sábado, 28 de novembro de 2009

Registro 294: A última sessão de teatro


Pensei encontrar uma excitação exagerada no hall de entrada do Teatro Vila Velha, aquela estereotipada atitude em dia de estreia, quando a classe teatral se reúne: veteranos, novatos, aspirantes, muitos desejosos de estar no palco, o que é natural. Os famosos, os que se acham famosos, os colunáveis, os amigos dos artistas, os familiares, todos num enxame que, por vezes, parece que o espetáculo é na plateia, não no palco. Mas não foi essa a atmosfera que vi e senti ontem à noite. O Teatro Vila Velha de saudosa arquitetura, agora no seu modelo atual, de múltiplas possibilidades, abrigava um numeroso público sem estardalhaço.

Os convidados foram chegando e se reunindo à espera de A Última Sessão de Teatro, o espetáculo-homenagem que Luiz Marfuz criou e Selma Santos produziu para comemorar os 70 anos do ator, professor e diretor Harildo Déda. Boa parte da plateia era de ex-alunos, companheiros de palco, amigos, familiares, mas se não me engana a memória, dei por falta de muita gente.
Perdoa-se a não presença daqueles que já se foram, pois alí não podiam estar. Talvez numa sessão espírita!
Sem muita certeza, posso dizer que a energia de alguns estava presente: João Augusto, Sônia dos Humildes, Alberto D'Aversa, Margarida Ribeiro, Álvaro Guimarães, João Gama e tantos outros que estiveram presentes em momentos diversos da vida de artista de Harildo Déda.
Da mesma forma, senti a falta de depoimento dos companheiros da "antiga" no programa.

