quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Registro 227: Para todos... 2009

RECEITA DE ANO NOVO

Carlos Drummond de Andrade

Para você ganhar belíssimo Ano Novo...

Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las
na Gaveta.

Não precisa chorar de arrependimento
pelas besteiras consumadas nem
parvamente acreditar que por decreto

da esperança a partir de Janeiro
as coisas mudem e seja claridade,
recompensa, justiça entre os homens

e as nações, liberdade com cheiro e
gosto de pão matinal, direitos respeitados,
começando pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um ano-novo que mereça
este nome, você, meu caro, tem de
merecê-lo, tem de fazê-lo novo,

Eu sei que não é fácil mas tente,
experimente, consciente.

É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Registro 226: Retirado da gaveta

A CENA PARA ALÉM DOS CONCEITOS
TEATRO DRAMÁTICO E PÓS-DRAMÁTICO

Foi puro prazer assistir aos dois espetáculos apresentados pelo grupo CLOWNS DE SHAKESPEARE, do Rio Grande do Norte, no Festival Latino Americano de Teatro da Bahia, acontecimento artístico-cultural que se deu na primeira quinzena de setembro em Salvador, evento realizado por Oco Teatro Laboratório.

O grupo potiguar trouxe dois espetáculos para o Festival. Fábulas, uma especial adaptação para o palco das fábulas de Esopo e La Fontaine, selecionadas por Monteiro Lobato. Os Clows Marco França, Nara Kelly e Rogério Ferraz, dirigidos por Fernando Yamamoto, encarregam-se com grande maestria dos diversos personagens (animais), sem que precisem utilizar de disfarces ou figurinos ilustrativos para presentificá-los na cena. Espetáculo destinado às crianças, não se deixa prender na classificação caduca de teatro infantil.

O segundo espetáculo, a encenação de Muito Barulho Por Quase Nada, de W. Shakespeare, comprova mais uma vez a qualidade do grupo. Tanto um trabalho quanto o outro são pistas para uma dimensão da cena teatral brasileira atual. Apreciar as duas montagens é perceber o diálogo entre o regional, o nacional e as pontes lançadas para fora do nosso quintal. Por essas vias de mão dupla correm idéias e práticas vivificadoras.

Leitura cênica muito oportuna, os dois espetáculos demonstram a qualidade do teatro fora dos eixos – como sugere Cleise Mendes –, eixos compreendidos aqui como territórios hegemônicos do fazer teatral no Brasil, lugares por onde passa uma suposta supremacia da invenção e qualidade da produção cênica. Essa suposta superioridade do eixo Rio/São Paulo é quantitativa, não qualitativa, como demonstra as duas encenações aplaudidas longamente pela platéia, gratificada pela engenhosidade das concepções cênicas e, sobretudo, pela presença dos atores e atrizes.

Os espetáculos criados em Natal são comprovadamente realizações estéticas bem acabadas, produzidas fora do circuito do teatro profissional dos centros economicamente hegemônicos do país, mas ainda assim altamente profissionais.

É certo que identificamos nos dois espetáculos elementos teatrais colhidos aqui e ali, mas trabalhados de forma criativa pelos integrantes dessa trupe vivaz e comunicativa. No entanto, a essência do seu trabalho indica um conhecimento de suas raízes, da tradição e do “novo”, tomados de maneira consciente e reelaborados no palco, de forma que as encenações vistas no espaço do Teatro Vila Velha cumprem os seus propósitos diante de um público cativado, não pelas facilidades e modismos, mas por perceber a somatória de informações que o teatro sem fronteiras mostra.

O diálogo que se dá entre o clássico e o popular, nos variados gêneros incluídos nesses universos, tomam forma na maneira como as fábulas de Esopo e La Fontaine são transpostas para o palco, na abordagem que se dá ao texto de Shakespeare, nas interpretações sob multíplice registros, no intenso lirismo e no domínio dos códigos que regem o teatro, sem que se dê o aprisionamento aos ditames de uma cartilha. Juntam-se a esses elementos os figurinos precisos, bem idealizados e confeccionados, sem preocupação realista, histórica ou arqueológica. Ainda que em suas linhas se encontrem resquícios dos excessos deslumbrantes do barroco e das indumentárias características de certos folguedos populares, a concepção não trilha o caminho da verossimilhança. Nota-se em seus traços a influência do desenho de Gabriel Vilela, sem que se note cópia, mas releitura de uma estética marcadamente brasileira. As indumentárias são confeccionadas em tons claros, uma opção que faz ressaltar o uso das cores quentes a animar a palheta em que predomina o branco.

Com relação ao tratamento dado ao texto, comprova-se a sua força e sua eficácia enquanto signo no interior de outros signos, os da representação. Essa comunhão entre a palavra e o gesto, entre a palavra, a luz, os figurinos e o espaço cenográfico, mostra-se bem articulada por Fernando Yamamoto, em Fábula, e por ele e Eduardo Moreira, em Muito Barulho Por Quase Nada. Suas opções geram significados e sentidos no interior do palco e da platéia, frutos de uma pesquisa para encontrar modos de dizer e se fazer compreender, uma das finalidades do teatro em sua constante re-invenção estética e cultural.

Se a montagem da comédia de Shakespeare é relevante no sentido de confirmar a sua indiscutível feitura para o palco, a encenação de textos não dramáticos, como as fábulas, autoriza a afirmativa de que o palco está aberto para variadas experiências sem que uma anule a outra. Ver as encenações realizadas pelos Clowns de Shakespeare é apreciar um resultado profícuo do teatro construído sobre a emancipação dos seus elementos, combinados de maneira que se imbriquem e se mantenham também visíveis em sua unicidade. Da mesma forma, percebe-se na cena os hibridismos, atestados de que o pensar-fazer teatro segue por veredas às vezes planas e às vezes tortas, mas sempre surpreendentes.

A vitalidade das montagens em pauta e de outras que estão sendo realizadas, tanto em Salvador quanto em outras praças, pode colocar em discussão questões relativas às hierarquias e seus rompimentos na cena. Por essa via, defende-se o princípio do não regulamento estético da cena, evitando a dicotomia entre os conceitos teatro dramático ou pós-dramático para atestar ou não a sua qualidade e atualidade de comunicação. Parece-me que essa oposição pretende considerar o teatro dramático tendencialmente conservador e o pós-dramático como o top de linha. Portanto, os espetáculos fora dessa tendência estariam condenados à obliqüidade do olhar.

É certo que o teatro mudou. E seus contornos ainda difusos não podem ser amarrados em camisas-de-força, visto que as antinomias ainda se fazem ver no terreno prescritivo que envolve as duas tendências, ainda que, historicamente, o teatro dramático apresente uma somatória de questões já absorvidas pela cena. Por outro lado, a historicidade não esgotou o potencial inventivo do teatro dramático, ainda que a cena a partir dos anos setenta tenha desconstruído o fabular, mas não a ação dramática, essência do teatro a alimentar de poesia o palco aberto e os espectadores ávidos de emoções estéticas ou de outra natureza. Não me refiro aqui ao “teatro de distração”, aquele preocupado apenas com o entretenimento.

A crise da dramaturgia, e não um mero acomodamento, prefigura novos experimentos e novos procedimentos cênicos revitalizadores da prática teatral, fato confirmado pelas diversas encenações postas em movimento no palco do Teatro Vila Velha. Os aspectos expressivos que reverberam nos dois espetáculos motivadores dessa reflexão, já que não nos foi possível ver a totalidade do programa ofertado, potencializam as soluções encontradas pela via processual que a pesquisa requer. Esse caminho revela-se na cena e faz com que os significantes tornem-se presentes, conformando caráter, ilusão e representação para além do mimético, quando entendido como cópia, rebaixamento da mímesis, o que não é o caso, visto que a minha compreensão de mímesis passa por outro filtro, o aristotélico e também o benjaminiano. Para os interessados, recomenda-se o texto de Jeanne Marie Gagnebin, Do Conceito de Mímesis no Pensamento de Adorno e Benjamin, em Sete Aulas Sobre Linguagem, Memória e História (Imago, 1997, p. 81-104)

Uma postura menos triunfalista com relação ao pós-dramático e menos finca-pé no teatro dramático nos salvará dos hermetismos que rondam a cena, constituindo-a de produtos que estão “mais para gato do que para lebre”. Não é o caso, em se tratando dos espetáculos comentados.

A proposta formal de a Fábula e de Muito Barulho Por Quase Nada se constitui de invenção alicerçada por elementos reconhecidos pelos espectadores, sem que esse reconhecer implique no fechamento das encenações em uma fórmula gasta pela intromissão dos esquemas midiáticos. A tendência pós-moderna de atrelamento da arte teatral aos ditames pasteurizados da cultura midiática não prevalece nas duas encenações. Não posso me arrogar o direito de falar pelos espectadores, mas observo que as reações no interior da sala atestam a receptividade da experiência, configurada pela cumplicidade partilhada. A presença do intérprete como detentor dessa mediação não rebaixa o compartilhamento, mas provoca uma relação extra-cotidiana: palco e platéia mesclam energia.

Tanto em Fábula quanto em Muito Barulho Por Quase Nada, o exercício dos intérpretes se dá em múltiplos registros; aglutinam-se estilos conforme pede a situação armada pelo autor e pelo encenador. Essa riqueza possibilita, por parte do atores, a exploração dos recursos corporais e vocais assentados sobre matrizes reconhecíveis e reelaborados no jogo cênico. César Ferrário, Marco França, Nara Kelly, Eduardo Galvão, Helena Cantidio, Renata Kaiser e Rogério Ferraz, que constituem o elenco da comédia shakespeareana, cumprem muito bem o que se propõem. A presença cênica desses intérpretes revela a “essência do clown (...) desde os elementos técnicos, de tempo e olhar, de relação com a platéia, até a forma ‘pessoal e intransferível’ de ver o mundo, sempre distorcida pela lente do lirismo”, conforme o texto do programa. As personagens elaboradas com desenvoltura e presentificadas na cena ganham força e articulam-se à poética do texto e à poética da encenação, como indica Anne Ubersfeld em Para Ler o Teatro (Perspectiva, 2005): “não mais como a cópia-substância de um ser”, mas como lugar, como mediação. A essência do clown liberta os atores da estereotipia e do efeito fácil que a especificidade pode acarretar.

A somatória de pontos positivos que as duas encenações apresentam provoca reflexões para além daquilo que os conceitos prescrevem, ainda que eles ajudem na decodificação do objeto estético. Nem por isso, a apreciação das encenações de Fábula e de Muito Barulho Por Quase Nada se deu munida de uma lupa para achar as digitais dos que se mantém aferrados ao teatro dramático, com a intenção de condená-los. Da mesma maneira, não se rastrearam as premissas do pós-dramático para se atestar as qualidades das encenações postas em movimento pela liberdade e experimentação necessárias para que o teatro se mantenha como expressão do seu tempo, “nos quais o espectador pode ensaiar como viver a experiência da instabilidade e da fragilidade da identidade de forma produtiva e prazerosa”, como indica Erika Fisher-Lichte em Transformações texto publicado na revista Urdimento (2007).

