quinta-feira, 31 de maio de 2007

Registro 92: A viagem pode ser...

ÍTACA

Konstantinos Kaváfis

Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrarás
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem Ciclopes
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não o levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.

Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas do fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.

Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhates no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.

KAVÁFIS, Konstantinos. Poemas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1982, pp.118-119.
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A viagem pode ser uma longa faina destinada a desenvolver o eu. As inquietações, descobertas e frustrações podem agilizar as potencialidades daquele caminho, busca ou fuga. Ao longo da travessia, não somente encontra-se, mas reencontra-se, já que se descobre mesmo e diferente, idêntico, transfigurado. Pode até revelar-se irreconhecível para si próprio, o que pode ser uma manifestação extrema de desenvolvimento do eu. Um eu que se move, podendo reiterar-se e modificar-se, até mesmo desenvolvendo sua autoconsciência; ou aprimorando a sua astúcia. “A viagem errante de Tróia a Ítaca é o caminho percorrido através dos mitos por um eu fisicamente muito fraco em face das forças da natureza e que só vem a se formar na consciência de si... As aventuras de que Ulisses sai vitorioso são todas elas perigosas seduções que desviam o eu da trajetória de sua lógica. Ele cede sempre a cada nova sedução, experimenta-a como um aprendiz incorrigível e até mesmo, às vezes, impelido por uma tola curiosidade, assim como um ator experimenta insaciavelmente os seus papéis. Mas onde há perigo, cresce também o que salva: o saber em que consiste sua identidade e que lhe possibilita sobreviver tira sua substância da experiência de tudo aquilo que é múltiplo, que desvia, que dissolve, e o sobrevivente sábio é ao mesmo tempo aquele que se expõe mais audaciosamente... O recurso do eu para sair vencedor das aventuras: perder-se para se conservar, é a astúcia. O navegador Ulisses logra as divindades da natureza, como depois o viajante civilizado logrará os selvagens oferecendo-lhes contas de vidro coloridas em troca de marfim.” (15)

O caminhante devaneia sobre a estrada e a travessia, o que se vê e o que não vê, o que aprende e o que imagina que sabe, a aparência e a essência, o ser e o devir. Pode descobrir que na parte ressoa o todo, que o singular carrega o halo do universal. Esse o percurso em que se perde e encontra, forma e transforma. E pode até mesmo reencontrar-se, transfigurado em outro de si mesmo.


15 Theodor W. adorno e Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento (Fragmentos filosóficos), trad. De Guido de Antonio de Almeida, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1985, pp. 55-57. Citação do excurso I: “Ulisses ou mito e esclarecimento” .
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IANNI, Octavio. A metáfora da viagem. In: Enigmas da modernidade-mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 200, pp. 26-27