quinta-feira, 30 de junho de 2011

Registro: 358: Um texto que cai bem


                                    Passeatas diferentes
 
                                                         Contardo Calligaris


        Por que alguém desfila para pedir não liberdade para si mesmo, mas repressão para os outros? Domingo passado, em São Paulo, foi o dia da Parada Gay.Alguns criticam o caráter carnavalesco e caricatural do evento. Alexandre Vidal Porto, em artigo na Folha do próprio domingo, escreveu que, na luta pela aceitação pública, "é mais estratégico exibir a semelhança" do que as diferenças, pois a conduta e a aparência "ultrajantes" podem ter "efeito negativo" sobre o processo político que leva à igualdade dos homossexuais. Conclusão: "O papel da Parada é mostrar que os homossexuais são seres humanos comuns, que têm direito a proteção e respeito, como qualquer outro cidadão".
Entendo e discordo. Para ter proteção e respeito, nenhum cidadão deveria ser forçado a mostrar conformidade aos ideais estéticos, sexuais e religiosos dominantes. Se você precisa parecer "comum" para que seus direitos sejam respeitados, é que você está sendo discriminado: você não será estigmatizado, mas só à condição que você camufle sua diferença.
Importa, portanto, proteger os direitos dos que não são e não topam ser "comuns", aqueles cujos comportamentos "caricaturais" testam os limites da aceitação social.
Nos últimos anos, mundo afora, as Paradas Gays ganharam a adesão de milhões de heterossexuais porque elas são o protótipo da manifestação libertária: pessoas desfilando por sua própria liberdade, sem concessões estratégicas. É essa visão que atrai, suponho, as famílias que adotam a Parada Gay como programa de domingo. A "complicação" de ter que explicar às crianças a razão de homens se esfregarem meio pelados ou de mulheres se beijarem na boca é largamente compensada pela lição cívica: com o direito deles à diferença, o que está sendo reafirmado é o direito à diferença de cada um de nós.
O mesmo vale para a Marcha para Jesus, que foi na última quinta (23), também em São Paulo. Para muitos que desfilaram, imagino que a passeata por Jesus tenha sido um momento de afirmação positiva de seus valores e de seu estilo de vida -ou seja, um desfile para dizer a vontade de amar e seguir Cristo, inclusive de maneira caricatural, se assim alguém quiser.
Ora, segundo alguns líderes evangélicos, os manifestantes de quinta-feira não saíram à rua para celebrar sua própria liberdade, mas para criticar as recentes decisões pelas quais o STF reconheceu a união estável de casais homossexuais e autorizou as marchas pela liberação da maconha. Ou seja, segundo os líderes, a marcha não foi por Jesus, mas contra homossexuais e libertários.
Pois é, existem três categorias de manifestações: 1) as mais generosas, que pedem liberdade para todos e sobretudo para os que, mesmo distantes e diferentes de nós, estão sendo oprimidos; 2) aquelas em que as pessoas pedem liberdade para si mesmas; 3) aquelas em que as pessoas pedem repressão para os outros.
O que faz que alguém desfile pelas ruas para pedir não liberdade para si mesmo, mas repressão para os outros?
O entendimento trivial desse comportamento é o seguinte: em regra, para combater um desejo meu e para não admitir que ele é meu, eu passo a reprimi-lo nos outros.
Seria simplório concluir que os que pedem repressão da homossexualidade sejam todos homossexuais enrustidos. A regra indica sobretudo a existência desta dinâmica geral: quanto menos eu me autorizo a desejar, tanto mais fico a fim de reprimir o desejo dos outros. Explico.
Digamos que eu seja namorado, corintiano, filho, pai, paulista, marxista e cristão; cada uma dessas identidades pode enriquecer minha vida, abrindo portas e janelas novas para o mundo, permitindo e autorizando sonhos e atos impensáveis sem ela. Mas é igualmente possível, embora menos alegre, abraçar qualquer identidade não pelo que ela permite, mas por tudo o que ela impede.
Exemplo: sou marido para melhor amar a mulher que escolhi ou sou marido para me impedir de olhar para outras? Não é apenas uma opção retórica: quem vai pelo segundo caminho se define e se realiza na repressão - de seu próprio desejo e, por consequência, do desejo dos outros. Para se forçar a ser monogâmico, ele pedirá apedrejamento para os adúlteros: reprimirá os outros, para ele mesmo se reprimir.
No contexto social certo, ele será soldado de um dos vários exércitos de pequenos funcionários da repressão, que, para entristecer sua própria vida, precisam entristecer a nossa. 