Acontecimentos como este Festival servem para estabelecer encontros. No caso do Latino Americano, possibilitou a confluência de encenações realizadas em Cuba, Equador, México, Peru, Recife, Porto Alegre, Salvador, São Paulo e Natal. O pensar-fazer teatro se alimenta desse intercâmbio, e a cultura daqui e de fora é vista como um veículo de informações transmitidas. Não apenas isso, eventos dessa natureza proporcionam a produção de informações realmente transformadora.

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O texto foi escrito quando da apresentação dos espetáculos. Fiquei aguardando sua publicação em um jornal local. Por motivos alheios à minha vontade, o texto não foi publicado ficando na gaveta - expressão mais antiga, não?! Resolvi publicá-lo em virtude da qualidade do grupo Clowns de Shakespeare e registrar sua passagem por Salvador.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Registro 225: Tempo de Natal


Não entendo o que acontece em Darfur. Não quero entender o que há em Darfur. Para entender Darfur, eu preciso fazer tantos jogos mentais e daí encontrar uma justificativa. Dê-me um motivo qualquer, para que eu possa entender Darfur. Basta um, pequeno, improvável, justo, racional, qualquer um que seja. Eu lhe peço pelo amor de Deus ou dos Deuses, caso queira.

Não existe nenhuma justificativa.

Se houver, damos assentimento ao bestial.

Mas não são bestas os que ali estão, seviciando, estuprando, matando semelhantes-diferentes.

São humanos.

????????????????

Como fazer poesia depois de Dafur?
Depois da Armênia, depois Auschwitz e do Gulag, China, Camboja, Ruanda, Bósnia, fizemos poesia e ela parece não tocar corações e mentes.

Eu não quero entender o que acontece no Sudão.

Mas eu preciso.

O resto é silêncio

E poesia.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Registro 224: Apanhado no jornal e outras coisas...

  • Essa é de autoria de Daniel Pizza. Ele escreve no Estado de S.Paulo, no Estadão de domingo. Sinopse intitula-se a sua coluna. Vale a pena dar uma olhada de vez em quando. No domingo, 21.12.2008, ele escreveu sobre os melhores do ano e no final da sua coluna disse: "Por que em vez de terem prendido Caroline Piveta da Mota, que pichou a mureta da tal "Bienal do Vazio", a polícia não age contra os pivetes que assaltam os cidadãos à luz do dia? Ou melhor, se for para punir o ataque ao patrimônio público, por que não prendem a diretoria da Fundação Bienal, que cometeu atentado a um evento que sempre se gabou de ser o terceiro maior das artes plásticas contemporâneas.
  • Sobre o teatro ele escreve: "Como aos concertos, pude ir a poucas peças neste ano; ao contrário deles, dei azar com elas. Entre outras, fui ver três textos importantes por respeitadas equipes: A Moratória, de Jorge Andrade, pelo grupo Tapa; Senhora dos Afogados, direção de Antunes Filho; e Hamlet, com Wagner Moura. Desigualdade de interpretações e equívocos nos conceitos foram as marcas.
  • Fui ver Ilhas coreografia do espanhol Victor Navarro para o Balé do Teatro Castro Alves, datada de 1981, agora dançada pelos alunos da Escola de Dança da Fundação Cultral do Estado da Bahia. Em 1980 trabalhei em Geni (Marilena Ansaldi e José Possi Neto), cuja coreografia era de Navarro. O coreógrafo que esteve junto ao Balé Cidade de São Paulo além de criativo é uma pessoa adorável. Pena não ter tido a oportunidade de falar com ele depois do belíssimo Ilhas. É que no programa constava Engenho, fruto da parceria do BTCA Residência, com o ICBA/Goethe Institut e o coreógrafo alemão Félix Ruckert. Não aguentei vinte minutos, da chatíssima coreografia, cujo problema não está na execução, mas na concepção. Fui embora e não matei a saudade. Ilhas, a coreografia, é precisa, envolvente, muito bem concebida e bem dançada. Para mim que não vi sua estréia, considero-a como um trabalho de agora. Não há firula, nem estranhos conceitos para sustentar o que se viu no amplo palco do Teatro Castro Alves, aliás muito bem usado. Navarro explora o espaço, ilumina os corpos sem grandes efeitos, mas compõe uma luminosidade onírica para que os dançarinos (?), bailarinos (?) exponha a elaborada construção de movimentos num fluxo crescente que faz a platéia pulsar e no final aplaudir de pé. De curta duração, a coreografia deixa saudades, vontade de vê-la mais vezes. Ilhas não devia compor o programa com Engenho, cansativa repetição de movimentos e correrias sem nenhuma engenhosidade. Quando da chegada de Félix Ruckert houve certa expectativa com relação ao que ele faria com o BTCA, tal a crise provocada pela Secretaria de Cultura, que tentou resolver problemas do passado, criando outros, num ato persecutório aos bailarinos afastados por gestões anteriores. O coreógrafo alemão estava disposto a trabalhar com bailarinos "fora de forma", mas não foi feliz. O problema é que certa corrente da dança, a que se diz pós-moderna, presumo, tem se afastado da dança moderna, renegando-a. Tal afastamento nos condena a ver experimentos que de dança não são nada. Sobre o palco o que se vê é uma amontoado de idéias, e muitos conceitos. Isso cansa.
  • A noite de Natal está chegando. Paz na Terra aos homens e mulheres de boa vontade. Esperemos...

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Registro 223: Em meio à correria de fim de ano

  • Por mais que tente me manter afastado da euforia festiva que toma conta de tudo e de todos no final do ano, termino levado por essa febril confusão, por esse compromisso em providenciar lembrancinhas, presentinhos, sorrisinhos e que tais. Chega. Não aguento mais. Quero ficar quieto no meu canto, ouvindo música: a da natureza e a criada pelos humanos, mas não seus alaridos.
  • Leio o jornal do dia e espanto-me com a notícia que de que a moça que pichou o prédio da Bienal, ainda que tenha sido suspensa sua prisão, continua presa. O pior de tudo é que o senhor Ivo Mesquita curador da 28. Bienal argumenta que a garota pichou um prédio tombado. Tornou-se então uma criminosa. Não quero fazer a defesa da pichação, mas considero hipócrita a sua posição. Assim também pensa o artista Roberto Aguilar. Ainda bem!
  • Se olharmos para as nossas cidades a cata de prédios tombados para ver como se encontram, perceberemos que nem todos merecem os cuidados que deveriam ter por parte do poder público, das instituições privadas e dos particulares insatisfeitos com o tombamento. Não quero radicalizar, exceções existem. Mas nesse imenso universo que é o patrimônio de pedra e cal, muita coisa sofre a ação nefasta de todos nós. Ação muito mais terrível do que a pichação de uma espaço vazio, uma proposta conceitual (haja conceito para dar conta!) no interior dessa coisa em crise que é a Bienal de São Paulo. Em crise por conta das administrações equivocadas e das curadorias que entram no jogo do mercado. O fato é que os donos das galerias ocuparam o centro das atenções mostrando seus artistas em espaços outros que não os do pavilhão. Além disso, no imenso território brasileiro existem muitos artistas produzindo fora do circuito oficial e fora do negócio de arte e não conseguem furar o cerco. Mas como chegar até eles se os curadores estão comprometidos com conceitos fechados e, pior ainda, submetidos ao jogo perverso do mercado de arte?
  • Mas voltando ao caso da jovem Caroline Piveta da Mota, me parece draconiana a punição, tendo em vista que criminosos de mão cheia estão por aí flanando e os que chegam a ser presos ficam menos de vinte e quatro horas no xilindró. Portanto, dois pesos, duas medidas. A Justiça é cega, mas somente na alegoria. Na vida real , ela pisca os olhos e sabemos para onde.
  • A pichação no interior do "vazio", proposta mais besta, deve ter sido apagada, restituindo-se a ordem e o progresso no interior da Bienal. Mas o fato é que o ato de Caroline provocou a ira daqueles que tentam nos impor um absurdo, deixando patente que o vazio não é da arte, mas das cabeças, que no momento, pensam sobre as artes visuais. Não exageremos, vozes discordantes e qualificadas apontaram a aberração que se viu. Um equívoco atrás do outro, desde o tobogã até o espaço vazio. Mas o evento chega ao fim e esperamos que a próxima edição da Bienal venha de fato provocar alguma coisa que não seja o evento midiático logo esquecido.
  • Inaugurou-se o Unibanco Glauber Rocha no lugar do ex-Cine Guarani, espaço mítico para os amantes do cinema. Ali, nas manhãs de sábado, sob o comando do crítico Walter da Silveira, assisti os filmes que ele exibia como parte da programação do Clube de Cinema da Bahia. Naquele tempo da delicadeza, enchia-se a sala para ouvir as palavras do crítico sobre o filme a ser exibido em seguida. Por fim, saíamos do escurinho do cinema preenchidos de imagens, impregnados de narrativas, enriquecidos de arte criativa. Enfrentávamos o sol do meio-dia na Praça Castro Alves, em meio aos que nela circulavam sempre bem apresentados, porque ir ao Centro da cidade requeria um certo jeito, um traquejo, um embelezamento. Isso não era prerrogativa de endinheirados. O povo, essa entidade que nos consome e nos dá rasteira quando queremos estudá-la, sabia da sua elegância e desfilava ladeira acima, ladeira abaixo, enchendo de vida uma praça charmosa que não é esse horror que vemos agora. As pessoas exibiam sua indumentária sem luxo nem riqueza, mas de uma dignidade que não se vê atualmente nas ruas de Salvador. Éramos muito mais educados, gentis, cordiais. Não pensem que as tensões e as insatisfações estavam suspensas e que alienados sorríamos como Polianas.
  • Espero que o Cine Glauber Rocha sirva de estímulo para outras iniciativas naquele sítio de topografia tão singular. E que elas sejam realmente de bom gosto, que criem harmonias e também contrastes, mas que não revelem estupidez e arrogância modernosa. Que a Praça viva! Que a estreiteza burocrática, imediatista não imponha sua vontade sobre nós. É preciso ouvir diversas vozes. O Teatro Gregório de Matos precisa de reforma e revitalização. O Centro Cultural da Barroquinha precisa funcionar sob o comando de alguém que saiba animar artística e culturalmente o pedaço.
  • Canções de Amor filme de Christopher Honoré é fina flor estranha que nos pega de surpresa, mas ganha quem está disposto a absorver não somente a história, mas a forma como ele escolheu para contá-la. História de perda e encontro, com uma sequência final muito bem construída. Construída com delicadeza. A frase final, "Ama-me pouco, mas por muito tempo", soa aos nossos ouvidos, pelo menos aos meus, de maneira aliciadora...

domingo, 7 de dezembro de 2008

Registro 222: Uma coisa leva a outra..