Depois do inevitável merchadise e do aviso de como se comportar, houve uma longa pausa. Necessária para nos preparar para a finalidade da noite. Um silêncio grave e pesado tomou conta da sala. De repente soaram os três sinais. Soaram como se de longe, de muito longe dos tempos. Por que não substituí-los pelas pancadas de Molière? Por fim, a luz banhou o elegante, sóbrio e apropriado espaço criado por Rodrigo Frota, jovem cenógrafo que se afirma no palco, com bastante sensibilidade para o ofício. Os adamascados que usa para criar o ambiente remetem ao palco, palco histórico. Os poucos móveis completam a cena, cujo piso de madeira prensada e de cor natural reflete a luz clareando os tons escuros dos tecidos. Três áreas para a representação: um palco que avança, uma área sob uma cobertura e resguardada por uma cortina. Acima dela, uma balaustrada. Não fosse o ator uma apaixonado por Shakespeare seria apenas uma coincidência. Ocorre-me agora ser tal opção, uma citação? Mas isso não tem importância. Ficar decifrando códigos durante a apreciação é não se envolver com a essência da representação.
Criada a moldura, instalada a atmosfera pela habilidade do diretor, eis que entra em cena o ator, o personagem, o ator-personagem? O jogo inicial é o do teatro dentro do teatro. E logo sabemos que o ator-personagem já não consegue se lembrar dos textos. A memória falha. E é sobre isso que ele fala, mas fala, sobretudo dos significados do teatro. E nos pergunta, e a si mesmo, se o teatro ainda significa alguma coisa. A ironia de tudo: o ator é conhecido por HD, mas sua memória falha e ele abandona o teatro quando da temporada de Rasga Coração, o monumental e controverso texto que Oduvaldo Vianna Filho nos legou do leito do hospital. Não há aqui a pretensão de analisar o embate geracional que o talentoso autor traz em seu texto, mas informar que ele vai servir, em A Última Sessão de Teatro, para ilustrar de maneira muito apropriada a temática que Luiz Marfuz escreveu para Harildo Déda.
No desenrolar do enredo, mais um texto agrega-se ao tema da peça - a relação de um velho ator com um jovem desejoso de se tornar ator tal qual seu ídolo. Fato que acontece quando HD, depois de muito relutar, passa a lhe ensinar o ofício. O texto seguinte, Eles Não Usam Black-tie de Gianfrancesco Guarnieri, serve de contraponto, da mesma forma que Rasga Coração, somando-se a uma situação conflitante da peça de Marfuz. No dia do teste para o papel de Lucas na montagem de Rasga Coração, retorno de HD aos palcos, o jovem Luiz Fernando mente, justificando o seu atraso. Sua mentira convence o mestre e ele ganha o papel. Ao ser descoberto é expulso da casa por HD e por sua companheira, Olga. Nos textos de Guarnieri e Vianinha, um pai bate-se com um filho; duas gerações, com pensamentos diversos entram em conflito. Nas duas peças, apesar do afeto que une os dois, o filho é expulso de casa. De forma engenhosa, sem grandes malabarismos, Marfuz arma a sua trama e expõe de maneira muito viva os três momentos, costurando-os de forma bastante segura. Esse mecanismo torna seu texto abrangente, ele pode falar a outra faixa de público, aquela que não é do meio teatral, já que o seu texto está permeado de referências somente conhecidas para quem é do métier ou conhece Harildo Déda.
Antes de introduzir os dois textos consagrados da dramaturgia nacional, Marfuz insere na cena o "inventor do humano", fazendo HD interpretar monólogos retirados de peças de Shakespeare, autor que ele usa também para ensinar Luiz Fernando a dizer um texto. Para quem conhece as habilidades do ator-professor com o universo do bardo, fica em nós a vontade de vê-lo em cena interpretando as monumentais criações de Shakespeare. Ao dizer o monólogo de Lear, o intérprete deixa ver o que pode fazer com o papel. Fosse noutra praça, o nosso primeiro ator, teria condições de fazer o Rei Lear na totalidade, ou Próspero de A Tempestade.
Esclarecido o embuste, recurso que Luiz Fernando usou para ganhar o papel, tanto HD quanto Olga acolhem o jovem, que vê a sua chance chegar. No final de A Última Sessão de Teatro, diferentemente dos personagens Lucas e Tião, das peças citadas, Luiz Fernando se integra ao núcleo "familiar" e passa a fazer parte da família do teatro, unindo-se ao elenco da montagem de Rasga Coração, sem antes ouvir reprimendas do mestre. A relação mestre e discípulo se completa.
O espetáculo se ergue sem pirotecnia por parte do diretor. Marfuz está a serviço de uma ideia e do seu intérprete, Harildo Déda. Sem descuidar de Neide Moura (Olga) e revelando Fernando Santana, ator com futuro promissor, o diretor arma a cena de maneira que os personagens apareçam e os atores possam mostrar a competência necessária para comunicar-lhes ao público. É certo que o foco é HD, e seu intérprete sabe tirar partido desse personagem tão próximo dele. De maneira irônica, ele expõe seus cacoetes e nos convence de que não é ele quem está em cena. Esse jogo torna o espetáculo uma demonstração de sua metamorfose. Mas todo tempo, é como se ele piscasse nos enganando. Hypokrités.
Na estréia, contando com a cumplicidade da plateia, Déda não se deixou levar por esse sentimento, mas soube tirar partido da situação e nos envolveu sedutoramente. Tanto nas passagens realistas da peça, quanto nos momentos de reflexão, parênteses que se abrem ao longo do drama, ele se utiliza do cabedal que a vida no palco e na sala de aula lhe deram. Atinge nos monólogos uma qualidade interpretativa invejavel para qualquer ator que queira estar no palco com a segurança que ele tem. Nesses momentos, o ator utiliza e domina os recursos vocais e corporais para nuançar as palavras que brotam de uma compreensão que tem do texto. A palavra compreendida soa clara e precisa, pois dita pelo domínio da técnica, sem o artificialismo teatralista, mas reveladora da teatralidade. Essa compreensão do que é estar no palco, essa outra realidade, Harildo Déda mostra sem pomposidade e divide a cena com seus companheiros. Gostaria de têlo ouvido completar as canções que em dois momento entoa. O mágico e inesperado momento em que começa a cantar Over the Rainbow é interrompido sem que a cena se complete. Uma pena! O fugaz momento em que canta um trecho de Zumbi (Guarnieri, Boal, Edu Lobo) poderia se concluir. Déda tem recursos de cantor para exibi-los, como já o fez na montagem de Zumbi (1966) sob a direção de Álvaro Guimarães e na Companhia das Índias (Nelson de Araújo, Orlando Senna), em 1968, quando cantava à capela Ol Man River.
Neide Moura, tem nas mãos o personagem mais ingrato. No jargão e na tradição do teatro, é escada para o protagonista. Por isso, Olga não lhe dá possibilidade de grandes vôos, mas a atriz corresponde ao que lhe é dado, marca com sua presença a cena. Na silenciosa Romana de Black-tie demonstra qualidades de atriz presentes em toda a sua atuação.
Fernando Santana como Luiz Fernando, o jovem ator que se posta diante da casa de HD para ser atendido e realizar seu desejo, é uma grata supresa. Infunde verdade ao personagem, usa bem a sua bela voz e não se intimida diante dos atores experimentados com quem contracena. Uma boa promessa.
A iluminação de Walter Santos e Luiz Marfuz é bem concebida, necessitando de pequenos ajustes. Toda produção revela cuidado e profissionalismo.
Ao fim de tudo, fica-se com a certeza de que o teatro já não é uma recomendação médica como o foi na Grécia, nem mais uma cerimônia que unia a pólis. Ainda assim, consegue tocar de meneira indelével aos que se aproximam dele: os que trazem inpune a marca de Dioniso ou os querem comungar com os oficiantes de um rito já desencantado que nos arrasta quando é pleno nas suas constituintes.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Registro 293: Texto de Fernando de Barros e Silva

