domingo, 23 de maio de 2010

Registro 307: Teatro quando é bom, é ótimo! A Cela e Atire a Primeira Pedra

Vou muito pouco ao teatro. Não devia ser tão ausente. Quando vou e o espetáculo é bom, sinto imenso prazer.

No fim de semana fui ver A Cela, de Michel Azama e Atire a Primeira Pedra, crônicas de Nelson Rodrigues adaptadas para o palco por Cleise Mendes e Fernando Santana. O primeiro espetáculo, recém estreado no Teatro XVIII, sai de cartaz no dia 23 maio. Pena que não prolongue a temporada. O segundo, vindo de outras temporadas,  fica na Sala do Coro até o dia 30. Ver as duas montagens e mergulhar no universo proposto pelas duas cenas causou em mim uma satisfação enorme.

A Cela, texto francês gira em torno de uma presidiária prestes a sair da prisão depois de cumprir uma pena de 20 anos, por ter cometido um crime passional. Uma única personagem que ao narrar sua vida na prisão, seus sentimentos, sua condição, desdobra-se em outros personagens que povoam o mundo da mulher. Ao penetrarmos em seu mundo, nos aproximamos desse ser que vacila frente à liberdade depois do aprisionamento. O monólogo contundente em nenhum momento descamba para o melodramático e renuncia ao pieguismo que por vezes cerca a temática. Na perspectiva da Libertada, tomamos conhecimento do dia-a-dia na prisão e mais ainda do conflito que se instaura diante da saída. Uma nova vida para ser vivida leva as marcas do crime e o estigma do confinamento na prisão. Embora cumprida a pena, aquele ser, ex-recluso, continuará com as marcas da exclusão. Assim, vai se inserir novamente no social carregando “os muros por dentro e a pela por cima”, como diz a personagem a certa altura.

O texto proporciona um belo exercício interpretativo a cargo da atriz Jacyan Castilho. Durante uma hora e quinze minutos, a intérprete domina a cena com habilidade corporal e vocal e toca a sensibilidade do espectador. A atriz sabe dosar os momentos de euforia, desespero, solidão e dor mesclando-os com ironia. Um belo solo.

O desafio de estar no palco, expondo com mestria os recursos interpretativos, faz com que o espectador suporte o desconforto causado pelo tema ali narrado. Trabalhando no interior do realismo e do psicológico, mas não se prendendo a ele, Jacyan Castilho potencializa a personagem mostrando-a através de recursos que quebram essa estrutura. Esse jogo amplia o drama nos fragmentos que se organizam, mas não de forma linear, visto que as lembranças não podem se organizar numa rígida cronologia. As significações contidas no texto são presentificadas no corpo da atriz. Ao mesmo tempo em que ilustra determinadas situações, esse corpo expressivo escapa das armadilhas que regem a construção de uma personagem sustentada nas convenções do realismo psicológico para expressar sentidos para além do fotográfico. Isso não implica em uma atuação totalmente antinaturalista, mas o que se vê em cena é o jogo entre códigos que se misturam ricamente na cena. Vemos em cena a criação de um indivíduo, mas a atriz adiciona partituras que extrapolam a caracterização pura e simples. Com isso, mostra certos efeitos de movimentação, postura e entonações que fogem ao esperado, fazendo com que as palavras e as emoções ganhem uma dimensão extracotidiana.

Para que o trabalho da atriz se materialize coerentemente facetado é necessário que suportes sejam dados, embora consideremos que atuar é sempre saltar no espaço sem rede de proteção, ainda que elas existam invisíveis. Ao conceber a moldura para a ação, os criadores do espetáculo, Cláudio Machado e Jacyan Castilho, instauram a poética da cena pelas imagens, atmosferas, rupturas. Para isso contribuem o cenário de Rodrigo Frota, a luz de Pedro Dutra e o figurino de Luiz Santana.

Utilizando do efeito da tela transparente, Rodrigo Frota múltiplica e dinamiza o espaço com a ajuda da luz. No primeiro instante, se vê uma parede preta e nela uma porta recortada Ao trabalhar com o iluminador, oferece surpresas. Quando a luz incide por trás da tela revelam-se outros espaços para a representação. Uma boa solução aos propósitos da encenação. Assim também é o desenho da luz sempre recortada.

