quinta-feira, 12 de abril de 2007

Registro 39: A Rocha



Querida Edith Stein

Foste proclamada santa. Feminista, és uma ponte entre judeus e cristãos, místicos e filósofos, perseguidos e mártires.

FREI BETTO

Há anos medito sobre as surpreendentes veredas de tua vida. Sou apaixonado por ti. Na tua infância em Breslau, na Alemanha, teus pais, judeus devotos, te levavam aos sábados à sinagoga. Teu pai, comerciante de madeira, infundiu-te a inquietação diante do mistério da fé e te ensinou que as obras de Javé não cabem na razão humana.Porém, se já é difícil para um adulto apreender os desígnios de Deus quando passam pela dor, o que não dizer de uma criança que, como tu, viu o pai dar o último suspiro? Essa morte ressoou em teu espírito como silêncio de Javé. A fé apagou-se em teu horizonte. A ira divina, por uma razão que ultrapassava teus conhecimentos, fulminara como um raio tua família. Tua mãe assumiu, qual a "mulher perfeita" de que fala o epílogo do livro dos Provérbios, a educação dos sete filhos. Tua atenção centrou-se nos estudos. Em Göttingen, querias entender a razão das coisas. Malgrado os preconceitos machistas, alcançaste o doutorado em filosofia com uma brilhante tese sobre a empatia. De tal modo resplandecia teu talento que, aos 26 anos, mereceste o convite para, em Freiburg, te tornares assistente de Edmund Husserl, criador do método fenomenológico e inspirador de Jaspers, Scheler, Heidegger, Sartre e Levinas.

Aos 31 anos, o anjo de Deus cortejou-te e quebrou a película que impedia tua inteligência de transcender da razão à fé. Para escândalo de teus familiares, recebeste o batismo e, no mês seguinte, a crisma na Igreja Católica. Teu coração oscilava entre tantos pretendentes e a radicalidade da entrega ao Amado. Como professora no colégio das irmãs dominicanas, releste com outros olhos Tomás de Aquino.Em 1933, os alemães foram às urnas e alçaram Hitler ao poder. Logo, o nazismo iniciou a caça aos judeus. Foste destituída do Instituto Pedagógico de Münster. Prosseguiste, todavia, tuas pesquisas filosóficas. Não te conformavas ao ver a filosofia tomista, que renascia nos ambientes cristãos, tão apartada de outras correntes filosóficas modernas. Sabias que todo o pensamento filosófico aspirava à mesma fidelidade à experiência e ao ser. Assim, tu te esforçavas por estabelecer conexões entre razão analítica e intuição contemplativa, especulação e experiência, imanente e transcendente. Deixaste oito preciosas obras que aproximam o pensamento tomista e a fenomenologia, a antropologia e a teologia.

Outra mulher, também religiosa, cativou-te para a noite que une "amado com amada, amada já no amado transformada": Teresa de Ávila. Essa espanhola de coração fogoso, que viveu cerca de 350 anos antes, tomou-te pela mão, como uma menina a outra, e te conduziu ao que todo ser humano aspira: viver na fruição do amor.Sob a perplexidade de teus colegas de academia, aos 41 anos ingressaste no carmelo de Colônia. O único bem que levaste para o claustro foram seis grandes baús de livros. Em homenagem à tua inspiradora, tomaste o nome de irmã Teresa, Teresa Benedita da Cruz nome aliás bem brasileiro, de uma dessas mulheres que participam de nossas comunidades eclesiais de base.

No mesmo ano em que te consagraste ao Absoluto, os nazistas avançaram na campanha pela "purificação da raça". Eras judia de nascimento, semita de espírito e seguidora de um judeu, Jesus. Tua prioresa considerou prudente afastar-te da Alemanha. Em 1938, foste para o carmelo de Echt, na Holanda. Porque tinhas muita fé, não conhecias o medo. Mas evitavas a temeridade. Por isso, teu coração apertou-se quando Hitler ocupou a Holanda, em 1941. Oravas pelo fim da guerra e pelas vítimas que, como Anne Frank e sua família, experimentavam, a pouca distância de ti, os mesmos temores.

Em 1942, a Gestapo invadiu teu carmelo, arrebentou as portas, profanou o claustro e te arrancou da tua cela. O terror esquadrinhava cada recanto do mundo para aplacar essa sede de sangue, que faz da onipotência monstro insaciável. Num vagão de gado, foste levada, primeiro, ao campo de concentração de Westerbork, na Holanda; depois, para Auschwitz, na Polônia.

Certa manhã, despiram-te e, em companhia de muitas mulheres, ordenaram-te entrar no salão de banhos encimado por pequenos tubos que desciam do teto. Abertas as torneiras, não era água o que saía, era fumaça. Tuas orações acalmavam-te, enquanto tuas narinas ardiam entupidas pelo gás. Teus pulmões pareciam murchar dentro do peito, inusitada contração de um parto que te fazia nascer para o mais profundo de ti mesma. No mais íntimo de ti, quando todo o oxigênio se esvaíra, encontraste Aquele que inundara a tua vida de amor. O que era terno arrebatou-te, enfim, para o eterno.

João Paulo 2º beatificou-te em maio de 1987. No domingo, foste proclamada santa Edith Stein. Não eras perfeita nem deixaste de ser pecadora. Eras, sim, uma "rocha" ("stein", em alemão). Lembras-te daquele mestre que te deixava ruborizada ao dizer, em classe, "batam nesta 'pedra' e dela irradiarão faíscas de sabedoria"?

Feminista, és agora uma ponte entre judeus e cristãos, místicos e filósofos, perseguidos e mártires. Lamenta-se apenas que sejas reconhecida pela hierarquia eclesiástica por ter abraçado a fé católica. Haverá o dia em que a igreja reconhecerá também o valor das mulheres judias que foram profundamente fiéis à tradição da Torá.

A comunidade dos fiéis proclama-te modelo para todos nós, especialmente para as vítimas da intolerância política ou racial. Soubeste adorar o Pai "em espírito e verdade", como recomenda Jesus; viraste um paradigma para tantas jovens que buscam, pelos labirintos de um mundo marcado pelo consumismo e pela falta de sentido, uma razão para viver e morrer de amor.

Carlos Alberto Libânio Christo (frei Betto), 53, frade dominicano e escritor. O texto foi bublicado em 15 de novembro de 1998, na Folha de S. Paulo.