  • Dei de ouvir Beatles constantemente. Música para ouvir, pra dançar, pra sonhar com céu lantejoulado de diamantes e campos de morangos. Acredite; esses momentos prazerosamente curtidos não estão carregados de nostalgia paralizadora, embora plenos de passado rememorado são revitalizadores. Sinto-me recarregado para me transformar. "Metamorfose ambulante". Penso então no que diz Claudio Magris, autor de O Senhor Vai Entender, ainda não lido nem adquirido. Diz ele: "A memória olha pra frente; carrega consigo o passado, mas para salvá-lo, assim como são recolhidos os feridos e os mortos que ficaram para trás, pra levá-lo de volta à pátria, à casa natal que cada um, afirma Bloch, acredita em sua nostalgia ver na infância e que, entretanto, se encontra no futuro, em um futuro livre e liberto" (O ESTADO DE S. PAULO, 30 de novembro de 2008). Ecos benjaminianos.
  • Citei Magris na abertura do Primeiro Encontro Latino-Americano de Teatro - Trânsitos na Cena Latino-Americana Contemporânea organizado por Hector Briones e Cacilda Póvoas. Durante o evento (3 a 5 de dezembro) no Teatro Vila Velha um grupo de pesquisadores da Argentina, Brasil Chile, Costa Rica, Cuba, Equador, Peru e Venezuela ligados ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas - UFBA apresentaram comunicações a respeito do fazer teatral em seus respectivos países. Essas comunicações fazem parte da publicação lançada pela Edufba no encerramento do Encontro. Utilizei do tempo concedido para falar desse diálogo entre próximos-distantes e da importância de ouvirmos o Outro para alargar as fronteiras, não somente as teatrais, mas a de convívio e aprendizado. Magris me ajudou na referência que fiz à memória, visto que as falas estavam impregnadas de memória positiva, aquela que nos lança pra frente, ainda que estejamos tratando do passado, para muitos aterrador. Se pensarmos que o fazer teatral na América Latina esteve sob o jugo de governos ditatoriais (um aspecto recorrente em todos as comunicações) que nem sempre compreendem o significado da arte, mais especificamente da arte teatral, o valor positivo que salta das memórias é que elas não estão impregnadas da obsessão que leva ao ódio vingativo. Talvez pelo fato dos participantes serem jovens, não há traço de rancor quando relatam as lutas dos seus conterrâneos para manter a atividade teatral viva e atuante durante os regimes de exceção que aterrorizaram a região na vigência da Guerra Fria fator que resultou na quebra democrática e no endurecimento dos regimes.
  • A iniciativa do Encontro é salutar. Pôde-se tomar conhecimento de realidades semelhantes e diferentes sobre o teatro que se fez e faz além das fronteiras, limites que podem ser alargados no momento em que passamos a dividir experiências, procedimentos e encaminhamentos para a cena.
  • Recebi de Fanny Abramovich, juntamente com a revista Continuum editada pelo Itaú Cutural alguns cartões para a minha coleção e um marcador de livros; nele, uma frase de Oscar Wilde: "Não sou jovem suficiente para saber tudo". Fina ironia!
  • Veio também um guia com indicações de lançamento de livro, discos e DVD's. Cinco filmes de Ingmar Bergman acabam de ser lançados: Da Vida das Marionetes, O Rito, O Olho do Diabo, Depois do Ensaio e Uma Lição de Amor. Ah, dois de Sokúrov, cineasta russo, também estão na praça, Arca Russa e Pai e Filho. Vi o último; um filme estranho. Sokúrov descreve a relação entre pai e filho de uma maneira estranhamente bela, ambígua, desconcertante. Saí do cinema com uma sensação de não ter captado algo dessa história encenada vagarosamente, quase sempre em primeiro plano e closes de atores inquietantemente belos. Vale a pena conferir.
  • Danuza Leão em entrevista ao no Caderno 2 (A Tarde, 4.12.2008) deve ter mexido com os brios baianos. Lá pras tanta ela diz: "Agora tudo tem promoter na Bahia" e vai alfinetando a vida social/cultural da soterópolis. O gozado é que Danuza veio desse ramo, mas ela tem lá suas razões. Pasteurizaram tudo! E dá-lhe mesmice nos acontecimentos!
  • As festas de fim de ano se aproximam. Sempre gostei delas, principalmente quando criança e também na adolescência. Na minha família, o Natal era festa de porta aberta, sempre pra fora, receptiva. Meu pai, festeiro de marca maior, gostava de fazer festas natalinas para a cidade. Armava presépio grandioso no salão da principal escola da cidade (ou na rua) e aí recepcionava as crianças e idosos que recebiam brinquedos os primeiros e cobertores os segundos. Semanas antes, quantas vezes acompanhei meu pai percorrendo a periferia da cidade para distribuir uma senha, garantia do ingresso no recinto do presente. Depois que fazia esse evento, abria o salaão para quem quisesse apreciar o presépio que muitas vezes ajudei a montar.
  • Na infância, eu costumava visitar as casas em que tinham presépios, encantando-me sempre com as soluções de cada um. Fascinava-me ver a cenografia e a mistura inusitada de objetos e imagens contemporâneas que se juntavam àquelas tradicionais remissivas ao nascimento do Menino. Geralmente montados nos cantos da sala, ofereciam-se ao olhar do espectador como um palco italiano. Muitas vezes fui surpreendido com presépios montados no centro da sala, levando-me a uma visibilidade circular, como se o espetáculo fosse em arena. A geografia desses presépios, às vezes grandiosa, era construída com caixas, panelas, tábuas, tijolos e outros objetos cobertos de musgos catados na caatinga, musgos vermelhos, alaranjados e verdes que impregnavam o ar com um cheiro característico do campo do sertão. Os mais requintados, achavam seus proprietários, eram feitos com papel pintado de cinza imitando rochedos e gruta onde a cena do nascimento era recolhida. Alguns eram feitos de pedra salpicadas de tinta azul escuro, vinho e branca, resultando num efeito interessante e rompendo com a realidade dos objetos, mas sem escondê-los, num efeito mimético de recriação. Areia fina e de brancura imaculada marcava algumas regiões dessa paisagem, enfeitadas com conchas e búzios.
  • Na adolescência, eu e meus amigos, ficávamos na praça fazendo o footing até a hora da Missa do Galo, que geralmente não íamos. Reminiscências. Os Natais da minha infância não eram regidos por esse consumo desenfreado. Tanto eu quanto meus irmãos ganhávamos roupa nova, um presente muito simples... No jantar havia peru. Ah, havia sempre queijo do Reino na sua tradicional embalagem. Para nós, Natal sem queijo do Reino não era Natal. Não precisava nem de presente!