Originalmente publicado em Folha de S. Paulo, 30 de junho de 2011.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Registro 357: Uma bela frase



Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.

Guimarães Rosa

sábado, 4 de junho de 2011

Registro 356: OCUPAÇÕES FLÁVIO IMPÉRIO



ENCONTRO COM FLÁVIO IMPÉRIO

Raimundo Matos de Leão[1]

A vida se encarrega de proporcionar encontros, uma variedade deles. E os encontros são como fios com os quais tecemos a nossa passagem pelo Mundo. Algumas pessoas seguem em frente, outras saem de cena e outras permanecem, não sabemos até quando. Muitas são esquecidas propositadamente e o esquecimento é resultado de razões variadíssimas. Um presente singelo, recebido recentemente, desencadeou um fluxo de lembranças. Assim, escrevo sobre um encontro, ou melhor, sobre uma pessoa que certo dia entrou em minha vida marcando-a de maneira indelével. Refiro-me ao arquiteto, professor, desenhista, gráfico, pintor, cenógrafo e figurinista Flávio Império (1935-1985).
Ao retornar do trabalho, encontro num saco plástico, dos que deveríamos abolir, uma pequena bandeja com salgadinhos (saborosos) e duas canecas de alumínio polido. O kit (salgadinhos e canecas) nomeado de Bangladesh  pelo presenteador, o encenador Celso Nunes, continha um convite para a abertura de Ocupação Flávio Império, a instalação inaugurada no Itaú Cultural – São Paulo. O evento coordenado por Vera Império Hamburguer, sobrinha do multiartista, tem espaço concebido pelo cenógrafo Helio Eichbauer e inclui a instalação Ocupação Flávio Império além de oficinas de serigrafia e exibição de filmes, permanecendo em atividade até 17 de julho na sede do Itaú Cultural, Avenida Paulista, 149. Para aqueles que não podem ir ao evento como eu, preso por compromissos profissionais, recomendo acessar http://itaucultural.org.br . O site dispõe de informações necessárias para se ter uma ideia da imensa ação de Flávio Império, um renascentista na contemporaneidade.
O material disponível é de uma beleza incontestável e diz para todos nós como um artista se coloca no mundo e se apropria dele com sensibilidade, consciência de pertencer a uma geração, compreender o legado de outros e reinventar-se a cada dia. Os depoimentos e a reprodução dos trabalhos de Flávio Império dispostos na página intitulada Ocupação fornecem pistas para que se anteveja o resultado da digitalização do acervo do artista e a criação de um site sobre sua vida e obra patrocinadas pelo Itaú Cultural. Aguardemos. O acervo foi preservado pela família, sob a responsabilidade de Amélia Império Hamburguer, irmã de Flávio Império – falecida recentemente – e deverá seguir sua trajetória sob a guarda dos sobrinhos, penso eu.
Passada as informações sobre o evento, retorno ao início, ao tema do encontro. O meu encontro com Flávio Império no tempo em que eu era ator em São Paulo. Encontro acontecido de maneira surpreendente; outros encontros se deram até que o artista desligou-se de nós e foi cenografar noutras paragens, depois de ter feitos os mais belos, instigantes e criativos cenários para espetáculo teatrais e shows, entre eles os de Maria Bethânia, uma marca constante  na carreira da cantora. Para o Teatro de Arena, para o Grupo Oficina e para produções independentes, Flávio Império fez cenários e figurinos que influenciaram uma geração e permanecem ainda como uma referência inovadora por conta das soluções postas a serviço da cena. Suas invenções extrapolam o campo cenográfico para se fazer na pintura, na arquitetura e na vida. Império construiu uma vida no palco e fez da vida um palco, sem a superficialidade do vedetismo que por vezes impregnam a vida dos artistas.
De personalidade marcante, crítico mordaz, Flávio Império conseguia equilibrar suas observações certeiras com a doçura que por vezes tentava esconder. De uma energia mística, mas não mistificadora, motivo de crítica por parte de segmentos de esquerda a que pertenceu, Flávio transcendeu estes limites para se fazer um homem do seu tempo sem as amarras dicotômicas e maniqueístas que rondam este segmento.  Flávio pertenceu ao Teatro de Arena e atuou politicamente num determinado momento de sua vida. Mas a sua inquietação, o pensamento largo e a consciência aguda fizeram com que ele se “desligasse” deste engajamento sem deixar de ser um homem engajado, mais próximo de Camus que de Sartre, penso eu. Flávio não tinha aquela concepção autoritária do poder, era contrário ao pensamento único e exaltava a liberdade de expressão, campo por onde transitava com desenvoltura. Ampliando o seu pensamento, pois fora da rigidez que acometeu muitos dos seus companheiros de trabalho, ele soube agir sempre na perspectiva da transformação.
Por onde passou, o artista deixou pistas criativas das mais instigantes. Transitando entre o erudito e o popular com desenvoltura, colhia nos dois campos os elementos estruturadores de sua obra. Atento, conseguia ver a produção dos artistas populares com olhos iluminadores, dando-lhes outros significados sem diminuir a força dos objetos colhidos por suas andanças em São Paulo, Minas, Goiás, Pernambuco, Bahia. Império respeitava de maneira responsável o trabalho dos artistas anônimos, da mesam maneira como respeitou o dos seus pares.
Descendente de italianos, o artista tinha a força telúrica dos que nascem ao Sul da península, combinados com a brasilidade que se mostrava em cada quadro, cenário, escrito. Tal combinação vai se refletir na maneira como atua. Os signos criados pelo artista ao longo de uma carreira interrompida aos cinquenta anos, mostram a capacidade de olhar o Brasil na diversidade com que o país se revela e traduzi-la esteticamente
Flávio Império dominava palavra e com ela, seduzia o interlocutor sem anulá-lo. Captava com muita habilidade o pensamento do outro, por mais simples que fosse e dialogava. Esta palavra tão gasta era vivida em seu sentido mais pleno. Interação posta em movimento, assim era a ação do artista com o mundo e com seus semelhantes.
Aprendi muito com este professor que dizia não ensinar nada e que somente facilitava o aparecimento do potencial daquele se dispusesse a entrar no jogo da descoberta, ou melhor,  da autodescoberta. Em sua casa na Aclimação, quase um sítio em meio ao bairro, depois na Rua Marquês de Paranaguá, residência de sua mãe e por fim na Rua Monsenhor Passaláqua, na Bela Vista, passei horas conversando e trabalhando com ele, pois Flávio vivia sempre em atividade e envolvia o visitante no trabalho. A conversa, às vezes marcada por longos silêncios, era o entrosamento do fazer e do pensar, não necessariamente nesta ordem. Ainda ouço sua risada, forte, suas frases irônicas, seu carinho diante das minhas carências, suas dicas sobre a arte, o artista e a vida.