O texto de autoria de Fernando de Barros e Silva é exemplar, porque expõe de forma direta e clara o obscurantismo da universidade que expulsa a aluna e avaliza, em nome de princípios pedagógicos, a barbárie. A que ponto nós chegamos?! As justificativas atestam a perversidade de uma instituição que deveria cuidar da formação de estudantes, futuros profissionais e quiçá dirigentes da nação. No entanto, o que ela faz contradiz os princípios que regem o universo da educação. Fascistas! É o que se pode dizer deles. Fosse eu pai de uma filha pediria sua transferência imediata.

Os linchadores da Unib
A notícia da expulsão de Geisy Arruda pela Uniban é estarrecedora. O informe divulgado ontem pela direção da universidade, por meio do qual a aluna ficou sabendo da decisão, é um panfleto obscurantista que requer análise. Ele transforma a incitação ao estupro de uma jovem acossada na universidade por algumas centenas de marmanjos em "reação coletiva de defesa do ambiente escolar".

Eis o que conclui a "sindicância" da Uniban: "Foi constatado que a atitude provocativa da aluna buscou chamar a atenção para si por conta de gestos e modos de se expressar, o que resultou numa reação coletiva de defesa do ambiente escolar". Geisy, diz a nota, ensejou "de forma explícita os apelos dos alunos" e foi expulsa por "flagrante desrespeito aos princípios éticos, à dignidade acadêmica e à moralidade". O título do informe agrega ao conteúdo um toque de humor negro: "A educação se faz com atitude e não com complacência".
De que educação falam esses farsantes? Devemos chamar essa fábrica de açougueiros de instituição de ensino? Que princípio ético ou dignidade acadêmica podem sobreviver a uma escola que pune a vítima humilhada para respaldar a brutalidade e a covardia de uma turba excitada com a própria fúria?
Como se sentirão agora as garotas que estudam na Uniban? Estarão os rapazes liberados pela direção a agir sempre assim em defesa do "ambiente escolar"?
As cenas são conhecidas: "Pu-ta!, pu-ta!", "vamos estuprar!", "solta ela, professor!". Um aluno chutou a maçaneta da porta da sala em que a moça estava encurralada; outros tentaram colocar o celular entre suas pernas para fotografá-la.
A Uniban invoca um zelo pedagógico que não tem para satisfazer a vontade fascista da maioria e preservar os negócios. Com sua decisão, ela deu chancela institucional aos atos de barbárie praticados em suas dependências. Mais do que isso: ao linchar Geisy, a universidade consuma o serviço que os alunos haviam deixado pela metade.
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Folha de São Paulo, edição de 9 de novembro de 2009

