada por um assassinato que não cometera, e o risco era grande que o processo acabasse em uma condenação "exemplar". Baldwin lembrava as diferenças de história, engajamento e pensamento entre ele e Davis, para concluir: "Devemos lutar pela tua vida como se fosse a nossa - ela é a nossa, aliás - e obstruir com nossos corpos o corredor que leva à câmara de gás. Porque, se eles te pegarem de manhã, voltarão para nós naquela mesma noite".

Os direitos fundamentais não são direitos de grupo, eles valem para cada indivíduo singularmente, um a um. É óbvio que grupos particulares (constituídos por raça, orientação sexual, ideologia, etnia etc.) podem e devem militar coletivamente pelos direitos de seus membros, mas, em uma sociedade de indivíduos, a liberdade de cada um, por "diferente" que ele seja, é condição da liberdade de todos. Por quê?

Simples: se meu vizinho, sem violar as leis básicas da cidade, for impedido de ter a vida concreta que ele quer, então meu jeito de viver poderá ser tolerado ou até permitido, mas ele não será nunca mais propriamente meu direito. "Milk" é um filme sobre um momento crucial na história das liberdades, mas não é um filme "arqueológico". A gente sai do cinema com a sensação renovada de que a militância libertária ainda é a grande exigência do dia. Ótimo assim.

Um amigo me disse recentemente que eu dou uma importância excessiva à contracultura dos anos 60/70. Acho, de fato, que ela foi a única revolução do século 20 que deu certo e, ao dar certo, melhorou a vida concreta de muitos, se não de todos. Acho também que suas conquistas só se mantêm pelo esforço cotidiano de muitos. Afinal (quem viu o filme entenderá), surge uma Anita Bryant a cada dia.
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Publicado originalmente em A Folha de S. Paulo, Ilustrada, em 26 de fevereiro de 2009.