Homem Nu, 1970
Serigrafia em acetato

Ganhei muitos presentes do artista, algumas gravuras destruídas pela ação do tempo; o desenho que conservo na cabeceira da cama; meu retrato Casca-máscara,  sem data, mas pintado por volta de 1976; um pano impresso com as pombas (serigrafia) que fez para o cenário de Cena Muda, show de Maria Bethânia. Lamento ter perdido a gravura em acetato, Homem Nu, que me deu por volta de 1977, quando veio pela primeira vez à minha casa. Flávio voltava de Salvador onde passara o carnaval hospedado na  casa de José Possi Neto, na Boca do Rio. Bons tempos! Nas conversas que tiveram, Possi comentou sobre mim.  Assim que Flávio retornou a São Paulo foi me procurar, levando-me a gravura.  Daí para frente nos tornamos amigos e a minha admiração, por vezes motivo de suas ironias, crescia na proporção que eu descobria um ser humano valoroso e o artista genial que era. Atuei na encenação de A Falecida (1979), de Nelson Rodrigues,  direção de Osmar Rodrigues Cruz. Acompanhei de perto a construção da cenografia concebida por Flávio Império. Deste encontro retenho a experiência  de ver um cenógrafo participar do processo desde o pensar até meter as mãos na confecção do cenário, com uma sabedoria que incluía o saber do outro. Ele não ordenava, ele fazia junto.
Na referida gravura em acetato, há um texto que reproduzo. Ele é o retrato desse grande artista:


Tens algo do fogo, tens algo do ar, tens algo da terra, tens algo dos animais, tens algo dos anjos. 
Tens a verdade e ela é livre.


[1] Professor adjunto da Escola de Teatro – Universidade Federal da Bahia.