domingo, 8 de novembro de 2009

Regsitro 292: Lá se foi Anselmo Duarte

Lembro-me bem quando vi o filme de Anselmo Duarte, O Pagador de Promessas, exibido no Cine Madrid em Feira de Santana, Bahia. Conhecia o ator dos filmes da Atlântida, exibidos no Cine Teatro Cliper, de propriedade de meu pai, na cidade de Ipirá.
Ver O Pagador de Promessas foi (é) uma experiência marcante. A atmosfera do filme, as interpretações, a forma como o cineasta capta Salvador e seu arredores, o desenvolvimento do roteiro e a estrutura narrativa clássica prenderam a atenção do garoto que aos 12 anos tinha o cinema como a sua maior diversão. Era o meu brinquedo preferido, capturado que fui desde os seis anos, quando era levado às matinês no cinema onde passei parte de minha infância.
Anos mais tarde, me dei conta da polêmica desencadeada pelos cineastas ligados ao ciclo que ficou conhecido como Cinema Novo, críticos contundentes do filme. Consideravam a obra esquemática, acadêmica, conservadora nas suas constituintes. Não aceitavam o fato do filme ter recebido a Palma de Ouro no Festival de Cannes (1962). Por falar em premiação, a lista de láureas concedidas ao filme O Pagador de Promessas, aos seus atores e técnicos é imensa. Para quem se interessar em conferir, indico o ótimo Dicionário de Filmes Brasileiros de autoria de Antônio Leão da Silva Neto (não é meu parente).
No tempo da minha adolescência, eu não me interessava por essa querela, ainda hoje não sei se isso me interessa. O que importava é que o mesmo impacto causado em mim pelo filme de Anselmo Duarte, foi o mesmo causado por Barravento (1961), Porto das Caixas (1962), Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Vidas Secas (1963), entre outros expoentes da cinematografia tupinquim. É certo que ao longo daquele tempo, fui percebendo as diferenças que regiam a gramática dos diretores que se opunham ao filme de Anselmo Duarte, mas isso não mudou em nenhum momento a força de comunicação do seu filme em mim.
Revi O Pagador de Promessas inúmeras vezes. Em todas elas, constatei a presença dessa qualidade que torna alguns filmes memoráveis. Mesmo com outros olhos, os já cansados de tantas imagens e tantas estéticas, pude retirar da obra um leitura renovada, um aspecto não percebido, um detalhe perdido. Em meio a tudo isso, a força da primeira impressão a pulsar diante das cenas revisitadas.
O adolescente ensimesmado que residia na mesma rua do Cine Madrid, não imaginava que um dia estaria em um set de filmagem juntamente com Anselmo Duarte e fazendo um personagem que era marido da personagem de Ilka Soares. Tal acontecimento, devo a Djalma Limongi Batista, que me escolheu para o pequeno papel em seu longa Brasa Adormecida (1986). Filmado em uma belíssima fazenda no interior de São Paulo, o longa reunia um elenco numeroso e Anselmo Duarte marcava com sua experiência e passado o filme e, com histórias, os longos e às vezes entediantes intervalos das filmagens. Enquanto eu ouvia seus casos, lembrava-me do Cine Teatro Cliper onde vi Tico-Tico no Fubá, Absolutamente Certo e outros filmes que a memória não dá conta.
Fui espectador de Vereda da Salvação, o belo filme que fez depois do sucesso de O Pagador de Promessas. Rejeitado pelo público, raramente é exibido. Quem sabe agora, depois de sua morte, façam uma retrospectiva dos seus trabalhos como ator e diretor. Vê-lo em O Caso dos Irmãos Naves de Luiz Sérgio Person, é tomar conhecimento de uma ator com possibilidades interpretativas que não se restrigem ao trabalho do galã que foi.
Aplausos para Anselmo Duarte.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Registro:291: Não deixe de ler

O texto de João Pereira Coutinho foi publicado em A Folha de S. Paulo, edição de 3 de novembro de 2009. Leia. Vale a pena.