domingo, 30 de novembro de 2008

Registro 221: O que vai em mim e o que vai por aí

  • Ando meio preguiçoso. Ando trancado, ensimesmado, afastado. Cultivo as minhas idiossincrasias, tentando não afetar os outros; nem vontade de falar eu tenho. "Ando meio desligado e nem sinto os pés no chão", diz uma das letras dos Mutantes... Quando eu era jovem gostava de ouvi-los. Ainda gosto e muito.
  • Por que escrevo? Para não me entupir. Tenho ouvido Bach. Me acalma. Recebi a visita de um sobrinho-afilhado. Veio trazer o convite de casamento. Os jovens ainda casam com pompa e circunstância. Ao ouvir Bach, ele comentou: "A música é introspectiva", mas queria dizer que eu estava na fossa (esse termo é geracional), conclui. Qual o termo atual para fossa?
  • MUITO, aquele encarte do jornal A Tarde (não me peça opinião sobre ele), edição de hoje, traz uma reportagem sobre aquelas moças (Sarajane, Carla Visi, Márcia Short, Cátia Guimma e Márcia Freire) que fizeram sucesso em cima do Trio Elétrico e foram defenestradas para o país das ostras. Uma pena! São talentosas as moças...tanto quanto as congêneres que vieram depois ou ao mesmo tempo e estão aí megainvestidas A reportagem não diz tudo. Mas posso imaginar o buraco onde estavam e onde estão. Imagino que por culpa dos outros e delas também. No mesmo encarte, a diretora da fundação Cultural do Estado da Bahia, fala, fala e não diz nada... aproveitável. Do mesmo jeito o doutor Francisco Bosco... um amontado de frases feitas. Salva-se a indicação que ele fez ao pai, João Bosco: ler Dois Irmãos, de Milton Hatoum. Salva-se também No verão, melhor é ser aut+ista, de Aninha Franco. Garota esperta essa Aninha!
  • Recebi o telefonema de uma amiga-irmã que reside no balneário Rio de Janeiro, a cidade mais linda do Brasil. Ela pediu ajuda para resolver um dos trechos desses intermináveis formulários para patrocínio cultural - financiamento para teatro. Ela quer montar um texto e vem labutando com o MINC e agora vai labutar com uma dessas empresas de telefonia. O trecho referido era sobre a contrapartida social: "O que seu projeto vai fazer para democratizar a cultura?" Balela para aplacar a má consciência da dita empresa e agradar o governo populista que inventou essa história de contrapartida social.. Conversamos e ela me disse que vai precisar de uma cirurgia para retirar um tumor. Não fez drama nem estava apavorada.
  • A Cidade do Salvador continua suja e barulhenta na mesma proporção.
  • Berlin Alexanderplatz, o enorme filme de Reiner Werner Fassbinder foi lançado em DVD. Vale a pena ver no silêncio da sala de estar, sem a inconveniência de se irritar com o "educado" público que escolhe as sala de cinema para conversar, namorar, comer pipoca e balas, conferir e atender o celular. Ô luzinha irritante! O pior é quando você reclama, os ditos se sentem injustiçados, agredidos, numa flagrante inversão de valores!
  • Ler tem sido o maior prazer. E como! Prazer solitário mesmo. Daí me pergunto: essa história de que a narrativa e o livro estão fadados a morrer faz parte de uma campanha orquestrada para gerar interesse por outras mídias e suas formas de expressão? Interessa a quem discutir e difundir tal idiotice? Desviar grana, só pode ser. Nada substitui o prazer da escolha do livro, de abrir sua páginas, sentir no tato o papel, deixar o cheiro penetrar as narinas e os olhos se encantar com a capa, a diagramação e depois disso mergulhar no imenso oceano das palavras. Esse contato é de uma sensualidade indescritível porque muito particular. Depois de alguns anos imerso nos livros teóricos, em virtude das obrigações acadêmicas, retomo ao febril e estoteante gosto pela ficção. Leio um livro a cada semana. Registro os que li na seguinte ordem: Um Sonho a Mais, de Doris Lessing; Pastoral Americana, de Philip Roth; As Brasas, de Sándor Márai; Diário de Escola, de Daniel Pennac; , de Josef Roth (deixou-me enchacardo de lágrimas. Ah, vi Milágrimas, o belo espetáculo de Ivaldo Bertazo na TV SESC. O pessoal que faz dança-conceitual contemporânea devia olhar com olhos de querer ver para aprender ou reaprender a dançar). Agora começo a leitura de Menino de Lugar Nenhum, de David Mitchell, depois de ler a biografia de Ruth Rachou, escrita por Bernadette Figueiredo e Izaías Almada, despertando-me doces e engraçadas lembranças. Recomendo todos. Mas faça a sua escolha guiado (a) por outras opiniões. Reafirmo o prazer da leitura e não vou teorizar sobre isso. Prazer que eu aprendi com tia Edna, professora da escola primária em Baixa Grande e Feira de Santana. Ela perdia-se na leitura e ganhava o dia! Deixo-me de herança esse gosto pela leitura. Quando leio, não vejo a hora passar. Quando me envolvo nas teias de um autor, deixo-me agarrar...
  • Por falar em livro, a Edufba + Eduneb reeditaram de Silio Boccanera Júnior O teatro na Bahia da Colônia à República (1800-1923). Certa feita, tive acesso ao livro na sua primeira edição. Por necessidade, não resisti, fiz uma cópia. Agora tenho a segunda edição (2008).
  • Cleise Mendes, foi minha orientadora no mestrado e doutorado, lançou A Gargalhada de Ulisses, a catarse na comédia , livro derivado de sua instigante tese.
  • O livro que escrevo vai saindo lentamente. Ainda sem título, seus personagens assaltam as minhas horas dedicadas a outras atividades. Ocupo-me deles sem pressa. Tenho outros livros na fila, esperando a resposta das editoras. Espera angustiante.
  • Os alunos do curso de Artes Cênicas da Faculdade Social fizeram trabalhos interessantes no Seminário Interdisciplinar e na Mostra Didática das disciplinas Encenação e Interpretação III. É lamentável que o curso esteja acabando, mas temos três semestres pela frente e muito trabalho e cena e solos e performances. Dionísio é mais!
  • Para aguentar domingo só mesmo escrevendo. Êta dia chato! Principalmente pós-meio-dia.
  • No Estadão de hoje, mais precisamente no caderno Cultura, José Marcos Coelho escreve Sons de uma América Desconhecida e nos informa sobre Elliot Carter, compositor americano que aos 90 anos continua compondo. Reconhecido somente nos "círculos da vanguarda - sobretudo européia", ele é um ilustre desconhecido em sua terra natal. Lá para as tantas, Coelho pergunta: "Será que o critério fundamental para se aferir a qualidade da música de um compositor contemporâneo é avaliar em que medida o público a compreende e aceita? Isso seria nivelar por baixo, com certeza". Diante do que tenho visto por aí, fico tentado e reconhecer que a norma é essa, meu caro Coelho. Mas a minha parca abertura mental diz que NÃO. Se assim fosse Arte e Artistas (com maiúscula, propositadamente) estariam perdidos para sempre. E não estão! Em meio a arte errada (vide http://www.cadernosgrampeados.zip.net) cultivada por um grupinho que se acha o supra-sumo da vanguarda e as aberrações avalizadas pelo grande público massificado, pérolas são cultivadas.
  • Por falar em publicão, durante uma sessão do espetáculo Hamlet (Shakespeare, Aderbal Freire Filho) no Teatro FAAP-São Paulo, uma espectadora sentada na primeira fila levantou um cartaz com a seguinte frase: "Eu sou sua piscininha. Jogue-se aqui". Os dizeres, fora de hora e de lugar, foram dirigidos ao ator Wagner Moura, que, pasmem, parou para ler o cartaz, perdendo a concentração e rompendo com o ritmo da encenação. Em que lugar fomos parar?
  • Pérolas aos porcos!
  • A polêmica Tom Zé x Caetano Veloso, cansa! É certo que Tom Zé foi limado no auge do Tropicalismo ou depois. O que aconteceu de fato nunca veio a público. Graças ao seu talento e a Arto Lindsey, Tom Zé ocupa o lugar que merece. Agora faz sucesso, mas acho que o rancor amarga ainda a sua alma. Pra quem cuidou de rosas no jardim do condomínio onde residiu, o sentimento que guarda, ainda, não lhe cai bem. Mas tudo gera dinheirinho na caixinha de dona baratinha e a polêmica serve pra isso. Um pouco de bossa devia guiar os passos dos dois, que se mostraram muitas vezes elegantes!
  • Por que escrevo? Para estender pontes entre meu coração e o coração de quem se dispõe a ler o que escrevo
  • Chega! Por hoje é só. Como dizia Sílvio Lamenha: Poesia é axial!

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Registro 220: O Diário de Judith Malina

  • Em meio à pesquisa para elaboração da tese Transas na Cena em Transe: teatro e contracultura na Bahia (PPGAC - UFBA, 2007), deparei-me com a publicação, pelo Jornal da Bahia (1971), do diário escrito por Judith Malina quando presa no DOPS, Belo Horizonte, no período em que o Living Theatre veio ao Brasil a convite de Zé Celso e Renato Borghi. Originalmente, o texto foi publicado pelo jornal Diário de Minas.
  • O longo diário foi reproduzindo em seis números do Jornal da Bahia e estão arquivados na Biblioteca Central numa situação deplorável, visto que tem sido manuseado de qualquer jeito. Além disso, não recebem a atenção dos responsáveis pela guarda de tais documentos, embora os funcionário tentem manter o acervo. Mas o que falta na verdade é o investimento do poder público com vistas a preservá-lo. Papel velho não dá voto nem status. Parece interessar somente a essa gente obsessiva, os pesquisadores.
  • Por conta das condições dos jornais e temendo a perda do material, xerocopiei página por página e em seguida digitei o texto de Malina na forma como o encontrei. Isso acarretou lacunas, mas preservo o documento que me custou horas de trabalho. Sou péssimo digitador. Ah, eu devia ter feito um curso de datilografia, não é prof. George Mascarenhas?!
  • Através do Guia da Folha (31.10.2008) soube da publicação do Diário de Judith Malina pela Secretaria de Cultura de Minas Gerais - Arquivo Público Mineiro. Corri atrás da edição. Agora, conto com a totalidade do texto e espero usá-lo. Afora o Diário, documento inestimável para que se possa entender a passagem do Living por Ouro Preto, lugar onde residiu o grupo depois da impossibilidade de trabalhar com o Grupo Oficina, toma-se conhecimento de mais um dado da repressão efetivada pelos orgãos de segurança sob a égide do governo Médici. No período, a perseguição, a tortura e morte atingiu os militantes de esquerda, os dissidentes e as hostes contraculturais, todos empenhados em questionar e protestar, a seu modo, contra a supressão da liberdade e o regime ditatorial.
  • A bela edição mostra o empenho da comissão editorial e da Secretaria de Cultura em reunir o material, agregando outras informações sobre o Living Theatre. Fartamente ilustrado, impresso em papel Couchê, o livro oferta-se ao leitor como um objeto muito bem concebido graficamente. Consta de seu sumário, o Diário, os artigos Coisas que ficaram muito tempo por dizer, de Heloísa Staling, A reinvenção do teatro, de Adyr Assumpção, Sobre o Living no Brasil de Ilion Troya e uma cronologia das produções do Living Theatre do mesmo autor.
  • Recomendo o livro, uma pena que o mesmo não é comercializado, o que priva o acesso a ele.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

REGISTRO 219: Receita

21 DICAS PARA QUEM QUER SER UM ARTISTA (DE TEATRO)CONTEMPORÂNEO

As dicas não são de minha autoria. Recebi de Celso Júnior, diretor, ator, professor de teatro. O humor corrosivo das dicas não compromete a lucidez de cada uma. Ao contrário, aumenta-lhes a eficácia, principalmente nos tempos que correm. Divirta-se... e pense.

1. Monte uma cena toda em preto e branco, utilizando apenas alguns detalhes destoantes. (Outra dica pra não errar: acessórios vermelhos)

2. Termine o espetáculo assim como ele começou, pra passar uma idéia de ciclo.

3. Apoie sua montagem num jogo, de preferência num tabuleiro de xadrez, onde cada atorrepresente uma peça. Claro, conclua com xeque-mate.

4. Nomeie seu espetáculo de 'Processo' e não o termine NUNCA!

5. Nomeie seu espetáculo de 'Performance', mesmo não sabendo o que isso é direito.

6. Utilize uma mesa que se transforme em tudo; ora cama, ora porta, ora parede... e mesamesmo.

7. Nada de figurinos pesados: todo mundo de cinza e descalço.

8. Monte um clássico e faça a readaptação no nordeste ou na favela.

9. No cenário, o chão deve ser de barro, areia, mato ou café. Algo simbólico e que suje bastante.

10. Excite os 5 sentidos do público (ou 6, se conseguir), embora isso se resuma a acender um incenso, jogar água na platéia, servir vinho, encostar numa parede e mandar tomá-los no cu.

11. Misture dança, teatro, música e artes plásticas e não faça nenhum dos quatro direito.

12. Coloque algum aparelho elétrico ligado. De preferência uma cafeteira.

13. Diga que todo o seu processo com os atores se baseou em view point.

14. Convide alguém famoso pra dizer que indica a peça no programa, mesmo sem ele nunca ter assistido.

15. Monte em arena e delimite o espaço público-platéia com giz. Ah, se quiser sofisticar, filme e exiba as reações do público ao vivo num telão.

16. Ensaie seus atores com yoga, karatê, ginástica olímpica, box, capoeira e meditação. Menos com teatro.

17. Crie maneiras de interagir com o público. Entregue fones de ouvido tocando um lounge bem blasê e/ou alguém texto de auto-ajuda, enquanto os atores fazem partituras de movimento.

18. Crie a sua própria trilogia.

19. Coloque algum ator fazendo um depoimento pessoal no microfone.

20. Pra ser contemporâneo, tem que ter secreção. Peça para o ator suar bastante ou cuspir em cena.

21. Por fim, limite o número de espectadores, de preferência 3, e lote todos os dias.

É infalível!

domingo, 16 de novembro de 2008

Registro 218: Uma foto fetiche, uma estréia auspiciosa

O presente texto foi motivado por dois fatos; ter recebido de minha grande amiga, a atriz Cleide Queirós, a foto que ilustra esse registro e a estréia de Álbum de Família, de Nelson Rodrigues, espetáculo de conclusão de curso dos alunos de Artes Cênicas da Faculdade Social, turma que ingressou em 2004. Álbum de Família, com direção do professor e dramaturgo Paulo Henrique Alcântara estreou no Teatro Vila Velha e cumpre temporada até 18 de novembro.