Registro 241: Impressões carnavalescas

  • Não quero ser pessimista, mas alguma coisa estranha acontece com o Carnaval de Salvador. Seu gigantismo vai levando a festa pro brejo e não vejo muita saída para ela. O esgotamento do modelo que aí está é visível. Sabemos que não é o seu fim, a coisa ainda vai longe, mas a autofagia vai contribuir para o fim do modelo vigente. Lamenta-se o esvaziamento do circuito Osmar - Campo Grande. Mas se não me engano, lamentou-se o esvaziamento do Carnaval na Praça Castro Alves. O que o poder público não quer ver é que o tal esvaziamento é produto da comercialização do Carnaval. E não me venham com essa conversa de emprego e renda, quando os cordeiros ganham R$, 27,00, uns quebrados e parco lanche.
  • Já não se tira dinheiro do circuito Osmar, portando não há investimento, já que tudo é transferido para o circuito Dodô - Barra-Ondina, o mega-chic-carnaval dos camarotes, das grandes estrelas e das regras do mercado. É aí que todo mundo quer star, sobretudo a mídia, os globais, os políticos, as personalidades, os emergentes e também aqueles que querem um lugar ao sol. E a força da grana, não tem que segure. Ao mesmo tempo possibilitadora de coisas novas e interessantes, ela traz em si o próprio vírus da destruição, pondo por terra o que ela mesmo concebeu. O cantor popular já falou sobre isso referindo-se à cidade de São Paulo. O Carnaval de Salvador vai na mesma direção.
  • Não sou fã de Ivete Sangalo, como não sou fã das estrelas baianas criadas e desenvolvidas no laboratório da música Axé, termo impróprio, mas já institucionalizado. Mas não posso desconhecer a habilidade, inteligência e carisma de Ivete Sangalo no Carnaval. Ela, talvez seja a única estrela que vai para a avenida sabendo em que lugar está. Durval Lélis também sabe o que é fazer a festa. Nada de conceito pra gerar discurso, nada de show pra intelectual, nada de proposta vanguardista que se torna risível visto que é pobre e mal realizada. O que Ivete Sangalo faz é encarar o Carnaval como uma grande brincadeira. E ela sustenta essa brincadeira com profissionalismo de mega-empresária que sabe fazer tilintar moedinhas no cofre, o que todos fazem na avenida, mas a cantora não perde de vista a brincadeira, o jogo de se saber participante da folia. Veste sua fantasia, nada conceitual, nada extravagante, canta sucessos que fazem o folião pular, diverte-se divertindo os que estão na rua e em casa vendo-a pela televisão. Brilhante essa menina. Muito esperta, cativa o mais sizudo dos mortais. Por vezes sua irreverência descamba para a grosseria deselegante, destoando. Mas se pensarmos que a mola propulsora do Carnaval é a desrepressão e a elevação das partes baixas (os instintos) em detrimento da racionalidade e da metafísica, fazemos vista grossa, mas não deixa de ser grosseiro alguns dos seus comentários. Talvez se falasse menos e cantasse mais, sanaria o problema.
  • Ridículo os shows apresentados por Daniela Mercury. Eles atrasam o desfile e enchem a paciência do folião. Canta-se pouco e fala-se muito. Um discurso de frases feitas que não termina nunca. Além disso, escolheu roupas horríveis para si, e pior para os bailarinos. Aquela roupa dourada sem brilho vestida por ela, mais os figurinos dos dançarinos, era de dar dó. Quem concebeu aquilo não saca nada de folia momesca, não tem humor, não tem sagacidade criativa. Aquelas tocas e saias como se fossem crinolinas nas dançarinas já eram um horror, nos dançarinos, um desastre. E ninguém fala nada e todo mudo engole aquilo como se fosse uma novidade, uma invenção. Ridículo. Uma coisa velha travestida de nova. As coreografias, nem dá pra falar. Qualquer grupo de dança amador faz melhor. Cadê a assessoria? Triste quem acha que mega-estrela ouve assessoria, embora tenha uma monte delas, gente que diz amém, amém, amém.
  • Gerônimo foi um escolha pertinente para Rei Momo, embora continue achando que a escolha deveria passar por outro processo. Ele disse coisas sérias irreverentemente, como cabe a um Rei Momo que se preze. Além disso, por ter feito a bela canção que diz que a cidade é de Oxum, ele merece o aplauso dos soteropolitanos. Só por isso não deve ser esquecido nem ignorado.
  • A campanha do alleitamento materno foi às ruas e rendeu $$$$ matéria televisiva, quase todas na Rede Globo. Que a tal promoção surta efeito positivo para as mamães récem paridas e para o seus filhos.
  • Ação consciente e responsável a distribuição de camisinhas aqui e na Marquês de Sapucaí. Espera-se que a Camisa de Vênus tenha sido usada e de forma correta.
  • No domingo de Carnaval aconteceu mais uma cerimônia de entrega do Oscar. Mudou alguma coisa, mas ainda é demorada demais. Haja paciência pra aguentar. Mas esse ano melhorou. O deslize foi o Oscar para o comediante Jerry Lewis, outorgado por benemerência, como se ele não tivesse dado uma contribuição significativa para a sétima arte. Mas o velho ator, oitenta e tantos anos, foi elegante. Ao agradecer, expressou o seu espanto sobre premiar-se atos de benemêrencia. Saiu por cima O Professor Aloprado, diversão garantida nas matinês das décadas de 50 e 60.
  • Não se justifica a ausência de Leonardo Di Caprio na lista dos indicados para melhor ator. Seu trabalho em Foi Apenas um Sonho é superior ao de Brad Pitt, que tem uma boa atuação em Benjamin Button, mas sem a densidade para entrar na lista dos indicados. Não entendi. A família Ledger, elegante e discreta em sua dor, emocionou a platéia ao agradecer o Oscar póstumo para Heath Ledger. Ainda não vi as interpretações de Sean Penn e de Mickey Rourke, mas os membros da Academia puxaram a orelha de Rourke. A fala de Penn foi direta, sem meias palavras. As câmeras não precisavam apontar o roteirista de Milk durante a fala de ator, afinal de contas ele, o roteirista, já tinha saído do armário. Merecida a premiação de Kate Winslet por sua atuação em O Leitor. Somando-se ao superlativo trabalho em Foi Apenas um Sonho, gosto muito mais, a atriz de qualidades inegáveis demosntra que tem muito a realizar no cinema. Um achado trazer atrizes e atores premiados anteriormente para homenagear os indicados nas categorias em que eles foram premiados. Hugh Jackman mostrou-se competente, dança, canta e encanta com seu charme de homem bonito e sexy, escolha das revistas a qual me rendo. Penélope Cruz, demais! Não vi o filme, mas ela merece. Seu agradecimento simpaticíssimo e tocante
  • A feiúra dos camarotes no circuito Osmar era perceptível para os que tem um pouco de sensibilidade estética. Além de feios, não tinham bom acabamento. O Camarote Salvador, com aquelas colunas e lustres, era risível. Os emergentes deve ter adorado. O Harém era de um mau gosto atroz, principalmente no interior, mas deixa pra lá, não devemos perder tempo com esse assunto. Nada vai mudar mesmo.
  • Ouvir a família Macedo é sempre bom. Mas ouvir falação de cantor em cima de Trio Elétrico é dose! E a babação em frente ao camarote da TV Bandeirante? É de arrepiar. Baba o artista no Trio, baba os apresentadores, com aquela conversa mole, cheia de chavões repetidos a cada ano, como se tudo fosse igual, igual. Talvez seja mesmo, eu é que fico implicando. Mas a secreção escorrega e ninguém reclama. Para-se a animação para a rasgação de seda. Urg!
  • Li contos de Tennesseee Williams, edição da Companhia das Letras. Ainda não terminei. São 49 contos