Temor e tremor

JOÃO PEREIRA COUTINHO

ALMOÇO COM um colega de trabalho no centro de Lisboa. Subitamente, o celular dele dá sinais de vida. Ele atende. Reparo que fica pálido. Levanta-se, grita pelo celular um "já-estou-a-caminho" que me faz levantar também e sai do restaurante. Pago a conta, entro no carro com ele. Temo o pior: um familiar atropelado, sequestrado, assassinado.
Falso alarme: o filho, uma criança com sete anos, apresentou sintomas de febre no colégio. E dores de cabeça. E alguns vômitos. As salas de aula foram imediatamente evacuadas, e a criança, aterrorizada com os procedimentos, foi isolada em compartimento à parte, onde só se entra com máscaras e, imagino, uma daquelas vestimentas que os astronautas usam na superfície lunar. "A professora suspeita de gripe A", diz-me ele, com a voz rouca, a ameaçar pranto.
Chegamos ao colégio, ele sai do carro, corre para a sala em que está o filho. Antes de entrar no leprosário, entregam-lhe uma máscara. Ele põe a máscara, agarra a criança -que, entretanto, adormeceu de tanto chorar- e a leva para o carro. Mas pergunta primeiro: "João, preferes ir de táxi para não haver perigo de contágio?".
É nesses momentos que uma pessoa relembra os pensamentos estoicos de Marco Aurélio e responde: "Não é preciso. Eu vou sobreviver".
A criança dorme. O pai, ainda de máscara, ameaça não dormir nas próximas noites. E eu, sem máscara (mas com a úlcera dilatada), medito em silêncio respeitoso. Por que motivo o mundo enlouqueceu à minha volta?
A resposta é mais sinistra do que imaginam. Todos os anos, a gripe sazonal ataca com ferocidade. O vírus, que potencia outras complicações de saúde, mata meio milhão de pessoas no mundo inteiro. Um verdadeiro massacre que, estranhamente, não faz manchetes nos jornais como a gripe A. Motivos?
A resposta mais evidente seria dizer que a gripe A é incomparavelmente mais mortífera do que a gripe sazonal que nos visita todos os anos.
Infelizmente, a resposta estaria errada: a julgar pelo número de vítimas no hemisfério Sul, onde o inverno já veio e já foi, as vítimas da gripe A foram bastante inferiores às vítimas anuais da gripe sazonal.
Só na Austrália, informa a edição corrente da revista "The Atlantic", morreram mil pessoas. Todos os anos, morrem na Austrália 3.000 com a gripe normal.
Se assim é, repito, como explicar a histeria?
Com uma única palavra: juventude. Afirmei que a gripe sazonal mata meio milhão de pessoas todos os anos. Mas essas 500 mil almas são, na esmagadora maioria dos casos, velhos e, é claro, doentes crônicos, tudo gente que não entra na contabilidade midiática. Velhos e doentes são, por assim dizer, "dispensáveis".
A gripe A altera o cenário ao atacar e, por vezes, matar gente saudável e jovem. As preocupações médicas são compreensíveis e respeitáveis: uma pandemia de gripe A seria dramática. Mas a histeria global é sobretudo ideológica, não médica: ela explica-se pelo simples fato de a gripe A não respeitar a "saúde" e a "juventude", os dois únicos deuses que o mundo moderno respeita e louva com verdadeiro fervor pagão.
Se a gripe A se limitasse ao seu trabalho habitual, ceifando apenas velhos e doentes, não haveria um espirro nos jornais. E a criança? A criança sobreviveu.
Desde logo porque não era gripe, muito menos a temível A. "Provavelmente foi uma virose", disse-me o pai, dias depois, aliviado. Sorri. "Virose" é a palavra favorita dos médicos para explicarem o que não conseguem explicar. Mas depois acrescentou: "Seja como for, vou vacinar a família inteira contra a gripe A. Nunca se sabe".
Precisamente: nunca se sabe. A frase, aliás, resume o estado da arte sobre o assunto. No referido número da revista "The Atlantic", alguns especialistas mundiais levantaram dúvidas sobre a eficácia da vacinação. Um exemplo: em 2004, houve uma quebra de 40% na produção da vacina. Paradoxalmente, o índice de mortalidade desse ano ficou rigorosamente na mesma.
Pior: em 1989, apenas 15% da população americana e canadense acima dos 65 anos optava pela vacina; hoje, a percentagem subiu para os 65%. Paradoxalmente, o número de mortos também subiu.
Preferi não falar mais sobre o assunto. Ainda a recuperar do primeiro susto, talvez o meu colega não se recuperasse de um segundo. E para quê? Se a vacina traz segurança, ou uma ilusão de segurança, a verdade será sempre um luxo a que não nos podemos permitir.