Os acontecimentos fizeram-me recordar a passagem pelo Teatro Popular do SESI, quando fiz Oromar, um dos personagens de A Falecida. A presença de Nelson Rodrigues na platéia deixou o elenco expectante. No final do ensaio geral ele subiu ao palco para falar com todos nós e posar para a foto. Guardo-a como um fetiche. Na estréia, o autor compareceu acompanhado por sua esposa e irmãs. Uma família rodriguena.

Quando cheguei a São Paulo no começo da década de 70, o Teatro Popular do SESI – TPS, uma realização do saudoso diretor Osmar Rodrigues Cruz, mantinha-se em atividade desde 1962, quando as atividades teatrais realizadas pelo órgão patronal foram oficializadas sob o nome de Teatro Popular do SESI. Seu idealizador tomou para si a empreitada de juntar às suas idéias sobre teatro popular as de Jean Vilar e Romain Roland.

O TPS, até a inauguração de sua sala de espetáculo no prédio da FIESP (1977), alugava os bons teatros da cidade, mantendo em cartaz um repertório eclético de peças consagradas da dramaturgia universal e textos nacionais de qualidade. Textos e que não fossem de encontro ao pensamento da instituição patrocinadora. O TPS não cobrava ingresso e um dos seus objetivos era oferecer bons espetáculos para os trabalhadores da indústria, ampliando o seu público ao longo de sua existência e tornando-se uma referência para São Paulo. Sempre que uma peça estava em cartaz, filas enormes se formavam na porta do Teatro do SESI para trocar a filipeta distribuída ao longo da semana pelo ingresso do dia.

Os elencos do TPS tinham emprego garantido por muito tempo, já que as peças ficavam em cartaz durante anos. Na maioria das vezes, os atores eram aproveitados nos espetáculos seguintes, mantendo-se o contrato e a carteira assinada, fato que garantia os direitos trabalhistas e os reajustes salariais conforme as diretrizes do SESI.

Assim que passei a fazer parte da classe teatral paulistana, percebi que os espetáculos do TPS eram considerados “teatrão”, portanto conformados a uma estética “careta”. Os atores que contratados eram (des)qualificados de “funcionários de teatro”, gente conformada, sem grandes vôos artísticos. Essa atitude preconceituosa disseminada entre setores da classe teatral revelava a atitude preconceituosa de quem olha para o próprio umbigo, como se dele surgisse a única referência estética de qualidade. Muitas vezes ouvi críticas debochadas sobre aqueles que trabalhavam nas produções do TPS. Eu mesmo fui contaminado por essa atitude; deixei-me levar pelas idéias daqueles que não aceitavam a proposta estética de Osmar Rodrigues Cruz, até que fui indicado por Flávio Império para o elenco de A Falecida, de Nelson Rodrigues, encenação estreada em 1979. Confesso que a princípio me senti desconfortável, já que ia fazer parte dos “funcionários de teatro”.

Embora soubesse que aquela estrutura não preenchia a minha inquietação de artista, logo percebi que teria boas condições de trabalho e que podia aprender com um profissional que sabia muito bem o que queria dos seus atores. Osmar Rodrigues Cruz mostrou-se sempre conhecedor do palco e fazia o ator render, indicando-lhe tempos, ritmos e efeitos necessários para a cena. Além disso, eu podia contar com a genialidade de Flávio Império, artista que realizou para o TPS os mais belos e inteligentes cenários dos últimos anos de uma deslumbrante carreira. Portanto, busquei o que me interessava enquanto artista, além de saber que ganharia um bom salário, obtendo também assistência médica.

No mais, pela primeira vez participei de uma produção que estreava com tudo pronto. Nos quinze ensaios antes da estréia, o espetáculo estava no palco, com a iluminação, cenários e figurinos. Não faltava nada e o elenco sentia-se seguro para explorar as possibilidades dos elementos cênicos. Até aquela data, depois de onze anos de carreira, eu não passara por essa experiência. Em sua maioria, as produções não davam conta de todos os elementos do espetáculo, o que tornava o ensaio geral um sobressalto e a estréia um momento para além da tensão esperada.

Vi bons espetáculos dirigidos por Osmar Rodrigues Cruz: Caiu o Ministério, de França Júnior (1973), Leonor de Mendonça, de Gonçalves Dias (1974), O Poeta da Vila e Seus Amores, de Plínio Marcos (1977), Chiquinha Gonzaga, Ó Abre Alas, de Maria Adelaide Amaral (1983), O Rei do Riso, de Luiz Alberto de Abreu (1985), O Santo Milagroso, de Lauro César Muniz, Muito Barulho por Nada, de Shakespeare (1986). Esses espetáculos eram cercados de apuro técnico, acabamento e qualidade artística, comunicando-se com seu público e contribuindo para a formação de platéias. As montagens com elenco numeroso, contava sempre com nomes consagrados, intérpretes conhecidos que se encarregavam dos principais papéis e atores talentosos nos segundos e terceiros papéis.

Saí do Teatro Popular do SESI para fazer Geni (1980), um projeto de Marilena Ansaldi e José Possi Neto, mesmo sabendo que ator que saísse dos espetáculos do TPS antes do final do contrato dificilmente voltaria a trabalhar na instituição, visto que essa era a norma vigente. A inquietação e a promessa de um trabalho mais arrojado motivaram a minha decisão.

Para minha surpresa, em 1982, fui chamado por Osmar Rodrigues Cruz para fazer parte do elenco de Coitado de Isidoro, peça na qual faria o protagonista. Ao ler o texto – depois de ter a carteira de trabalho assinada – caí do cavalo. A comédia era muito ruim, um texto sem nenhum valor dramatúrgico, destinado ao núcleo do Teatro Popular do SESI em Santo André e para excursionar pelo interior. Acredito que o próprio Osmar sabia que o texto era ruim. E até hoje não sei quais os motivos que o levaram a encenar tal coisa. Mas a situação, embora incômoda para mim, foi se tornando mais favorável, já que aprendi com Osmar Rodrigues Cruz a fazer comédia, um gênero que eu recusava representar. Desde meu aprendizado na Escola de Teatro da Ufba, eu não me sentia capaz de fazer ri a mais benevolente platéia. O pavor do ridículo foi diminuindo à medida que Osmar dirigia a mim e aos meus companheiros de elenco. Mesmo assim, por várias vezes durante a temporada, fui acometido de pavor antes de entrar em cena. Mas acontecia algo mágico: o espetáculo era bem recebido pelo público que ria de tudo que os atores faziam em cena. E a bobagem, Coitado do Isidoro, funcionava às mil maravilhas e eu dava conta do recado, livre dos meus receios e solto em cena. Agradeço a Osmar Rodigues Cruz e a Fancisco Medeiros, seu assistente naquele período, a possibilidade de descobrir uma qualidade que eu não imagina ter como intérprete.

Para conhecer o trabalho de Osmar Rodrigues Cruz, dono de uma portentosa biblioteca, cujos livros sobre teatro enchiam a maior parte das estantes, eu recomendo a leitura de Osmar Rodrigues Cruz, Uma Vida no Teatro (Hucitec, 2001), de sua autoria juntamente com Eugênia Rodrigues Cruz, sua filha. Sobre a encenação de A Falecida, ver o livro de Sábato Magaldi, Nelson Rodrigues, Dramaturgia e Encenações (Perspectiva, 1992).

Álbum de Família, a encenação de Paulo Henrique Alcântara, emoldurada operisticamente, revela um elenco de jovens atores que encerram um período do seu aprendizado para iniciar outro, o da vida profissional. Muito bem dirigidos pelo professor-diretor, o rendimento geral do elenco é notável, com destaque para alguns intérpretes, aqueles que conseguem se destacar sem que se perca o equilíbrio necessário para apreensão do todo. Creio que esse destaque deve-se ao fato desses alunos-atores compreenderem melhor o personagem, entregando–se aos esteios da concepção cênica e, sobretudo, por escutarem de forma sensível as sugestões do encenador e de Juliana Rangel encarregada da preparação vocal e corporal do elenco.

Contracenando com Vivianne Laerte, atriz convidada, os formandos do curso de Artes Cênicas da Faculdade Social– Alexandre Moreira, Andressa Manso, Iriane Santana, Isabella Gusmão, Mariana Brandão, Newton Olivieri, Pedro Augusto, Vagner Marques, Vanessa Meyer e Viviane Veiga – puderam aproveitar a experiência de uma atriz profissional, e isso se reflete em cena. Cena densa, superlativa, qualidade que o texto de Nelson Rodrigues explora ao limite da saturação e que Paulo Henrique Alcântara não ameniza, mas exacerba. A potência do texto de Nelson Rodrigues é escancarada pelo encenador sem nenhum pudor. O elenco, dentro de suas possibilidades, sustenta com segurança o clima pesado, fazendo a platéia reagir de maneira positiva. Não estivesse o elenco ciente da proposta de Paulo Henrique Alcântara o resultado poderia ser desastroso. O que não é. Recebe-se aquele mundo extremamente doente sem rejeição ao espetáculo. O riso aparece no momento certo, provocado pelas famosas frases do autor.

A opção do encenador deixa o espetáculo em um único tom, do início ao fim, quebrando-se a atmosfera grandiloqüente somente na cena de Glória e Teresa, quando o sopro do lirismo rebaixa o diapasão constante do espetáculo. Esse rebaixamento não quebra o ritmo, não afrouxa a tensão e inunda a cena de outra luminosidade. A encenação ganharia outras modulações se Paulo Henrique Alcântara dosasse a intensidade, sem deixar de seguir a sua opção pela impostação operística, um enquadramento coerente com o universo da peça, classificada por Sábato Magaldi como um das Peças Míticas. As outras são: Anjo Negro, Dorotéia e Senhora dos Afogados. Parece-me que o encenador se deixou levar pelas obsessões do autor, exacerbando um conteúdo já em si desmesuradamente arrebatado. Essa substância exposta de maneira tão chapada levou Sérgio Milliet (1) à seguinte conclusão: "Tão límpida é a casuística psicológica que, por vezes, sua literatura descamba para a ilustração psicanalítica e deixa de nos empolgar como obra-de-arte em si, que a arte não explica mas sugere, não resolve nem analisa problemas (o que cabe à ciência), mas aponta a sua inexorável existência".

