quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Regsitro 284: O Canto de La Negra

Embora tenha ouvido e muito Mercedes Sosa, da qual tenho um único e deslumbrante disco, Mujeres Argentinas, ouvido pela primeira vez em casa de amigos, lá pelos idos de 70 em São Paulo, não me entusiasmava muito por sua performance. Hoje, depois de sua morte, ouvindo e muito o tal disco, agora CD, antes um bolachão preto de vinil, descubro onde se localizava a minha implicância com suas canções de protesto. Na verdade, o que me irritava não era a cantora e o canto, mas o culto praticado por uma esquerda hipócrita, mas fundamentalista no discurso, que colocava no altar os dogmas entoando as canções de La Negra.
Para essa gente beata, Mercedes Sosa era o máximo, acima do bem e do mal. Não se podia discordar. Devia-se gostar e aplaudir seu canto, ainda que cantasse coisas chatas de se ouvir. Criticá-la era quase um ato reacionário, ofensivo. E embotados, íamos ver os shows, aceitando o que se passava no palco sem questioná-lo. Era assim também com outros artistas, os da MPB. Aconteceia o mesmo com os espetáculos teatrais engajados. Bastava um discurso inflamado avalizava-se a cena como sendo de qualidade...
Repentinamente, tudo se fez claro e só posso dizer que Mercedes Sosa embalou meus dias cantando Gracias a la vida também gravada também por Elis Regina em Falso Brilhante disco derivado do show de mesmo nome. como não conheço a versão da canção por Isabel Parra, que faz arrepiar Luiz Carlos Merten - ver seu blog -, fico com as duas versões das finadas. tanto uma como a outra conseguem tocar fundo as cordas ainda sensíveis de uma coração não tão brejeiro.
Quem ouviu Alfonsina y el mar (Ariel Ramirez e Felix Luna - autores) , faixa número 5 do CD Mujeres Argentinas não esquecerá da voz imensa que ecoou pela América Latina no momento em que o continente era arrasado pelas ditaduras de direita. Espero que esse fantasma desapareça do nosso destino e fique como registro na história e na memória . E espero que o continente não se inflame com as promessas e ensaios de ditaduras de esquerda, cuja versão mais próxima é ânsia bolivarina-populista de se espalhar, como se fosse a solução para as nossa mazelas.
No horizonte descortinado pela voz poderosa da cantora, dando voz aos anseios de liberdade e contribuindo para a construção de uma identidade latino americana, penso que estão inscritos nos seus cantos a afirmação dos direitos do homem acima de qualquer ideologia. Pois que a ideologia, na forma como grande parte da direita e da esquerda pensa, vem carregada de tintas fundamentalistas, tal qual a ação dos religiosos na pós-modernidade. De certos religiosos, para não colocar no mesmo saco aqueles que não fazem da religião uma prisão nem da ideologia um álibi para justificar os meios.
Mercedes Sosa, dizíamos, era a cantora da geração "poncho e conga", canta oito mulheres - Griga Chaquena, Juana Azuardy, Rosarita Vera, Dorotea Bazan, Alfonsina Storni, Manuela Pedraz, Guadalupe Cuenca e Mariquita Sánchez de Thompson - e seu canto emociona porque a voz expressa sentimentos que não se perdem com o tempo nem com a mudança dos ventos. É como ouvir ainda Nara Leão cantando Opinião. Ao escrever esse registro e relembrar o show Falso Brilhante bateu saudades de Miriam Muniz, grande atriz e diretora que virou Elis Regina do avesso e fez surgir uma outra personalidade artística.
A lembrança de uma mulher puxa a lembrança de outras que brilham agora nas minhas recordações, nas fotos, nos vídeos, nos discos e nos livros que registraram a passagem de cada uma sobre a terra. Elas que nos deram tanto, continuam a doar a cada momento que retornamos ao legado deixado de herança.
Aplausos para Mercedes Sosa!