A Cela é uma realização do Grove Estúdio Teatral que já havia apresentado A Canoa com Cláudio Machado e direção de Jacyan Castilho.

Atire a Primeira Pedra é uma incursão nas crônicas que Nelson Rodrigues publicou no jornal carioca A Última Hora. Adaptadas por Cleise Mendes e Fernando Santana também ator do espetáculo, as crônicas revelam recortes do universo feminino nas suas relações com o macho patriarcal – pai, marido, amante. Por outro lado, esses retratos exacerbados pela ótica do cronista-dramaturgo, mas não falseados, deixam transparecer as relações entre as mulheres – esposa, mãe, amante, irmã. Nelson Rodrigues domina o gênero com seu olhar de jornalista, relator preciso dos acontecimentos. Essa precisão é captada pelos adaptadores e o que se vê na cena são recortes desses retratos da vida como ela é.

Luiz Marfuz, o diretor de Atire a Primeira Pedra orquestra os elementos da encenação trilhando diversos gêneros para enfatizar o jogo cênico em sua mais pura teatralidade. O diretor não mede esforços para captar o espírito rodrigueano, mas não se deixa escravizar por ele. Seu espetáculo tem o sabor de uma fotonovela que não se leva a sério, visto que escancara o ridículo, os exageros, a passionalidade perpassando as ações das personagens não caricaturas, pois revelam a pobre humanidade. Aí são mostrados os amores suburbanos, traições e a torta sexualidade de uma classe média que teima em se manter pelas aparências. Tudo isso está em cena traduzido em tintas fortes, assumindo a breguice de certas canções populares que cantam os amores rotos, as dores de cotovelo, a melosidade de cartão postal e suas frases estereotipadas.

Para realizar sua concepção, Marfuz conta com um elenco numeroso de jovens atores formados pela Escola de Teatro. Esse grupo soube captar a proposta e entra no jogo cênico com segurança. Atores e atrizes mostram-se preparados para a tarefa. As qualidades individuais se manifestam, mas o que chama a atenção é o conjunto, a precisão com que caracterizam as personagens. Isso só se realiza porque as qualidades da preparação corporal e vocal estão visíveis em cada intérprete e se alguns se sobressaem não diminuem seus parceiros de cena. Espera-se que o Grupo Os 50’tões continue a trabalhar, aprofundando suas pesquisas para realizar encenações de qualidade. Historicamente, o teatro brasileiro foi enriquecido pela contribuição dos grupos. E se as condições são adversas, o grupo pode encontrar as alternativas para viabilizar a pesquisa e traduzi-las esteticamente.

Mais uma vez no palco a realização cenográfica do jovem Rodrigo Frota, demonstração de habilidades não apenas nos cenários das duas peças comentadas, mas por outras realizações. A solução da cortina vermelha com a preta, a segunda que se abre em determinados momentos, cria um belo efeito, assim como a extensa mesa sobre o módulo no fundo do palco. Os abajures distribuídos ao longo da mesa trazem diversas significações, remetendo a cena para a penteadeira no lusco-fusco das alcovas e também para as boates esfumaçadas. Completa a cenografia uma mesa que serve às ações e as marcações desenhadas por Luiz Marfuz.

O figurino de Miguel Carvalho explora a sensualidade dos corpos femininos e caracteriza bem os tipos masculinos, alguns beirando ao cafona, um traço que a montagem não tem envergonha de exibir. Concebidas em vermelho, preto e branco, as roupas caracterizam muito bem as personagens. Se há uma restrição, ela está no figurino do Coro das Tias em Noiva da Morte. Eles destoam do conjunto. Cenário e figurinos são realçados pela luz de Fernanda Paquelet.

Os elementos cenográficos e os figurinos estabelecem uma conexão com o som da cena. No espetáculo, esse som brega, que ouvidos mais sensíveis rejeitam, adquire um sabor especial. A música integra-se organicamente ao todo da encenação e são bem cantadas pelo elenco.

Uma bela, divertida e ácida encenação. Com momentos muito bem solucionados e interpretados competentemente pelo elenco, é demonstração de que o nosso maior dramaturgo – afirmação questionável – tem muito a oferecer aos artistas de teatro e ao público.