O espetáculo mostra-se empostado como um ritual com tintas expressionistas, coerente também com a concepção que amarra o espetáculo. O cenário de Rodrigo Frota, muito bem concebido e adequado, os figurinos de Rino Carvalho, a trilha sonora de Luciano Bahia e principalmente as interpretações, definem a qualidade do espetáculo e são apreendidos pelo espectador como parte integrantes de um todo muito bem elaborado. Os elementos cenográficos, portas-altares, lembram também gavetas de cemitério, e baús, são signos fortes dimensionando o conteúdo do texto, embora a utilização dos baús seja tímida. O uso do espaço da sala do Teatro Vila Velha é bem realizado, expandindo-se a cena para além do palco italiano, lugar onde se concentra maior parte da ação. A luz, concebida com precisão por Fernanda Paquelet, colabora para a atmosfera trágica que a cena requer. Quanto aos figurinos, algumas objeções, visto que a idéia é boa, mas a realização fica a dever. Os figurinos dos personagens, Senhorinha (imensa calda do vestido), Guilherme (jaquetão com uma cruz nas costas), Glória (quando volta do internato) e Jonas, receberam um tratamento que se revela um equívoco. Isso não acontece com os demais, posto que foram concebidos e bem realizados, mostrando-se teatralmente fortes e ajudando os atores na composição de seus personagens e na movimentação em cena. Destaque para as roupas de Tia Rute, Heloísa, Teresa.

Os aspectos pontuados como negativos não desmerecem de nenhum modo a encenação. Produção cuidadosa, ofereceu condições para que o encenador realizasse no palco as imagens que concebeu a partir da leitura que fez do texto de Nelson Rodrigues. Paulo Alcântara soube construir uma forte e bela encenação, com momentos intensos e inesquecíveis. Os execessos não comprometem a organicidade da cena. Sem negar o autor escolhido, o encenador não fica subserviente ao texto. Revela sua paixão pelo autor, mas não se coloca timidamente diante do monumento que é o "Anjo Pornográfico". Ao mexer na estrutura da peça, ele ressalta pontos e com isso ganha fôlego. Encenação corajosa, desmesurada, não demonstra tibieza. Penso que os alunos-atores e Viviane Laerte saem enriquecidos dessa experiência. Não é sempre que intérpretes têm condições de fazer os personagens de uma peça como os de Álbum de Família, um aprendizado para qualquer ator/atriz. Infelizmente, ainda não chegamos ao ponto de poder encenar, profissionalmente, textos do calibre de Álbum de Família, mantendo-os em cena com a regularidade necessária para uma apreciação mais profunda do legado dos nossos dramaturgos e de sua adequação ao gosto das platéias. Platéias que podem fazer escolhas e não apenas aceitar o corriqueiro, o descartável, aquilo que não exija muito do seu tempo, de sua sensibilidade, do seu raciocínio. Uma temporada teatral não se faz apenas por um tipo de espetáculo, mas se sustenta e se afirma pela diversidade que não deve ser fruto da imposição mercadológica nem pela imposição do dirigismo cultural de minorias que se querem salvacionistas. A montagem de espetáculos de qualidade artística, cuja densidade dramática é ressaltada pela inventividade da encenação, termina por educar o público,torná-lo mais sensível e aberto para a densidade proporcionada por experiências que se afastam da mesmice.

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1 MILLIET, Sérgio. Álbum de Família. In: Magaldi, Sábato (org.) Nelson Rodrigues: teatro completo. Rio de Janeiro: Nova Auilar, 2003, p. 207-208.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Registro 217: Aqueles Dois

AQUELES DOIS
ÚLTIMO ESPETÁCULO QUE VI NO
FESTIVAL DE ARTES CÊNICAS DA BAHIA


Aqueles Dois, a encenação do conto de Caio Fernando de Abreu e aqueles quatro atores interagindo de forma precisa permanecem presentes no decorrer da semana, ativando a minha memória. Inesquecível exercício de teatro, longe da mesmice, longe dos modismos herméticos que só uma panelinha de iniciados compreende. Teatro para muitos ou pelo menos para quem tem o hábito e o gosto de ir ver teatro.

O sensível conto de Caio Fernando gerou o filme de mesmo nome, dirigido pelo gaúcho Sérgio Armon, lançado em 1985, uma realização não muito feliz. Faltava poesia. Agora chega ao palco numa produção da Cia. Luna Lunera de Belo Horizonte. Espetáculo engenhoso, mostra-se muito bem acabado e sua “mecânica” é uma atrativo para o espectador. Quatro atores em cena vivendo os dois personagens Saul e Raul, que por acaso se conhecem numa repartição pública ou numa firma, tanto faz. A despeito do ambiente mesquinho e sombrio do lugar onde ganham o pão, os dois se afinam numa relação que vai se construindo delicadamente, humanamente. E assim, adentramos na vida dos dois. A princípio, poucos gestos, monossílabos e frases curtas se transformam em diálogos e confidências, sedimentando esse encontro e a amizade entre opostos. Um extrovertido, Raul. O outro, Saul, amargo e crítico. A afeição cresce entre eles, e os dois passam a ser alvo da maledicência, da inveja e do preconceito dos colegas de trabalho.

Essa relação é mostrada de maneira precisa. O palco, um quadrado forrado com linóleo ocre. Em volta dessa área vários objetos, incluindo uma vitrola, um microfone com amplificador, são utilizados pelos atores durante a ação. Essa série de objetos identifica, não realisticamente, os ambientes por onde passam os personagens: apartamento de um, quarto de pensão do outro e sala de trabalho dos dois. O objeto de maior presença são gavetas. Elas se transforma em pastas, cadeiras, bancadas; completa a cena, máquinas de escrever, luminárias, xícaras e garrafa térmica para café, discos, papéis e lápis cera. Esses objetos definem o mundo dos dois personagens. Na dinâmica da encenação os atores dialogam entre si e identificamos Raul e Saul pelas cores das roupas. Duas duplas estão de azul e preto, duas de marrom e branco, ternos de trabalho gastos e amarfanhados.

A encenação joga com a multiplicidade e tira partido dos meios tons sem banalizar o ato teatral em si. O elaboradíssimo jogo de marcações executado com precisão pelos intérpretes é absorvido pela platéia, atenta ao desenrolar da história e também à inteligente e criativa forma com que a encenação foi elaborada. Essa interação entre conteúdo e forma acarreta alguns problemas, como por exemplo, a narração repetindo o que ação já revelou. Mas os senões não afetam a qualidade do trabalho. As soluções criativas surpreendem. O espaço em arena é bem explorado. Os intérpretes dão conta dos personagens. Alguns pequenos ajustes no tempo do espetáculo, talvez alguns cortes possam potencializá-lo.

A encenação de Aqueles Dois não descamba para o piegas, nem para intensidade dramática. O grupo acertou ao optar pelo intimismo e sutileza, elementos contidos no conto de Caio Fernando de Abreu. E tal qual a canção Tu Me Acostumbraste, vamos interagindo com a atmosfera, mergulhando a cada instante na proposta e ficamos cativos aos meios-tons que nem a cena do nu rompe. Penso que a cena na forma como se organiza não cria resistência por parte de uma platéia não acostumada com a nudez masculina em cena. Também não há gratuidade, já que a cena faz sentido e é um dado importante para compreensão da psicologia dos dois homens, Saul e Raul.

Desejamos que Cia. Luna Lunera continue sua pesquisa, escavando camadas da tradição teatral para extrair espetáculos estimulantes e revigorantes, cuja invenção se mostra intensamente comunicativa e elaborada.

sábado, 1 de novembro de 2008

Registro 216: A cena aberta, impressões sobre "Hysteria"

Hysteria, criação coletiva do Grupo XIX de Teatro (São Paulo) e Aqueles Dois, adaptação do conto homônimo de Caio Fernando de Abreu, pela Cia. Luna Lunera (Belo Horizonte) foram os dois últimos espetáculos do FIAC que escolhi para ver. Depois do fiasco que foi Good Exist, vindo da distante e simpática Noruega, ver os espetáculos paulista e mineiro foi reconfortante. Aliviado, recebi a experiência estética proposta pelos dois grupos, absorvendo-as sem resitência. Mas não afirmo que os dois espetáculos sejam fáceis de digerir e que não apresentem problemas na estrutura. Entretanto, as duas experiências exigem da nossa inteligência e da nossa sensibildade. Tanto uma como a outra, embora tragam a marca da pesquisa, criam empatia, visto que os elementos constitutivos da encenação podem ser apreendidos pelo espectador medianamente acostumado com ato teatral. No primeiro momento, tanto uma como a outra aguçam a curiosidade, que no desenrolar da ação vai sendo satisfeita. E não precisamos de manuais ou exercícios mentais elaboradíssimos para captar o que a cena propõe e revela.

Hysteria é fruto de um intenso trabalho de busca e se debruça sobre histórias de mulheres confinadas em instituições de tratamento psiquiátrico – Hospício Dom Pedro II, Rio de Janeiro, por volta de 1850. Tidas como doentes por seus pais ou maridos, as mulheres foram retiradas do convívio familiar para se tornarem reclusas em um mundo de dor, mundo controlado sempre por homens, os doutores. Estes, imbuídos do cientificismo positivista que domina o século XIX e boa parte do XX, diagnosticam e aplicam o tratamento contra o que determinam ser uma patologia. Na leitura dos doutos, qualquer comportamento desviante das mulheres é tipificado como caso clínico de histeria. Esclareço que os dotoures não estão em cena, eles são apenas mecionados na pessoa de Dr. Mendes.

Essas mulheres que estiveram mudas por muitos anos agora falam. E o lugar da fala é em Hysteria; aí, elas narram sobre suas alegrias, desejos, sonhos, medos, amores, desesperos, filhos, casamento, sexo e sobre tudo que diz respeito ao humano, particularmente o feminino. Juntam-se a elas as mulheres do século XXI. Elas adentram a sala onde se representará Hysteria não mais como espectadoras, mas como atuantes.

Cabe aos homens o incômodo papel de assistentes/espectadores. Eles, sentados separados das mulheres, formam um grupo compacto, enquanto elas num grande círculo interagem com as cinco atrizes que se esmeram em dar vida aos personagens conduzindo a ação com firmeza. De forma segura, elas agem e conduzem a ação; algumas vezes de maneira autoritária outras de cativante e envolvente afeto. Assim, o grupo que foi ao teatro para assistir termina por fazer parte integrante da ação dramática. Ecos grotowskianos.

Em Salvador, o evento se deu no espaço do Instituto Feminino, hoje um museu, mas outrora tradicional instituição educacional, marcadamente católica e de rígidos princípios morais e educativos. A escolha não podia ser mais acertada. O espaço, com sua carga histórica e simbólica, abriga as vidas confinadas de Nini, Clara, M.J. , Hercília e Maria Tourinho as personagens vividas pelas atrizes Janaína Leite, Evelin Klein, Juliana Sanches, Sara Antunes e Maria Helleno, sob a direção de Luiz Fernando Marques.

A encenação despojada, usa como cenografia o espaço do Instituto e a luz que entra pelos janelões da sala. A luminosidade natural marca a passagem do tempo: o real e o imaginário. Entre um e outro sutis diferenças. Não há refletores, não há cenografia construída. O que há é apropriação do espaço. Os figurinos sem o rigor da reconstituição histórica remetem ao passado, ao desgastado. Tecidos amarelados pelo tempo, tons pálidos, rendas e filós dão a medida da permanência das vidas trancafiadas. São metáforas da delicadeza ultrajada.

À medida que o espetáculo acontecia fui me sentindo constrangido por estar ali como um intruso, um fora-do-lugar. Ao mesmo tempo deixei-me levar pela emoção. A cada instante submergir emocionalmente. Confesso: derramei lágrimas. Tal carga emotiva não suspendeu o juízo crítico. Ele agiu em dois sentidos: primeiramente pensei na condição feminina numa sociedade ainda machista e esse pensamento me levou para as lembranças particulares; repassei a vida das minhas avós, das minhas tias, da minha mãe... de minhas irmãs. Depois, não consegui deixar de pensar no ato teatral, sua concepção, sua construção, sua execução. Mas essa apreciação não se processava friamente distanciada. As imagens, as idéias e, sobretudo as sensações aconteciam sincronicamente ao meu estado psicofísico. Fui agarrado por esse acontecimento teatral tão próximo da vida, como queriam os artistas, que respaldados nos esperimentos das vanguardas históricas defenderam um teatro participativo, de comunhão e integração verdadeiras com a platéia, ali por volta dos anos 60 e 70, quando as idéias da contracultura animaram o teatro, o te-ato.

Pode-se discutir a imposição das atrizes sobre as mulheres sentadas no círculo. Mas penso que nenhuma delas foi obrigada a entrar no jogo. Mas se assim fosse, não era essa a regra institucional higienista vigente na casa de tratamento? Essa e outras questões perpassam o espetáculo. A interatividade proposta pelo grupo pode provocar rejeição por parte da platéia feminina, mas cada qual entre no jogo se quiser. Penso que as portas não estavam aferrolhadas, cabendo a cada uma o direito da recusa.

Ao sair do Instituto Feminino depois de ver as personagens envolvidas nas sombras do fim do dia e perdidas pelos corredores e salas entoando uma cantiga melancólica fiquei com a certeza de que o fenômeno teatral, essa arte sempre ameaçada de morte, está vivo. Ele nos proporciona experiências enriquecedoras, mesmo quando negamos a sua força, por discordamos esteticamente, ideologicamente ou por não encontramos elo entre o que se vê no espaço cênico e o nosso universo cognoscível. No livro-programa, extenso material sobre o espetáculo, Flavio Desgranges, professor de Teatro da ECA/USP, escreve o texto A Posição de Espectador em Hysteria, dando-nos pistas para analisarmos esse ato que se constrói entre emissor e receptor e conclui com algumas perguntas. Uma delas: “Como pensar uma arte teatral efetiva em nossos dias?” O Grupo XIX de Teatro responde com seu trabalho, outros agrupamentos responderão de muitas outras formas. Com isso, alargamos as nossas ferramentas para compreender o fenômeno teatral e separar alhos de bugalhos.

Oportunamente comento Aqueles Dois.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Registro 215: Impressões sobre ENSAIO. HAMLET




“Pra que serve a Arte? Para nos dar a breve mas fulgurante ilusão da camélia, abrindo no tempo uma brecha emocional que parece irredutível à lógica animal. Como nasce a Arte? Nasce da capacidade que tem o espírito de esculpir o campo sensorial. Que faz a Arte por nós? Ela dá forma e torna visíveis nossas emoções, e, ao fazê-lo, apõe o selo de eternidade presente em todas as obras que, por uma forma particular, sabem encarnar a universalidade dos afetos humanos”.

A citação é do livro A Elegância do Ouriço, de Muriel Barbery (2008). Leio e me delicio com os personagens e situações. A fala é de uma zeladora de um prédio, residência de ricos em Paris. Na opinião de uma adolescente – outro personagem fascinante – decidida a cometer suicídio, a zeladora é o ouriço. Mas o que a citação tem com o Ensaio. Hamlet, montagem da Cia. Dos Atores, grupo carioca que apresentou sua criação no palco do Teatro Castro Alves na noite de 27 de outubro? Para mim, tem tudo a ver. A encenação “dá forma e torna visíveis nossas emoções”. Ela nos dá a certeza do sentido de beleza, potencializando-o.

No palco do TCA, concentrou-se em arena a platéia distribuída em três arquibancadas desconfortáveis e a área da representação. Por vezes, o incômodo do assento interferia no meu estado apreciativo, intrometendo-se de maneira traiçoeira. Mas nem isso me afastou da “breve mas fulgurante ilusão da camélia, abrindo no tempo uma brecha emocional que parece irredutível à lógica animal”.

É redundante falar em ritual quando se trata de teatro. A representação teatral desde suas raízes até o presente é sempre um ritual. Mas na encenação de Ensaio. Hamlet, o ritual é reforçado e não banalizado; a cerimônia não é convenção, mas elemento textual significativo. Desde a entrada do público instaura-se o clima solene, mas não enfatuado; a platéia vai sendo contaminada por essa atmosfera que se adensa até que as luzes diminuem e as velas iluminam o espaço. Os atores que estão em cena desde a entrada dos espectadores dão continuidade ao ato litúrgico-profano; vestido sobriamente de preto, o elenco prepara a primeira cena introduzindo-nos na trama do texto.

Percebe-se desde o início um mundo fragmentado, universo em desmoronamento. Essa percepção intensifica-se com o avançar da ação. Um mundo em destroços, confirmação da podridão existente no reino da Dinamarca. O espetáculo é concebido como um ensaio. Nele, o texto shakespeareano é desconstruído sem que se perca a sua essência, sua dimensão, poesia, invento, sua monstruosa monumentalidade. Embora fatiada, a tragédia está inteira. Desmonta-se a máquina desse mundo e ele se sustenta, inquietando-nos. A cena desdobra-se em metáforas e os conceitos desaparecem para dar lugar a obra em si, sua leitura versátil

Toda a encenação é pautada na desconstrução-construção.

A cada cena nos embebedamos de beleza. Cada imagem cheia de significados amplia os conflitos, clarifica os subtextos. Os personagens-monumentos criados pelo dramaturgo revelam-se no corpo de Bel Garcia, César Augusto, Emílio de Mello, Felipe Rocha. Marcelo Olinto e Susana Ribeiro. Esse elenco, parceiro do encenador Henrique Diaz, proporciona uma leitura particular e inventiva da tragédia do príncipe dinamarquês. Por eles, penetramos na consciência desse ser lucidamente louco, o atormentado que se rebela contra o estabelecido e morre proferindo: O resto é silêncio.

Os achados cênicos são surpreendentes e mesmo aqueles difíceis de serem decodificados não criam empecilho para o ato fruidor. Absorvemos cada instante do espetáculo. A encenação cai implacavelmente sobre a platéia e ela se vê presa na armadilha das idéias transformadas em imagens precisas, como na sequência da loucura e morte de Ofélia.

Como fugir a tanta beleza? Como fugir dos riscos enfrentados pela Cia dos Atores? Rendemos-nos ao fascínio da invenção, da versatilidade, da coragem de enfrentar a experiência através de procedimentos cênicos inusitados, como o de fazer a cena do duelo final se transformar numa conversar entre os personagens. A imagem de Hamlet envelhecido e fumando é inesquecível; faz lembrar o que diz Harold Bloom (2000): “Quando o vimos pela primeira vez, Hamlet é um estudante universitário que se vê impedido de retomar seus estudos. Não aparenta ter mais do que vinte anos; porém no quinto ato, constatamos que ele tem, no mínimo, a idade de trinta anos (...). Foi a consciência que o envelheceu, a consciência catastrófica da mazela espiritual que assola o mundo (...).

A cena final rivaliza em beleza com a cena da morte de Ofélia. Nela, a atriz ergue um garrafão azul derramando sobre sua cabeça a água contida no recipiente. O barulho do líquido e a reação da atriz proporcionam a sensação do afogamento. Afogamo-nos com a infeliz Ofélia. Outro momento exemplar: na cena do encontro (devolução dos presentes), quando Polônio e o Rei Cláudio escutam o diálogo entre Hamlet e Ofélia. Através de um gravador que transmite em tempo real a voz dos atores, os dois bisbilhotam numa tentativa de controlar o incontrolável. Nesses tempos de grampos e escutas furtivas, a cena além de terrível e engraçada, outro elemento presente na encenação. Diaz não exclui o cômico presente nas tragédias de Shakespeare, mas traz o risível para momentos tradicionalmente tidos como “sérios”.

No livro A Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca (1999), Vigotski fala do círculo do tempo, aquela hora “em que a manhã já chegou mas ainda é noite”, vendo nesse momento algo “misterioso e incompreensível”. Para Vigotski, é “a hora mais aflitiva e mística; é a hora em que o tempo desmorona, em que se rasga o seu inseguro manto; é a hora em que se desvela o abismo da noite sobre o qual ascende o mundo diurno; a hora da noite e do dia. Essa é a hora que a alma experimenta ao ler ou assistir à tragédia de Hamlet, o príncipe da Dinamarca. É nessa hora que está submersa a alma do espectador ou do leitor, pois é aí que a própria tragédia tem sua significação e faz-se semelhante a ela: ambas têm uma única alma."

Ensaio. Hamlet, com sua borbulhante criatividade, coloca-nos diante do teatro, teatro de qualidade.

Senti comichões de estar no palco novamente.

O resto é silêncio.

Não comentarei God Exists, The Mother Is Present, But They No Longer Care. A minha irritação pode ferir suscetibilidades. E elegância é fudamental, embora não tenha sido elegante ao sair no meio do espetáculo.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Registro 214: Impressões sobre espetáculos - FIAC Bahia


Desde 24 de outubro realiza-se em Salvador o Festival Internacional de Artes Cênicas – FIAC. A iniciativa é das melhores. E se pensarmos no Festival Latino Americano de Teatro da Bahia levado a efeito em setembro, não temos do que nos queixar. O público interessado e a classe teatral foi e está sendo brindada com inúmeros espetáculos. Uma diversidade cênica enriquecedora. A programação do Festival Latino Americano incluía espetáculos nacionais e de países do continente. Agora, com o FIAC, a pauta se amplia, com a vinda de encenações da França, Noruega, Congo, Portugal, Argentina, Brasil – Rio de Janeiro, Ceará, Minas Gerais, Paraná, Brasília, São Paulo, Santa Catarina, Bahia.

Haja tempo para organizar horários, conciliar atividades. Além disso, há que se ter disposição para correr de um lado para o outro. Mas pra quem gosta de teatro tudo isso se torna irrelevante, principalmente quando o vento que vem da cena nos toca e nos anima.

Não vou falar de todos os espetáculos. As escolhas foram determinadas por critérios de ordem prática, por interesse estético ou simples curiosidade. Deixei de ver Sizwe Banzi Está Morto, texto dos sul-africanos Athol Fugard, John Kani e Wiston Ntshona direção de Peter Brook. De Athol Fugard conhecia Laços de Sangue e Mestre Haroldo. O fato de não ter ido ver uma encenação de Peter Brook é inexplicável, mas não tive vontade.

Corri pra assistir O Cantil, uma adaptação do texto A Exceção e a Regra de Bertolt Brecht realizada pelo Teatro Máquina do Ceará. Direção, dramaturgia e produção de Fran Teixeira. Concisão, poesia e domínio da linguagem cênica marcam o espetáculo cearense. Quatro atores em cena. Dois como bonecos, o Patrão e o Empregado; dois como manipuladores desses homens-bonecos. Perfeição! Por certo exagero meu. A perfeição indica um ponto morto, já que dele não sai mais nada. Não é o que se vê na cena de O Cantil. O domínio técnico está a serviço de uma idéia teatral muito bem resolvida. Certamente, Brecht não cansaria de aplaudir, porque a sua história sobre explorador e explorado explicita-se em cena de tal forma que nem a falta da palavra é sentida, embora no fim do espetáculo eu tenha manifestado a vontade de ouvi-la. Mas depois de refletir sobre o espetáculo, cheguei à certeza de que a palavra transformada em ação bastava. Compreendia-se todo o entrecho da peça adaptada e a relação entre os personagens sem a intromissão do verbo.

No palco aberto e preto, destacam-se os dois personagens vestidos de branco e os dois manipuladores. Dos manipuladores vemos o rosto. Estes são ajudados por dois contra-regras que entram esporadicamente para compor o jogo de cena, retirando alguns objetos ou fazendo aparecer as duas barracas para cena de acampamento. Um carro conduzido pelo Empregado leva sacos também brancos e cestos de vime. A luz é precisa e recorta os personagens em sua viagem. As cenas noturnas são marcadas por um belo e simples céu estrelado. Estabelecida a moldura mergulha-se nessa viagem cujo final já presumimos.

Com esse espetáculo o Teatro Máquina coloca em cena os dados de sua pesquisa artística e revela que a magia do teatro não se dá por truques ilusionistas, visto que constrói a sua cena utilizando-se de conceitos do teatro brechtiano, relendo-os de maneira muito particular, sem a submissão que muitas vezes ocorre quando a leitura das teses do dramaturgo alemão é feita ao pé da letra e de maneira mecânica.

O segundo espetáculo apreciado veio de Portugal, sob a responsabilidade da Companhia do Chapatô. Com a Sala do Coro lotada e barulhenta até começar a função, prenúncio de que o espetáculo prometia descontração e muitas gargalhadas, assistimos O Grande Criador, criação coletiva dirigida por John Mowat. O espetáculo, uma brincadeira com passagens do Antigo e do Novo Testamento, humaniza os personagens da história sagrada e retira das situações uma comicidade direta e comunicativa, fato que agarra a platéia desde os primeiros minutos. Não há novidade na proposta. O gênero aproxima-se muito do brasileiro Teatro Besteirol, difundido a partir da cena carioca e paulistana desde a década de 80.

Durante a encenação, cujo ponto forte é a interpretação de Jorge Cruz, José Carlos Garcia e Rui Rebelo, lembrei-me de Folias Bíblicas espetáculo do grupo paulista Pod Minoga, dirigido por Naum Alves de Souza, em 1977. Na montagem com forte acento lúdico, encenava-se as passagens da Bíblia como números de um espetáculo realizado por um grêmio de bairro.

O grupo português concentra no jogo dos atores e na qualidade de suas interpretações o foco do espetáculo. Aí está o atrativo e sua força, demonstrada ao longo de 80 minutos e impagáveis cenas, como a do dilúvio ou a cena em que Cristo joga futebol com uma vassoura, entre outras.

Para mim, o que fica do espetáculo é isso: três atores utilizando-se de seus recursos corporais e vocais de forma extremada, interagindo com a platéia de maneira segura e hábil. Pergunto-me: não teria o teatro português outro trabalho para ser escolhido pelos organizadores do FIAC? Quero ver mais da cena portuguesa.

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domingo, 12 de outubro de 2008

Registro 213: De Mário Quintana


A vida são deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas.
Quando se vê, já é sexta feira.
Quando se vê, já terminou o ano.
Quando se vê, já se passaram 50 anos!
E agora é tarde demais para ser aprovado.
Se me fosse dada, um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando, pelo caminho, a casca dourada e inútil das horas.
Dessa forma eu digo: não deixe de fazer algo que gosta devido a falta de tempo, a única falta que terá, será desse tempo que infelizmente não voltará mais.
Mário Quintana

Registro 212: Para Nilda Spencer

Nilda Spencer

PAREM OS RELÓGIOS, MAS NÃO CESSEM OS APLAUSOS


Raimundo Matos de Leão


No Jardim da Saudade (10.10.2008), em meio à relva, árvores e canto de pássaros, os amigos artistas e não artistas levaram Nilda Spencer para outra morada. Quem sou eu para dizer que essa é a sua última morada? A nossa vã razão diz que sim, mas os mistérios são insondáveis. E do mistério se fez a arte que Nilda Spencer praticou durante cinqüenta e dois anos, a arte do intérprete. Como atriz, deixou nos palcos, nas telas do cinema e da televisão a marca do seu ofício, iniciado de maneira sistematizada quando da criação da Escola de Teatro, mas exercido antes em apresentações amadoras. Também foi pianista, atividade que sucumbiu aos encantos da arte teatral.

A primeira vez que vi a atriz em cena foi no inesquecível espetáculo Essa Noite se Improvisa, de Pirandello, sob a direção envolvente de Alberto D´Aversa, italiano de boa cepa, aportado no Brasil via Escola de Arte Dramática de São Paulo e Teatro Brasileiro de Comédia – TBC. Findava o ano de 1967 e a montagem encerrava o ano letivo da Escola de Teatro. Em cena, alunos e professores desvendavam para o público o meta-teatro pirandeliano. Nilda Spencer não era o destaque do elenco, primazia que cabia a Sônia dos Humildes, Dulce Schwabacher, João Gama, professores e ao aluno Harildo Déda, visto que seus personagens proporcionavam-lhes memoráveis interpretações. Ainda sim, Nilda Spencer obtinha seu quinhão em meio ao numeroso elenco. Com a dignidade de quem sabia que não há pequenos papéis no teatro, desempenhava uma das filhas da família retratada pelo dramaturgo italiano. Nilda no papel de Totina apresentava-se com empenho e dedicação.



Ela já fora protagonista feminina em Calígula de Albert Camus – direção de Martim Gonçalves – e em A Falecida, de Nelson Rodrigues, encenada por Carlos Murtinho. Destacara-se em Major Bárbara de Bernard Shaw, sob a direção de Luiz Carlos Maciel, entre outras realizações.


Esse sistema de rodízio de papéis importantes entre os alunos da Escola de Teatro foi uma prática instituída por Martim Gonçalves e fazia parte do seu projeto artístico-pedagógico. Mesmo que algumas injustiças tenham sido cometidas nas escolhas dos elencos das peças do repertório de A Barca, companhia criada no interior da Escola de Teatro da então Universidade da Bahia, os programas atestam tal prática. Foi no interior desse sistema que Nilda Spencer e seus colegas da primeira turma de formandos, em 1959, aprenderam e vivenciaram as diversas funções inerentes ao espetáculo. Os alunos, como ela, estiveram no palco e nas coxias revezando-se nas funções de intérprete, contra-regra, recepcionista, assistente de direção, entre outras. Foram protagonistas e coadjuvantes.


Ao ingressar na Escola de Teatro em 1968 estive próximo da professora e atriz, sempre elegante, calçando sempre sapatos de saltos altíssimos, uma compensação para sua baixa estatura. Tal artifício que a vaidade feminina não dispensava, era posto em segundo plano, visto que a esfuziante vitalidade de Nilda Spencer aumentava-lhe o porte. Anos mais tarde, ao reecontrá-la no camarim da Sala do Coro – TCA, onde fazia a protagonista de Ensina-me a Viver, ao abraçá-la vi o quanto era pequena e frágil, fruto da idade. A exuberância da mulher madura transmutara-se em graça e calma de quem sabe ter aproveitado a vida. Ao abraçá-la, não imaginávamos que se despedia do palco fazendo Maude, comemorando quarenta e cinco anos de carreira.


Estive uma única vez em cena com Nilda Spencer; foi na montagem de A Companhia das Índias, texto de Nelson Araújo, com direção de Orlando Sena. A atriz interpretava Rosélio Villarotas um ex-ministro de Eldorado, republiqueta sul-americana saída da imaginação do dramaturgo. Nilda Spencer compunha com muita habilidade o personagem; sem fazer dele uma caricatura do masculino, aproveitava-se dos recursos farsescos que a montagem de Sena possibilitava em sua moldura tropicalista, ganhando a cena de maneira hilariante. Ostentando grosso bigode, ela incorporava ao seu corpo o gestual masculinizado sabendo lidar com os estereótipos para criticar a macheza latino-americana e definir a personalidade de Vilarotas. Impagável!



Quando da escolha do elenco para a encenação de A Casa de Bernarda Alba, Possi Neto convidou Nilda Spencer para interpretar Maria Josefa. Ela não aceitou e o papel coube a Carmem Bittencourt, que retornou como atriz ao palco da Escola de Teatro depois tê-lo deixado com a turma que se desligou da instituição para criar a Sociedade Teatro dos Novos. Por esse motivo, não tive o prazer, como assistente de direção, de acompanhar o processo de criação da atriz. Presenciei o de Carmem Bittencourt, claridade em cena. E penso: com teria Nilda Spencer criado a louca-lúcida mãe de Bernada? Ele realizaria um belo feito, tenho certeza.


Mais tarde, estando em São Paulo, e excursionando pelo Brasil (1981) com a peça Escuta, Zé Ninguém, criação memorável de Marilena Ansaldi e Celso Nunes, fui abraçado por Nilda Spencer no camarim do Teatro Castro Alves. Não esqueço esse abraço. Era o abraço de quem se reconhecia em mim, pois sabia que contribuira para a minha formação como ator, que passara um tanto do seu saber e me vira engatinhar no palco. Senti o caloroso e generoso abraço e agradeci, afetuosamente, tudo aquilo que aprendera com ela.


Que a nossa memória dê conta dessa vida no palco e que não esqueçamos a forma com que Nilda Spencer desdobrou-se em tantas máscaras para revelar o seu ser de atriz, de mulher. Ela agora “dança no sétimo céu”, rindo maliciosamente da nossa transitoriedade.